Cinco anos após a sua morte, Moniz Bandeira ainda é fundamental para entender o Brasil

Cinco anos apos a sua morte Moniz Bandeira ainda e fundamental para entender o Brasil
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Por João Moreno – Conheci o professor e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira quando quis cursar um Mestrado em História, no já distante ano de 2020. O meu projeto de pesquisa buscava analisar e reconstruir as origens do discurso de Olavo de Carvalho, entendendo a sua importância para o que eu chamei, à época, de “direita radical cristã conservadora brasileira“. De antemão, sabia que as ideias do filósofo não eram novas e que “bebiam”, descaradamente, da extrema-direita norte-americana. Com isso, estudar os Estados Unidos, a sua formação histórica e os mecanismos utilizados por aquele país para impor a sua ideologia ao resto do mundo me parecia fundamental.

Moniz Bandeira surgiu na minha vida nesse contexto. Ao saber de sua vasta e premiada obra sobre a história dos Estados Unidos, e sobre as suas pesquisas a respeito da influência estadunidense no Brasil, corri para comprar parte significativa de sua bibliografia: simbólico que se tratasse de boa parte de meu primeiro salário como jornalista. Se, por vários motivos, o Mestrado não foi para frente, todavia, a influência do autor em meus escritos só aumentou, especialmente a partir da leitura de sua “trilogia”: Formação do Império Americano, A Segunda Guerra Fria e A Desordem Mundial.

Com os livros, aprendi, de forma muito clara, que “a formação histórica e a forma como os Estados Unidos ‘enxerga’ a si como nação determinaram o papel do país mundo à fora. Para a América Latina, a Doutrina Monroe faz dos latinos um contratempo aos interesses americanos estadunidense na região. Para os consolidar, inúmeras ações coloniais no século XIX e início do século XX foram protagonizadas. A partir da Segunda Guerra Mundial, entram a CIA, as ações encobertas, o terrorismo de Estado, o financiamento de milícias, a subversão dos processos democráticos quando os escolhidos pelo povo no Sul Global são contrários aos interesses estadunidenses. O ciclo de ditaduras militares do final dos anos 1950 aos anos 1970 é resultado dessa política, baseada em muito anticomunismo, responsável pela repressão interna (os red scares e o macarthismo) e externa (…) Com o fim da Guerra Fria, perdeu força a justificativa “luta contra o comunismo internacional” e o Complexo Industrial-Militar precisou de novas razões para os seus gastos e a sua existência. Ganharam as manchetes, então, os conflitos contra o narcotráfico e as disputas em torno do Oriente Médio.”

Assim, os trabalhos do autor me mostraram ser imprescindíveis àqueles que queriam sair do discurso maniqueísta e reducionista, apresentado pelos Meios de Comunicação e por grande parte dos influenciadores, nas diferentes redes sociais. Com a sua morte, no final de 2017, aos 81 anos, ficamos órfãos de suas análises, e pior: estávamos no ‘olho do furacão’ que se tornou a política brasileira. Para o nosso desalento, a última obra solo (sic) escrita pelo professor havia em 2016 somadas a algumas poucas entrevistas, de análise de conjuntura. Ontem, enquanto passava o olho na tese de Doutorado da jornalista Fabíola Mendonça de Vasconcelos (a qual analisa o papel da Mídia, especialmente do Estadão e da Folha, na ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo), uma grata surpresa. Ao indicar, como “referência”, as obras Enciclopédia do Golpe, vol. 1 2, Fabíola atiçou a minha curiosidade. E não é que eu tive uma grande felicidade, ao ver, na lista de autores, o nome do nosso querido Moniz Bandeira?

Cinco anos apos a sua morte Moniz Bandeira ainda e fundamental para entender o Brasil
Parte do sumário do livro ‘A enciclopédia do golpe, vol. 1’. Para minha surpresa, o artigo que abre a coletânea é do professor Moniz Bandeira e discute a influência estadunidense no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.

Sei que temos sorte em poder contar com as análises de grandes intelectuais e, em diálogos comigo mesmo, sempre levanto o quão fundamental seriam as análises de Moniz Bandeira, nos dias de hoje, se estivesse vivo, ao não separar conjuntura externa e luta de classes dos resultados de nossas “despolíticas” (sic) públicas. O artigo Armações Internacionais: Lowcoup – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff veio então em boa hora, em seu último grande esforço de entender o Brasil inserido nas disputas geopolíticas internacionais. Desse texto, gostaria de 1) destacar o “caráter profético” das análises do historiador, certeiro ao apontar o caminho do país pós-impeachment, com as reformas neoliberais e a “Ponte para o futuro” de Temer que se transformou em “O caminho da prosperidade” de Bolsonaro:

“O golpe contra a presidenta Dilma Rousseff visava (…) levar Michel Temer ao poder, comprometido com a conspiração e o programa de reformas antinacionais e anti-trabalhistas, tais como, inter alia, contenção dos gastos por 20 anos, revogação virtual da legislação social, consolidada pelo presidente Getúlio Vargas, liquidar a previdência social, a fim de entregar os seguros à rede bancária, ademais de liquidar a Petrobrás, privatizar a Eletrobrás, enfraquecer o BNDES, o Banco do Brasil etc.”

Moniz Bandeira, p. 18 de Armações Internacionais: Lowcoup – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff

2) retomar os apontamentos de Moniz Bandeira sobre a Operação Lava-Jato, a qual, na realidade, tratou-se de mecanismo de instabilidade política e de destruição do tecido produtivo brasileiro, também articulada, como foi, pelo Departamento de Estado norte-americano. Como escreveu longamente em seus outros trabalhos, a Operação esteve ligada ao Imperialismo estadunidense; aos neocons como formuladores da política externa norte-americana, a partir dos anos 1990; aos EUA como um ‘global cop’; ao avanço rumo às ex-repúblicas soviéticas; às Revoluções Coloridas: desde o fim da Guerra Fria, os golpes de Estado, articulados pelos Estados Unidos, não são mais aplicados de “forma tradicional”, por militares dos países golpeados. Há uma intersecção entre problemas reais, financiamento de ONGs e instituições internacionais, cooptação política da oposição, Judiciário, Imprensa ligada ao capital financeiro e elites antinacionais.

Ainda sobre a Lava-Jato, como escrevi em outra reportagem, trabalho do “Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese), de nome ‘Implicações econômicas intersetoriais da Operação Lava Jato‘, identificou: a Operação custou 4,4 milhões de empregos” e “3,6% do PIB” do país; impediu uma arrecadação de “R$ 47,4 bilhões de impostos” e mais “R$ 20,3 bilhões em contribuições sobre a folha”, além de ter diminuído a “massa salarial do país em R$ 85,8 bilhões”; também impactou em áreas estratégicas para a economia, como petróleo, gás e construção civil, e outros setores indiretos, diante dos “impactos indiretos e ao efeito renda”.

Obviamente que os dados acima não correspondem a uma defesa da corrupção por parte deste autor, mas a demonstração de um fato: a Operação Lava Jato serviu antes como instrumento de desestabilização política e de destruição de setores produtivos importantes do país do que como meio para acabar com a corrupção na Petrobrás ou em empresas ligadas à construção civil. Os pesquisadores José Luís Fiori e William Nozaki são realistas quanto a esta afirmação ao listar suborno envolvendo Mobil (U$ 80 mi, 1990); Chevron (2000-2002); Exxon (U$ 500 mi em 2003; 2009 e 2011); Statoil (2003 e em 2011, U$ 100 mi); Gazpron (2004-2006); Total (2005 e 2006); Shell e ENI (U$ 1 bi, 2011), sem contar as prisões na Arábia Saudita, em 2017, ou o uso do Complexo Industrial-Militar estadunidense, com Dick Cheney, Halliburton e a política externa expansionista no Oriente Médio: “dentro deste “campo de guerra”, aquilo que os pastores, os juristas e o “homem comum” chamam de “corrupção” – goste-se ou não – foi sempre uma prática regular da competição entre as grandes petroleiras, na sua disputa por novos recursos e novos mercados”.

Nesse ambiente de disputa por um recurso escasso e vital, não são apenas os acionistas que se beneficiam com a privatização dos recursos públicos da empresa brasileira. No artigo Petróleo, guerra e corrupção: para entender Curitiba, José Luís Fiori e William Nozaki escrevem que “há fortes evidências de que estas mesmas corporações que subornam e “corrompem” costumam utilizar a surpreendente acusação de “corrupção” contra seus concorrentes e contra todo e qualquer tipo de concorrentes ou adversário que se interponha no seu caminho”. Afinal, quais países e empresas teriam interesses no desmonte da Petrobrás, sua capacidade integrada e em recursos como o Pré-sal?”

“Em fevereiro de 2015, o procurador-geral da República Rodrigo Janot foi a Washington, apanhar informações contra a Petrobras, acompanhado por investigadores da força-tarefa responsável pela Operação Lava Jato, e lá se reuniu com o Departamento de Justiça, o diretor-geral do FBI, James Comey, e funcionários da Securities and Exchange Commission (SEC). A Rodrigo Janot? A quem serve o juiz Sérgio Moro, eleito pela revista Time um dos dez homens mais influentes do mundo? A que interesses servem com a Operação Lava-Jato? Ambos atuaram e atuam com órgãos dos Estados Unidos, abertamente, contra as empresas brasileiras, atacando a indústria bélica nacional, inclusive a Eletronuclear, levando à prisão seu presidente, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. Os prejuízos que causaram e estão a causar à economia brasileira, paralisando a Petrobras, as empresas construtoras nacionais e toda a cadeia produtiva, ultrapassam, em uma escala imensurável, todos os prejuízos da corrupção que eles alegam combater. O que estão a fazer é desestruturar, paralisar e descapitalizar as empresas brasileiras, estatais e privadas, como a Odebrecht, que competem no mercado internacional.”

Moniz Bandeira, p. 20 de Armações Internacionais: Lowcoup – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff

Obviamente que o trabalho de Moniz Bandeira não tem a intenção de isentar as gestões do Partido dos Trabalhadores (PT) de suas próprias contradições. Como escreveu o historiador brasileiro, o PT “igualou-se aos partidos das classes dirigentes. Imiscuiu-se com o PMDB, uma aliança espúria, e parte de seus quadros deixou-se corromper, 0abandonou os valores que defendia, perdeu a ética e sua autenticidade como partido de esquerda.” Entretanto, como também deixa implícita a obra do autor, não é mais possível acreditar que os acontecimentos políticos dos últimos seis, sete anos são resultados, apenas, da “luta contra a corrupção”. Por maiores que tenham sido os erros dos Governos Lula e Dilma, a conjuntura brasileira atual nos mostra que nem o mais plácido programa de esquerda será tolerado por aqueles que detém, de fato, o poder, no país.

Por último, 3) destaco trecho em que o historiador brasileiro faz conexão entre os golpes do Brasil, da Ucrânia e Leste Europeu e da América Latina. É a “Guerra Híbrida”, “assimétrica”, de “quarta geração”. Uma ótima definição pode ser encontrada no epílogo de nome Ética cultural e guerra infinita, do livro Sobre a Guerra, escrito por José Luis Fiori, que diz tratar-se de um “tipo de guerra que não envolve necessariamente bombardeios, nem o uso explícito da força, porque seu objetivo principal é a destruição da vontade política do adversário através do colapso físico e moral do seu Estado, da sua sociedade e de qualquer grupo humano que se queira destruir. Um tipo de guerra no qual se usa a informação mais do que a força, o cerco e as sanções mais do que o ataque direto, a desmobilização mais do que as armas, a desmoralização mais do que a tortura. (…). Uma espécie de guerra infinitamente elástica que dura até o colapso total do inimigo, ou então se transforma numa beligerância contínua e paralisante das forças “adversárias”.”

O que, inocentemente, vangloriávamos como “Primaveras Árabes”, com a “ideia de que era possível derrubar um ditador árabe com protestos pacíficos, (…) aproveitando o potencial da comunicação via internet e redes sociais“, “tiveram papel fundamental [d]os Estados Unidos, na promoção da agitação e da subversão, por meio do envio de armas e de pessoal, direta ou indiretamente, através do Qatar e da Arábia Saudita.”, como alertou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

É preciso salientar também que a Primavera Árabe esteve umbilicalmente ligada às chamadas Revoluções Coloridas (Sérvia, de 1998 a 2000; Revolução Rosa, Geórgia, em 2003; Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004) como uma consequência da chamada Doutrina Bush, colocada em prática no primeiro governo de George W. Bush Filho, a partir de 2001. Usando como justificativa a “proteção” dos EUA, o projeto tinha como objetivo promover ataques preventivos a nações consideradas antidemocráticas. “Ela consistia em não fazer distinção entre terroristas e nações que os abrigavam; combater os inimigos além-mar antes que eles atacassem; confrontar as ameaças antes que elas se materializassem; e “advance liberty and hope” como alternativa para a ideologia dos inimigos de repressão e medo”, escreveu Moniz Bandeira, no livro A segunda Guerra Fria, na página 91.

Na prática, essa “agenda de liberdade”, que buscava auxiliar países com “governos democráticos inexperientes” [Palestina, Líbano, Geórgia e Ucrânia] e dar voz aos “dissidentes” em “regimes repressivos” [Irã, Síria, Coreia do Norte e Venezuela] foi, na realidade, a forma encontrada pelos formuladores da política externa norte-americana de “modelar o comportamento de todas as nações de acordo com os interesses e a conveniência do Império”.

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em prefácio à já citada obra A Segunda Guerra Fria, do historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, descreve como pessoas foram treinadas para agir como “forças especiais para intervenção encoberta”, misturando-se e se infiltrando às manifestações pacíficas. Tais ações seguiam as instruções do livro Da ditadura à democracia, do cientista político Gene Sharp, o qual teve a sua tradução e distribuição em 24 idiomas financiadas pela Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), e que se transformou em manual para desestabilizar governos. Nesse processo, que não foi espontâneo e contou com financiamento estrangeiro (ONGs, Think Tanks etc), as reações dos governos locais às manifestações abriram margem à intervenção externa em nome dos “Direitos Humanos”.

Vale destacar o que apontou Samuel Pinheiro Guimarães: apesar das revoltas em nome dos Direitos Humanos, o resultado, para além da destruição de Estados-nação e do tecido social desses países, foi o surgimento de “regimes fundamentalistas muçulmanos não dóceis a seus interesses [dos países que financiaram as mudanças de regime], em especial pelo seu firme objetivo de implantar regimes e sociedades teocráticas fundados na Shari’ah, na lei religiosa.”

“O golpe de Estado, dentro da moldura constitucional, fora testado em Honduras, em 2009, embora sem perfeição, dado que os militares ainda participaram, quando à noite de 28 de junho de 2009, forças do Exército, alegando cumprir ordem da Corte Suprema, sequestraram de sua residência o residente Manuel Zelaya Rosales e remetido em avião para Costa Rica, após o que o Congresso legalizou o golpe, votando impeachment, e elegeu Roberto Micheletti para cumprir o resto do mandato. No Paraguai, ao longo da noite de 28 de junho de 2012, o Congresso Nacional, em menos de 48 horas, aprovou o impeachment do presidente Fernando Lugo. Também, na Ucrânia a destituição do presidente Wiktor Yanukovytch, na madrugada de 21 para 22 de fevereiro de 2014, por uma decisão de um Congresso comprado, configurou, na realidade, um golpe de Estado, como a denominada Revolução Laranja, que derrubou o presidente Leonid Kučma, entre novembro de 2004 e janeiro de 2005, encorajada e subvencionada pelos Estados Unidos e a União Europeia. Esse era o novo método de golpe de Estado, com o apoio encoberto da New Endowment for Democracy (NED), USAID, CIA, que passaram a instrumentalizar diversas ONGs.”

Moniz Bandeira, p. 21 e 22 de Armações Internacionais: Lowcoup – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff

Quase chegando ao fim, com esse longo e tortuoso texto, cheio de citações, paráfrases e hyperlinks, quis apresentar de que forma Moniz Bandeira se apresenta como incontornável para entendermos a realidade brasileira, mesmo depois de quase cinco anos após a sua morte. Parece-me fundamental. Como latino-americano, após as suas obras, ter um posicionamento anti-imperialista parece-me o único caminho possível.

Cinco anos apos a sua morte Moniz Bandeira ainda e fundamental para entender o Brasil
Obras do Moniz Bandeira compradas por mim, com o meu primeiro salário de jornalista. A intenção era ter embasamento teórico para um Mestrado. Na prática, Moniz Bandeiro mudou a minha forma de enxergar o Brasil e o mundo.

Por João Moreno

P.S.: Para escrever esse texto, retirei trechos de outros trabalhos, escritos por mim, em outros lugares. São eles 1) a resenha de Formação do Império Americano; 2) a resenha da obra A Desordem Mundial; 3) a reportagem Por que Jair Bolsonaro mente a seus eleitores sobre o preço da gasolina?; 4) a reportagem ainda não publicada As veias continuam abertas: o Brasil no espectro de uma Guerra Híbrida.

Pequena biografia: João Moreno é jornalista, formado pela PUC Goiás. Escreve, em seu pequeno blog, reportagens, crônicas, resenhas e resumos (e o que vier!) através do Jornalismo Literário. Atualmente, publica uma série de reportagens intitulada ‘Os planos secretos dos militares‘, no Jornal Metamorfose, espécie de dossiê no qual apresenta o presidente Bolsonaro como um projeto de poder dos militares, agora de volta ao poder.