Lula no Jornal Nacional: comunicação e ilusionismo

Lula no Jornal Nacional comunicacao e ilusionismo
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Ocorreu ontem a por muitos aguardada entrevista do ex-presidente Lula ao Jornal Nacional.

Com efeito, William Bonner e Renata Vasconcellos abriram, como era de se esperar, abordando a questão da corrupção. Talvez se sentindo encorajado pela afirmação de Bonner, já de saída, de que neste momento nada deve à Justiça, o ex-presidente não se intimidou, absolutamente, no trato da questão. Pelo contrário: partiu para o ataque, criticando com propriedade as numerosas arbitrariedades e ilegalidades perpetradas pela Operação Lava Jato. Denunciou os imensos prejuízos por ela causados ao país, como perdas multibilionárias de investimentos; a destruição das empresas nacionais da construção civil, principais sócias burguesas do seu governo; o desaparecimento de milhões de empregos; a responsabilidade – na visão dele – por lançar o Brasil nessa crise profunda e terrível na qual ainda se encontra.

Sem dúvidas, esse primeiro bloco foi o auge da sua entrevista, momento no qual “engoliu”, com facilidade, os seus arguidores.

Em seguida, questionado sobre política e “governabilidade”, Lula basicamente negou a existência do chamado “Centrão”, afirmando não acreditar que, se eleito, terá qualquer dificuldade em reformar as relações do Congresso com a Presidência. Denunciou, corretamente, a absurda situação atual na qual um punhado de deputados tomou do Executivo o controle sobre os parcos montantes discricionários restantes no orçamento federal. Apontou, também com acerto, a absoluta fraqueza de Jair Bolsonaro, verdadeiro “carona” do seu próprio governo (?), como a causa principal da subordinação da Presidência a tais desmandos.

Ainda na seara política, se propôs a falar sobre os partidos e considerou dignos de tal qualificação apenas o seu próprio e aqueles que o apoiam: PT, PCdoB, PSOL e PSB. Quanto aos demais, os desqualificou como meros “cartórios”. Evidentemente, não incluiu entre os “cartoriais” o PSB, que se submeteu passivamente a uma reformulação geral dos seus principais quadros com o único fito de apoiar a candidatura Lula. Mesmo que isso possa resultar no seu enfraquecimento com uma derrota no seu principal núcleo nos últimos anos, o governo de Pernambuco; derrota, por sinal, provavelmente levada a cabo por uma aliada de Lula, Marília Arraes.

Fora isso, Lula repetiu diversas vezes que Geraldo Alckmin não será um vice “decorativo”, mas atuante, compartilhando responsabilidades de governo, embora sem citar possíveis consequências deste fato para a orientação política do seu governo. E como de costume, se atribuiu a condição de “melhor presidente da história desse país”, naturalmente se isentando das dificuldades em elencar fatos que justifiquem tal estatura frente às realizações estruturantes do Brasil contemporâneo deixadas por antecessores como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.

Em todo caso, Lula deixou claras as suas posições. Além de não existir “Centrão”, “partidos” são apenas aqueles que se permitem ser manobrados por ele; isto é, aqueles que orbitam a estrela-mor.

Perguntado sobre emprego e renda, Lula falou em retomar a sua geração, aludindo à valorização do salário-mínimo nos seus governos. Disse, entre outras coisas, pretender que o povo brasileiro volte a ter condições de “comer o seu churrasco e tomar a sua cerveja”. Destacou a situação em que assumiu a Presidência em janeiro de 2003, com o “Brasil quebrado”, devendo bilhões de dólares ao FMI; e aquela na qual o entregou, com quase 300 bilhões de dólares em reservas. Fez algumas críticas à sua sucessora Dilma, citando a sua política para os combustíveis, “segurando” reajustes nos seus preços para conter a inflação; as políticas para o setor elétrico; e a farta distribuição de subsídios, que alcançaram a escala absurda de centenas de bilhões de reais com objetivos, em grade medida frustrados, como reduzir os preços da cesta básica e manter baixos os níveis de desemprego. Atribuiu, ainda, as dificuldades de Dilma à “piora” – contestável – na crise internacional iniciada em 2008; e à sabotagem deliberada contra o seu governo liderada por Eduardo Cunha na Câmara e Aécio Neves no Senado.

Caminhando para o fim da entrevista, diante de uma pergunta verdadeiramente ridícula feita por Bonner – apontando como problema para o seu possível governo o “radicalismo” da militância petista -, Lula saiu com uma tirada cômica que deve ter desmoralizado muitos desses militantes: os comparou com uma torcida de futebol e negou que tenham qualquer relevância na sua forma de governar. Já no encerramento, contrariando Renata Vasconcellos – que teve a audácia de afirmar que o agronegócio brasileiro quer mais, não menos, preservação ambiental -, Lula estrategicamente o separou em dois setores: um “mau”, depredador; e outro “bom”, conservacionista. Desafiou, ainda, que encontrassem algum ruralista, por “mais conservador” que fosse, a provar que durante o seu governo o MST invadiu alguma terra produtiva.

Em suma, o que se viu na bancada do JN foi um Lula em grande forma para as eleições e oferecendo o que ele faz de melhor: se comunicar muito bem com os eleitores, reais ou potenciais. A crítica fica por conta da sua narrativa, que os ilude na mesma medida na medida em que trata, ao máximo possível, de efeitos, não de causas. Faz isso por duas razões: primeiro, porque sua mensagem fica muito mais fácil de ser entendida; segundo, porque se falasse de causas, suas responsabilidades quanto ao estado de coisas que denuncia ficariam evidentes.

Vejamos, a título de exemplo, o que Lula falou da melhora substantiva das contas externas brasileiras no seu governo. De fato, essa melhora ocorreu e foi crucial para a ampliação dos investimentos públicos que realizou. Porém, Lula personalizou a questão, atribuindo tal resultado exclusivamente aos seus méritos pessoais. Cabe dizermos que aquela melhora já havia começado a ser esboçada nos últimos dois anos do governo FHC e que foi viabilizada por circunstâncias conjunturais, decorrentes do chamado “boom das commodities” ocorrido na década de 2000, que aumentou em muito os preços internacionais de produtos muito exportados pelo Brasil como minério de ferro e grãos.

Lula também não disse que aquele boom, mal administrado por uma política predominantemente neoliberal de ampliação de rendas, quando deveria ter sido por uma política desenvolvimentista de ampliação de capacidades produtivas, levou à enorme sobrevalorização do real e perda generalizada de competitividade industrial frente ao resto do mundo. O preço pago pelo Brasil em troca da acumulação daquelas reservas foi a aceitação de uma inserção primário-exportadora na Divisão Internacional do Trabalho que resultou numa enorme piora da estrutura produtiva brasileira. Se tomarmos os dados do Atlas de Complexidade Econômica como referência, veremos que o Brasil despencou nesse sentido nas últimas décadas. Em 1995, era o 25° país do mundo em diversidade e complexidade da sua estrutura produtiva; em 2020, foi o 60°, com viés de piora. Quando Lula assumiu em 2003, o Brasil era o 33°; quando entregou o governo para Dilma, em 2011, era o 47°. Compare-se isso, por exemplo, com a China, que avançou da 46° para a 17° posição entre 1995 e 2020.

Ou seja, durante o governo Lula, estávamos vivendo uma situação contraditória. Por um lado, houve melhora da situação fiscal e das contas externas, ou seja, tínhamos mais dinheiro para gastar, aqui e no exterior. Por outro, estávamos abrindo mão dos setores mais avançados da nossa estrutura produtiva, os industriais e de tecnologia mais avançada. Logo, estávamos nos tornando mais subdesenvolvidos, ficando mais pobres, porque é na indústria que estão os melhores empregos, as inovações e os ganhos de produtividade. Lula sabe, ou pelo menos deveria saber, que é na multiplicação dos empregos industriais e seus serviços correlatos, de alta complexidade e rendimentos, não na exportação de commodities com sobrevalorização da moeda, que está a garantia de longo prazo do direito do povo brasileiro a comer seu churrasco e tomar a sua cerveja.

Portanto, durante o governo do “melhor presidente da história desse país”, o que houve foi a perda de uma rara oportunidade histórica de ambiente externo favorável para nos desenvolvermos. Em vez disso, vendemos o jantar para comprar o almoço. Por outro lado, se o agronegócio “depredador” ao qual Lula se refere vem promovendo recordes seguidos de desmatamento sob a omissão criminosa de Bolsonaro, vale lembrarmos o impulso dado à expansão, “predatória” ou não, da fronteira agrícola brasileira pelo seu governo, ao incentivar a reprimarização em grande escala do Brasil. Lula pode adotar a retórica que quiser contra o agronegócio para agitar a militância que desprezou em rede nacional, mas ele também é parte integrante e responsável desta história.

Em suma, beneficia em muito a narrativa de Lula o estado de carência material e precária formação intelectual da maior parte deste país. Quando ele afirma que o povo vai voltar a fazer churrasco e a beber cerveja, atinge instantaneamente muitos milhões de brasileiros cujos horizontes de expectativas não vão muito além desse. Porém, Lula não fala sobre como o país tem que ser organizado para proporcionar o churrasco e a cerveja de forma duradoura, perene. Também não fala sobre como os governos dele e da Dilma pouco ou nada deixaram de estrutural; tudo foi desfeito rapidamente, e é preciso debater com a sociedade brasileira o porquê.

Fazer “mais e melhor” do que fez, mote que reafirmou diversas vezes ao longo da entrevista, não resolverá o problema; desta vez, será preciso fazer diferente. Lula fará? Hoje, Lula se mostra um grande obstáculo à discussão franca dos problemas brasileiros para os quais seu governo contribuiu, às vezes, decisivamente. Resta sabermos se, eleito, Lula também não será um grande obstáculo à sua solução.