O Castelo de Cartas do Governo Lula III

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O Castelo de Cartas do Governo Lula III

Por Christian V. Kuhn e Felipe B. Zorzi

Nos últimos 10 anos, o Brasil vem passando por sucessivos eventos de instabilidade. Ocorreram protestos de massas, processo de impeachment, intervenções judiciais, campanhas contra o governo nas mídias, uso de robôs nas redes digitais para manipular a opinião pública etc. Cristalizou-se uma polarização social entre grupos que se identificam como direita ou esquerda, conservadores ou progressistas. Porém, os primeiros sinais de crise remontam ainda às manifestações que se espalharam pelo país no episódio que se convencionou chamar de Jornadas de Junho de 2013. Inicialmente, elas foram motivadas pelo descontentamento de estudantes com a alta das tarifas de ônibus urbano, mas com seu desenrolar novos grupos aderiram e a pauta se expandiu para os mais diversos temas (manifestações contra os partidos políticos, contra a Copa do Mundo de 2014, a favor de uma Reforma Política etc.).

No ano seguinte, iniciou-se a Operação Lava-Jato que investigaria crimes relacionados à Petrobras, porém mais estatais federais ficaram envolvidas em esquemas de corrupção. Com o avanço da operação, arrefeceu-se o ritmo dos investimentos privados na produção, o que impediu que a economia avançasse dado que o governo também está endividado com o capital privado. Isso impactou severamente no desempenho do PIB, desencadeando uma forte recessão. Ainda naquele ano, as eleições presidenciais já demonstravam fortes sinais de uma polarização bastante aguçada. A falta de legitimidade das forças políticas estabelecidas desde a redemocratização impulsionou lideranças reacionárias, as quais se destacaram nas duas eleições seguintes.

A presidente reeleita Dilma Rousseff do PT, que havia vencido com uma margem ínfima contra seu adversário Aécio Neves, decidiu adotar uma agenda de política econômica contracionista em 2015. Isso era o que ela havia acusado, durante a campanha, que o seu oponente faria se fosse eleito. Essa hipocrisia no debate da agenda econômica acabou por reduzir drasticamente a popularidade e a confiança no governo, deixando a presidente exposta a conchavos articulados por seu vice-presidente (Michel Temer) e pelo presidente da Câmara (Eduardo Cunha). Ambos faziam parte do então PMDB, que era o maior partido do congresso e maior aliado petista na coalizão de governo. Com a acusação de pedaladas fiscais cometidas pela presidente, tais conspirações provocaram o seu impeachment no ano seguinte.

A gestão de seu vice Michel Temer na presidência manteve a orientação contracionista da política econômica, aprofundando-a com reformas neoliberais e impopulares. A Reforma Trabalhista e o Teto dos Gastos Públicos foram as mais violentas contra a capacidade do governo de proteger os trabalhadores brasileiros. Ao mesmo tempo, esse avanço de pautas antipopulares já revela indícios de avanço no movimento reacionário. A hegemonia de grupos conservadores se manifestou na composição de parca diversidade do novo ministério, o qual foi composto em sua maioria por homens brancos velhos.

Esse cenário, junto da prisão do ex-presidente Lula decretada pela Lava-Jato, repercutiu significativamente na ascensão da extrema-direita no país. Essa onda reacionária já se manifestava em outros países desde o Brexit que tirou a Inglaterra da União Europeia e a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA em 2016. Desde a redemocratização, o Partido dos Trabalhadores tratou as eleições como se fossem uma guerra contra outros movimentos progressistas para assumir a liderança da esquerda. Repetindo uma estratégia de destruição de reputações, o partido atacou Leonel Brizola, Heloísa Helena, Marina Silva, Ciro Gomes para impedir que emergisse qualquer alternativa progressista. O problema é que precisaram fortalecer a direita para governar, ficando refém de alianças oportunistas. Como resultado disso, o PT levou a esquerda à decadência moral, com seu representante Fernando Haddad sofrendo uma derrota vexaminosa para o deputado Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais de 2018.

Após a aprovação de uma Reforma da Previdência em seu primeiro ano de governo, a incompetência de Bolsonaro na presidência se mostrou latente. Seu caráter oportunista sempre foi óbvio para quem o conhecia: nunca aprovou projetos úteis, fazia corrupção em seu gabinete, tratava violentamente seus oponentes. Como sói acontecer, sua gestão na Pandemia de Covid-19 em 2020-2022 foi desastrosa. O Brasil concentrou 11% das mortes pela doença no período, tendo só 2,7% da população mundial. Esses números legitimam as críticas. Ademais, a crise sanitária gerou efeitos recessivos sobre a economia brasileira. Mesmo apelando para medidas populistas em seu último ano, às vésperas das eleições, Bolsonaro perdeu por uma diferença de 2%, tornando-se o primeiro presidente não reeleito desde a redemocratização.

Pela vitória ter sido com uma margem insignificante, que foi agravada pela eleição de um congresso amplamente conservador, a terceira gestão de Lula como presidente tem repetido a mesma estratégia. Articulou-se uma aliança extremamente ampla no congresso (o que não implica numa aliança com o povo) que é formado por cerca de 20 partidos, através do loteamento de cargos em ministérios e empresas públicas. Esse é o chamado Presidencialismo de Coalizão: o presidente eleito de um partido minoritário precisa, depois de eleito, conquistar a governabilidade. O exercício do poder, segundo Maquiavel, pode ser realizado via coerção ou consenso. O governo Lula III usa as duas vias: a coerção dentro do seu campo ideológico, enquanto precisa construir um consenso com as forças reacionárias no legislativo.

Para a manutenção de um presidencialismo de coalizão com base partidária ideologicamente tão amorfa, faz-se necessária a flexibilização da agenda governamental. Como os movimentos progressistas estão reduzidos para que uma burocracia partidária se perpetue, quem expande seu poder sobre os espólios da destruição é a direita. Se a governabilidade deve ser atingida após a eleição, antes da eleição a força dominante já limita suas promessas a uma agenda diminuta. Os acenos para o denominado Centrão com oferta de cargos, ministérios e emendas no orçamento do Estado antecedem a própria eleição. Também se acena para setores predatórios da economia brasileira, como a especulação financeira, o latifúndio agroexportador, as áreas de mineração, e os importadores de produtos estrangeiros baratos.

Esse pacto da mediocridade se faz notório em diversas dimensões do novo governo. As medidas de reforma institucional, tais como o Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária, não tratam de resolver o problema de concentração de renda e riqueza. Com dinheiro abundante, a elite capitalista monta uma estratégia com lobby, mídia tradicional, financiamento de políticos conservadores que bloqueia o governo progressista de fazer investimentos estratégicos no desenvolvimento econômico. Ainda mais óbvia é a manutenção da atual diretoria do Banco Central, que havia sido indicada por Bolsonaro e que paga a maior taxa de juros do mundo para os credores do Estado. Também há a redução de tributos para as corporações privadas que produzem automóveis, o que não aumenta a capacidade de consumo do povo mais pobre. Desse modo, quem tem mente aberta para observar percebe uma dissonância entre o discurso eleitoral de tom de esquerda (abstrato), que promete picanha e cerveja sem dizer como vai fazer para sustentar esse consumo, e a política econômica governamental mais de direita (concreto), que inviabiliza a própria efetivação dessas expectativas. Essa contradição mostra que a verdadeira intencionalidade do governo Lula: não se busca construir uma ordem social alternativa, mas meramente ocupar o poder do Estado.

Examinando mais profundamente a relação do governo com o Banco Central, essa contradição se mostra ainda mais evidente. O presidente Lula vem engrossando o discurso contrário à política de juros empreendida pelo Banco Central. Todavia, enganosamente justifica sua manutenção por estar de “mãos atadas” para qualquer mudança na gestão do órgão por banqueiros do setor privado. Em que pese este tenha ganho mais autonomia no mandato de sua direção com o governo Bolsonaro, o Conselho Monetário Nacional (CMN) ainda é o responsável pela definição das metas de inflação e de emprego na economia, detendo a capacidade legal de alterar a gestão para essas finalidades. No Conselho, o presidente do Banco Central, que é um banqueiro originalmente do setor privado, ocupa apenas uma das cadeiras, enquanto os ministros da Fazenda (Haddad) e do Planejamento (Tebet) ocupam as duas restantes.

Ou seja, o governo poderia alterar a política de juros altos, mas não o faz porque está comprometido com os interesses rentistas do setor financeiro. Caso realmente estivesse descontente com a gestão da atual direção do Banco Central, bastaria acionar os dois ministros e conduzir o processo de demissão do presidente da instituição. A condição necessária é “apresentar comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos da instituição”. Em 2022, por exemplo, a inflação encerrou acima da meta estipulada, o que já basta como justificativa legal. O pedido de exoneração precisaria da aprovação da maioria no Senado, o que poderia ser obtido mediante negociação com os membros da casa dado o tamanho da coalizão das forças políticas estabelecidas no Congresso. Enquanto isso não ocorre, só nos primeiros seis meses do ano, 131 bilhões de reais foram transferidos para os grandes credores do setor privado direto sob a forma de juros da dívida pública, saindo do bolso do contribuinte. É preciso refletir sobre o que isso significa: os conservadores estão sendo fortalecidos por um governo que se diz progressista.

Logo, o aparente desagrado midiático do executivo com a gestão do Banco Central é tergiversado mediante ações paliativas. Houve a adoção da meta de inflação contínua a partir de 2025, mantendo o mesmo patamar de 2024 e 2025 para 2026. Desse modo, o governo não desagrada o mercado financeiro, porque este já pode projetar a manutenção de altas taxas de juros. Afinal, como são os banqueiros do setor privado que ocupam essa posição central, eles já sabem quais decisões serão tomadas. Visto que o atual patamar das taxas de juros contribui para a elevada rentabilidade dos títulos públicos (que oferecem baixo risco), há um fluxo de moedas internacionais que entra, permitindo ao governo manter a taxa de câmbio apreciada. Enquanto isso, quem paga é o contribuinte médio. Com o real valorizado em relação ao dólar, colaborando aos interesses do setor importador de bens e serviços, mantém-se uma dependência de produtos industrializados e tecnologicamente sofisticados do setor externo que segura a inflação interna num patamar baixo.

Sem medidas mais efetivas para conter a desindustrialização em curso desde os anos 1990, o país fica vulnerável a qualquer cenário de crise externa: guerras mundiais, crises financeiras, pandemias, crises climáticas. As ações para redução dos preços de automóveis e passagens aéreas que o governo Lula III executa são fúteis. A cúpula petista parece querer reeditar o nacional-consumismo que empreendeu nas suas duas gestões anteriores. No entanto, o que esta não parece compreender é que o atual cenário político e econômico mundial é diametralmente diferente do experimentado há duas décadas atrás. Enquanto não havia conflitos entre grandes potências em 2002, claramente há em 2023. Se a crise climática não parecia urgente, agora claramente é. Embora o preço das commodities que exportamos, como minério, madeira, soja estivessem em alta há 20 anos, estão em tendência de queda atualmente. Qualquer disrupção nas cadeias produtivas globais podem fazer os preços dos industrializados que importamos explodirem. A inflação baixa é uma alucinação coletiva por enquanto. Essa incongruência entre a expectativa e a realidade logo cobrará seu custo sobre a legitimidade do atual governo. A sustentação do governo Lula oferecida pelo presidencialismo de coalizão é um castelo de cartas sujeito a ruir quando os ventos deixarem de soprar a favor.

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Sobre os autores:

Christian V. Kuhn é economista. Doutor em Economia do Desenvolvimento/UFRGS, consultor e professor do Instituto PROFECOM;

Felipe B. Zorzi é Cientista Político e Doutor em Ciência Política/UFRGS