Guerra na Ucrânia: Será a Rússia grande demais para a bomba-dólar?

Guerra na Ucrânia Será a Rússia grande demais para a bomba-dólar
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Por Daniel S. Kosinski e Fernando Silva Azevedo – Na última segunda-feira (21), a crise geopolítica no leste da Europa escalou para novos patamares após a decisão do presidente Vladimir Putin de reconhecer a independência e a soberania da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, províncias ucranianas separatistas que se encontram em conflito contra o governo central em Kiev desde 2014. Para legitimar sua decisão, Putin afirmou que a Ucrânia não é apenas um vizinho, mas parte integral da história russa, e que as populações russas naquelas áreas vinham sendo atacadas pelas forças ucranianas. Em seguida ao reconhecimento formal de Donetsk e Lugansk, a Rússia informou que enviaria tropas para as duas regiões com o objetivo de “assegurar a paz”.

Esse movimento ousado colocou o Ocidente em uma verdadeira encruzilhada, uma vez que uma resposta americana à tamanha ousadia se tornou obrigatória. Putin jogou suas cartas sabendo que os EUA não acatariam suas reivindicações para a OTAN parar sua expansão na direção da Rússia e que responderiam de forma branda ao movimento do Kremlin. Portanto, o líder russo dobrou a aposta de que o Ocidente não defenderia militarmente Kiev e que o principal meio de contrapor a agressividade russa seria a imposição de sanções financeiras, comerciais e tecnológicas. Uma situação que, de fato, a Rússia já vem enfrentando desde 2014.

Na tarde do dia (22), o presidente americano Joe Biden decidiu responder ao recente movimento estratégico de Moscou. Entretanto, previsivelmente, a resposta foi tímida. Os EUA decidiram aplicar mais sanções contra a Rússia em três pontos principais, a saber: 1) Bloquear a operação no Ocidente dos bancos VEB (banco de desenvolvimento) e PSB (Banco militar), incluindo 42 subsidiárias; 2) Impor sanções direcionadas a indivíduos específicos ligados ao Estado russo; 3) Impedir a negociação de novos títulos da dívida russa no mercado ocidental. Os aliados ocidentais Reino Unido, União Europeia e Japão não fizeram por menos e seguiram Washington na aplicação de sanções, incluindo as ligadas ao novo gasoduto Nord Stream 2, o que afeta o suprimento de gás para a Europa, em especial para a Alemanha.

A cartada ocidental demonstrou mais fraqueza e relutância do que firmeza para enfrentar a situação. As sanções podem ser uma ferramenta poderosa, mas têm um caráter defensivo, uma vez que respondem a uma ação prévia. A relutância ocidental em aplicar sanções mais severas acabou passando um recado claro para Moscou: os EUA e seus aliados ainda não estavam dispostos em constranger mais severamente os russos. É preciso deixar claro: o grau de coerção dessas sanções aplicadas contra a Rússia é muito menor do que as atualmente aplicadas contra o Irã. Contra Teerã, vem sendo aplicada a “bomba-dólar”, um artefato bélico-monetário que corta o acesso dos agentes ao sistema financeiro internacional e impede o uso legal de dólares, a moeda de comando internacional, pelos iranianos. A bomba-dólar tem uma característica sistêmica clara: ela impede que terceiros tenham laços financeiros e comerciais com o país-alvo, sob o risco de serem impedidos de manterem esses mesmos laços com os EUA. Em outras palavras, com a bomba-dólar ativa, os demais países, empresas e indivíduos do sistema internacional são coagidos a escolher entre manter tais relações com os EUA ou com o alvo em questão. Em suma: Washington não aplicou a bomba-dólar em resposta ao reconhecimento de Donetsk e Lugansk.

Essa relutância deixou um espaço para Vladmir Putin agir estrategicamente, algo que foi plenamente aproveitado. Em um movimento ousado, que pegou muitos de surpresa, o presidente russo proferiu um discurso contundente e com tom elevado onde anunciou o início de uma “operação militar especial” na região de Donbass, no leste da Ucrânia, mas que logo se espalhou por quase todo o país. Nesse discurso, Putin afirmou pretender “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia. Com isso, deixou claro seu objetivo de enfraquecer militarmente Kiev, chegando a recomendar que os soldados ucranianos largassem suas armas e não lutassem. Mas a parte mais contundente do discurso foi quando disse que “qualquer um que tente interferir conosco, ou mais ainda, criar ameaças para nosso país e nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e o levará a consequências como você nunca experimentou em sua história”. Logo após o discurso, a imprensa internacional começou a divulgar que diversas cidades ucranianas começaram a sofrer bombardeios. Com a escolha pelo conflito, Moscou dobrou a aposta na busca por defender seus interesses, reforçou que está com a iniciativa estratégica e pressiona o Ocidente a responder reativamente às suas ações.

No primeiro momento, a resposta ocidental foi mais uma vez relutante. O presidente Joe Biden se limitou a condenar as ações do Kremlin e a afirmar que os EUA e seus aliados anunciariam em breve novas sanções. Fato que expôs que as recentes declarações de que aplicaria sanções com força nunca antes vistas não passavam de um blefe para tentar deter Putin, demonstrando que o plano para a aplicação de medidas tão complexas não estava pronto. Para se ter uma ideia, as sanções aplicadas pelo Reino Unido só serão estabelecidas legalmente na próxima terça-feira (01/03): suspender e proibir todas as licenças de exportação de uso dual, itens que podem ter uso civil ou militar, para a Rússia; proibir exportações de produtos de alta tecnologia para a Rússia, incluindo semicondutores, peças de aeronaves como motores a jato Rolls Royce e equipamentos de refinarias de petróleo; congelamento dos ativos de todos os principais bancos russos, incluindo o VTB, o segundo maior banco do país; bloquear os ativos de mais de 100 indivíduos, empresas e subsidiárias.

Pelos EUA, a expectativa de aplicação das mais duras sanções para tentar reverter o cenário ou de mitigar a derrota estratégica da invasão ao território ucraniano por forças russas foi frustrada. O presidente Joe Biden aplicou os mesmos tipos de sanções já aplicados por seu aliado inglês horas antes. Ou seja, retirou quatro bancos russos do sistema financeiro americano, aplicou restrições de exportações de produtos de alta tecnologia e atacou figuras da elite russa ligadas ao Kremlin. Além disso, em seu discurso, Biden admitiu que os efeitos das sanções serão focados no longo prazo. Quem esperava uma demonstração de força do Ocidente para responder ao desafio imposto por Moscou acabou frustrado.

Além disso, nesse discurso, foi descartado, pelo menos por enquanto, a exclusão da Rússia do sistema SWIFT. As sanções anunciadas no discurso do presidente americano têm o poder limitar a capacidade da Rússia de fazer negócios em dólares, euros, libras e ienes, mas não de impedir que a Rússia continue negociando nessas divisas, uma vez que há bancos russos que não estão na lista dos sancionados.

Portanto, ainda há muitas dúvidas nas névoas desse conflito, mas uma certeza já temos: a bomba-dólar não será acionada contra a Rússia, pelo menos por enquanto. Ou seja, pelo menos a princípio, o país não será excluído do sistema financeiro internacional. Pelo tamanho e pela importância da Rússia no comércio e nas finanças globais, os custos do acionamento desse artefato bélico-monetário tão poderoso seriam muito altos para todos os lados. O caminho escolhido pelos Estados Unidos nesse momento foi o de coordenar sanções pontuais com os demais países do G7. Não se tratou, assim, de uma imposição unilateral, como no caso das sanções contra o Irã. A razão é simples: a Rússia é muito mais importante para o sistema internacional do que o Irã e mantém relações comerciais e financeiras muito mais intensas com o Ocidente – principalmente com a Alemanha, a principal potência da União Europeia. Tudo indica que não há como excluir de imediato a Rússia do sistema sem provocar danos significativos ao próprio Ocidente, por exemplo, causando uma explosão nos preços globais dos recursos energéticos.

Em suma, a partir dessa invasão da Ucrânia pela Rússia, de consequências ainda imprevisíveis, o mundo não será mais o mesmo. As superpotências estão dando as suas cartadas e o jogo está longe de terminar. Será que em algum momento as grandes potências entrarão em modo “All-in”? Parece que a sombra dessa dúvida permanecerá por um bom tempo. Bem-vindos ao novo normal.

Por Daniel S. Kosinski e Fernando Silva Azevedo