Meio ambiente e as tantas almas esticadas no curtume

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Por Fernanda Sola – O dia do meio ambiente é comemorado todo 5 de junho, que inicia as comemorações da semana do meio ambiente. A data é uma referência à Conferência das Nações Unidas de 1972 em Estocolmo, realizada nesse mesmo dia, foi a primeira reunião global sobre meio ambiente promovida pela ONU. No entanto, as comemorações dessa semana devem congregar as reflexões dos dois últimos anos do governo Bolsonaro, já que as ações ambientais devem ser pensadas de maneira ampla, longeva, inter-relacionada, sistêmica, para que as políticas ambientais sejam transversais na matéria e transgeracional no tempo, como estabelecido na Lei nº 6.938/81, a Política Nacional do Meio Ambiente, nascida a partir dos protocolos de Estocolmo.

Para dar início a essa aventura, começamos com a coincidente Cúpula do Clima desse ano que coincidiu com a celebração do “Dia da Mãe Terra” (22 e 23 de Abril) e foi organizada por videoconferência com representantes das 17 economias que juntas respondem por 80% das emissões dos gases de efeito estufa no mundo, e 40 chefes de Estados e representantes de organismos internacionais, como o Secretário Geral das Nações Unidas (ONU).

O encontro foi uma tentativa do presidente dos Estados Unidos assumir o protagonismo global e preparar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) que será realizada em novembro na Escócia, Reino Unido. Joe Biden que está empenhado em reduzir as emissões de carbono dos Estados Unidos pela metade até o final desta década, numa clara demonstração de oposição à postura adotada pelo seu antecessor, o negacionista Donald Trump, foi bastante contundente e assertivo. Nesse sentido, os olhares do mundo se voltaram ao Brasil, com uma das maiores reservas florestais e biodiversas do mundo, cujo líder político foi durante os dois últimos anos um aliado assumidamente Trumpista e negacionista das causas ambientais, e teve seu meado de governo marcado pela aceleração do desmatamento e o aumento da ocorrência de incêndios em biomas como o Pantanal e a Amazônia.

Na breve participação do governo brasileiro na Cúpula do Clima, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso aparentemente vazio de significado. Tamanha apatia além de ser a marca internacional de seu governo, talvez nesse caso específico tenha contado com a ajuda de seu Ministro do Meio Ambiente que dias antes foi acusado no STF por meio de envio de notícia crime e pedido de instauração de inquérito para investigação das condutas de atrapalhar a fiscalização ambiental, advocacia administrativa e embaraçar investigação destinada a combater uma organização criminosa feita pelo ex-superintendente da Polícia Federal. De acordo com o denunciante, “[foi a primeira vez que um ministro me pressionou em favor de madeireiros]. E isso, eu posso dizer com tranquilidade porque foi gerado um vídeo por ele mesmo em que ele confessava o que estava fazendo. Então, a atuação dele é claríssima e inédita. Isso aí, fora de dúvida. Isso [a pressão de ministro] nunca aconteceu [comigo]”

Desde quando assumiu o poder me janeiro de 2019, organizações não governamentais e ambientalistas denunciam o desmonte sistêmico e organizado pelo Ministro Ricardo Salles. Abundam arquivos de som e imagem envolvendo o Ministério da Saúde, em uma delas, pode-se ouvir anunciado em microfone aberto a declaração do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em reunião interministerial que ele “[Teria] um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só falam de COVID, e ir passando a boiada. Ir mudando todo o regramento [ambiental]…”

Desde que assumiu o MMA, Ricardo Salles dificulta a aplicação de multas, mudou a configuração do CONAMA, desmobilizou o IBAMA¹ trocando 25 dos seus 27 superintendentes, a maioria por militares, e desmontou a Política Nacional do Meio Ambiente de forma sistêmica e contumaz. Como se tivesse agindo numa cruzada contra as normas de proteção ambiental. Uma propostas de lei apresentada em abril deste ano, pelo Coronel Tadeu do PSL-SP da base de apoio do governo na Câmara dos Deputados propõem substituir o Ibama pela Polícia Militar para que ela faça parte do SISNAMA e possa dentre outras tarefas, aplicar multas, conceder licenças ambientais, embargar propriedades rurais, gerir unidades de conservação e controlar a poluição.

O desmanche promovido pelo MMA, há pouco, recebeu forte impulso de alterações no Legislativo. O processo legislativo dentro da Câmara dos Deputados deve ser submetido à Comissões Temáticas, no caso à Comissão de Meio Ambiente da Câmara, atualmente é presidida pela deputada da base bolsonarista, Carla Zambelli do PSL-SP, que teve parte de sua campanha política financiada por Jorge Feffer, neto do fundador do grupo Suzano Papel e Celulose, do qual é membro do Conselho, de uma das maiores companhias exportadoras do Brasil.
Além dessa comissão temática, todo projeto de lei aprovado deve ser submetido à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), nenhuma lei é aprovada no legislativo sem antes passar pela aprovação dessa comissão. A presidência da CCJ é ocupada atualmente pela deputada Bia Kicis, base do governo, PSL-DF.

Outra Comissão Temática de interesse correlato à agenda ambiental, é a Comissão de Agricultura e Pecuária, que é ocupada pela presidência da deputada Aline Sleutjes, PSL-PR. A família da deputada é do ramo produtor de leite, filha de produtores rurais, uma de suas pautas é a aprovação da MP 910/19 que agora é o PL2633/20 que trata da regularização fundiária em terras na Amazônia.

Ou seja, o uso da terra e a conservação ambiental está completamente dominada pela base do governo na Câmara, logo, duas frentes precisam ser atacadas, o ICMBio e o INCRA.

O governo ostenta como secretário fundiário, um personagem caricato, o ex-presidente da União Democrática Ruralista, UDR, Nabhan Garcia, declarado inimigo da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas. A meta de Nabhan Garcia é implementar a regularização fundiária autodeclarada, ou seja, feita pelos próprios ocupantes da terra. É assim que o governo pretende titular 600 mil propriedades de até 2.500 hectares na Amazônia Legal. A intenção é ocupar o que o governo vê como vazios demográficos com a lógica da integração nacional da ditadura: “O que deu muito certo no Brasil foi na década de 70, quando os governos [militares] fizeram uma colonização agrária dando oportunidade para aquele que tinha vocação”, afirma Nabhan. Há 31 milhões de hectares na Amazônia em situação indefinida (sem escritura), além de sobreposição de fazendas com terras indígenas, com áreas de proteção ambiental ou com terras públicas, e 51 milhões de hectares de floresta públicas não destinadas.

Mas como o cinismo parece ser a marca do governo, ao retomar o discurso de Bolsonaro na Cúpula do Clima deste ano percebemos que ao tentar interpretar uma fala construída para projetar a imagem de que o Brasil manteve os objetivos da redução de gases de efeito estufa, ele intencionalmente ilude os desatentos quando altera a linha de base sobre as emissões sem alterar a meta (a meta foi originalmente estabelecida em 2005). Com isso, o Brasil eleva seu teto de emissões até o final da década, podendo aumentar em até 400 milhões de toneladas de gases de efeito estufa além do previsto no compromisso anterior. Isso equivaleria a um desmate 16% superior em relação à 2019 quando Bolsonaro chegou ao poder.

Numa reunião prévia à Cúpula do Clima, Ricardo Salles chegou a pedir 1 bilhão de dólares aos EUA para cortar 40% do desmate nas florestas brasileiras, de acordo com o Ministro, parte do dinheiro seria destinado para remunerar policiais militares que fariam parte da Força Nacional, com atuação na Amazônia, responsável por substituir as atribuições do Ibama.

Em pesquisa publicada em 27 de maio o Instituto de Estudos Socioeconômicos, INESC, divulga informações importantes sobre os dois anos de gestão Ricardo Salles, intitulada “Dando nome aos bois: análise das medidas infralegais para o meio ambiente nos primeiros dois anos do governo Bolsonaro”. Nela, lança a base de dados com análise de risco das 524 medidas normativas publicadas pelo MMA e suas entidades (Ibama, ICMBio e JBRJ) revela as estratégias de desmonte ambiental do atual governo. Dessas, 314 medidas apresentam algum grau de risco na redução do nível de proteção ambiental, sendo 38 delas de risco alto e 10 de risco muito alto. O Inesc conclui que a análise das 12 medidas mais impactantes para o meio ambiente revelam três estratégias articuladas: o enfraquecimento da fiscalização ambiental; a desestruturação intencional do ICMBio e do seu papel na gestão das unidades de conservação e o redirecionamento do MMA para um “ambientalismo de resultado”.

A pesquisa demonstra que o atual governo está empenhado na flexibilização das normas ambientais e na redução da atuação dos órgãos ambientais nos últimos dois anos de forma orquestrada com as demais pastas, e o cinismo nas reafirmações de compromissos e metas internacionais que induzem a erro são apenas uma face de um governo que usa do embuste para sistematicamente cumprir seus objetivos de financeirizar o uso da terra e manter o Brasil um falido Estado agroexportador por mais longas décadas.

Enfim, o Brasil tem pouco a comemorar em matéria de meio ambiente. O desmanche é amplo e grave, talvez seja muito difícil de reverter esse cenário, e a altos custos. O governo apenas para os apaniguados e o desprezo pela vida e o futuro não se limita às políticas sanitárias, educacionais, e econômicas. A ameaça ao meio ambiente e a tudo o que ele representa para o futuro dos brasileiros é séria, grave e sistemática. Infelizmente, a passagem da boiada viabilizada pela montanha de mortos pela COVID-19, como bem disse o Ministro, tem deixado outras tantas almas esticadas no curtume de um Brasil que não consegue cortar suas raízes ambíguas entre casa grande e senzala.

Por: Fernanda Sola.
Doutora pelo PROCAM/IEE/USP. Professora e advogada.

Notas:

¹ O ataque ao Ibama foi evidenciado desde o início do governo Bolsonaro, quando em abril de 2019, o presidente desautorizou uma operação em andamento em Rondônia, na Floresta Nacional do Jamari, onde agentes ao deflagrar uma operação contra o roubo de madeira, queimaram o maquinário utilizado para o desmatamento ilegal, nos termos da lei.