A que serve a candidatura de Ciro – resposta a Hugo Albuquerque

A que serve a candidatura de Ciro
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Em um fio no Twitter, Hugo Albuquerque, publisher da versão brasileira da Jacobin, disse que a candidatura de Ciro Gomes serviria somente ao próprio Ciro, alegando que o trabalhista não significaria qualquer alternativa ao neoliberalismo descarado de Lula. Albuquerque fundamenta sua posição apelando para o fantasma do golpe de Estado, alegando que, dada a inexorabilidade da ruptura democrática, não restaria caminho para a esquerda a não ser a total capitulação aos interesses da Faria Lima – como fizemos em 2002, 2006, 2010, 2014 e no fatídico domingo sangrento de 2018.

O mais interessante da posição de Albuquerque é que já contém nela mesma a confissão de seu equívoco.

Vale a pena resgatar os debates dos marxistas na época do estelionato eleitoral de 2003. O dependentista João Machado Borges Neto escreveu um artigo intitulado “um governo contraditório” a respeito dos primeiros meses do governo de Meirelles-Lula-Palocci que saiu na revista da Sociedade de Economia Política nº 12. A provocação do professor mereceu a resposta de Paulo de Tarso, no qual o economista demonstrou qual era o pólo dominante deste governo contraditório.

Em seu artigo, Borges Neto reconhecia que o coração da equipe econômica de Lula era fundamentalmente neoliberal e uma continuidade em relação aos governos de Fernando Henrique Cardoso. Além disso, desde a “Carta ao Povo Brasileiro”, noções básicas de política desenvolvimentista como controle do fluxo de capitais foram consideradas “radicais” – políticas adotadas até mesmo por governos de direita. Palocci fez questão de deixar claro que a política econômica de Lula teria “forte continuidade com a do
segundo mandato [de FHC]”, defendendo particularmente os juros elevados e as privatizações. Meirelles, eleito deputado federal pelo PSDB em 2003, foi indicado para o Banco Central nos dois mandatos de Lula e em sua sabatina fez questão de elogiar Armínio Fraga e dizer que seguiria à risca sua política de destruição da economia brasileira, como o fez pelos 8 anos que esteve à frente da autoridade monetária.

No entanto, apesar de suas duras críticas aos primeiros meses do triunvirato Meirelles-Lula-Palocci, Borges Neto conclamava todos os economistas e pensadores que estavam fora da ideologia tresloucada da ortodoxia neoliberal a disputar o sentido da contradição daquele governo.

É nesse ponto que reside a discordância de Paulo de Tarso. Para o leninista, havia um claro pólo dominante nessa contradição: o neoliberal. Muito além da predominância quantitativa de tucanos nos primeiros meses do triunvirato, a questão é sua hegemonia qualitativa, controlando a integralidade da política econômica lulista. O que havia para dar alguma legitimidade como de “esquerda” para o governo eram alguns quadros alocados sobretudo na política social para operar o distributivismo defendido por Milton Friedman da famosa Escola de Chicago..

O caráter neoliberal do petismo não nasceu na “Carta ao Povo Brasileiro”. Muito pelo contrário, foi um processo cujas origens remontam à fundação do PT. Paulo de Tarso ressalta em sua resposta os quadros em comum do binômio PT-PSDB como Francisco Weffort e José Álvaro Moisés, ambos do círculo pessoal de Lula, muitos anos antes da traição de 2003.

A conclusão do professor Paulo de Tarso não poderia ser mais inequívoca: não fazia sentido disputar a hegemonia de um governo cujos fundamentos eram o neoliberalismo e a inserção subordinada do Brasil na economia mundial.

“Não poucos marxistas apoiaram a eleição do candidato Lula e fizeram campanha eleitoral dizendo que a vitória do PT mudaria ou, pelo menos, seria um começo de mudança nas “coisas neste país”. As medidas que vêm sendo tomadas no governo Lula da Silva deixam claro o tamanho do erro cometido. Não é demais repetir: “foi um erro abismal”! Foi um erro que coloca em dúvida o estatuto teórico de alguns que se imaginavam leitores atentos da literatura marxista. A discussão sobre “frente ampla versus frente de esquerda”, tão viva nos anos setenta e oitenta, não pode, hoje, ser jogada para baixo do tapete”. Esses marxistas, portanto, estão devendo uma verdadeira autocrítica e um pedido de desculpas, as únicas maneiras de mostrar dignidade e respeito à classe operária.”

As profecias de Paulo de Tarso no longínquo ano de 2003 não poderiam estar mais corretas: os três governos e meio do PT não só foram integral continuidade com o neoliberalismo de FHC como enfraqueceram a classe trabalhadora a ponto de não conseguir reagir às agressões que se avolumam desde o golpe de 2016.

Porém, há uma outra profecia que também segue verdadeira: a falta da autocrítica dos marxistas e de seu pedido de desculpas.

Não são poucos os quadros da esquerda que numa sincera preocupação com a continuidade do governo colonial do bolsonarismo acabam sendo seduzidos pelo tão fácil como falso argumento de que Lula seria o candidato com mais chances de vencer o projeto colonial. Fácil, porque o neoliberal avermelhado segue em primeiro lugar nas pesquisas eleitorais, graças ao recall das benesses do superciclo das commodities e ao tácito (algumas vezes explícito) apoio da grande mídia, que sabe que os petistas são muito mais mansos e leais ao grande capital do que a besta colonialista que a burguesia financista deixou escapar em sua contumaz irracionalidade.

Contudo, a questão central é que essa suposta vantagem eleitoral é lastreada em argumento de uma dupla falsidade. Por um lado, a rejeição ao nome de Lula é colossal e tudo indica que sua presença no segundo turno é crucial para amalgamar os eleitores em torno de Bolsonaro. Como a já famosa postagem de Breno Altman deixou claro em 2018 (diga-se de passagem, todos sabem que o blogueiro é porta-voz de Dirceu), a estratégia do PT é fazer o Brasil dançar à beira do abismo para manter sua hegemonia sob a esquerda, ainda que isso custe a própria continuidade de nosso país como nação e o devir de nossa classe trabalhadora como sujeita para ela mesma. Lula é pressuposto de Bolsonaro e vice-versa, ambos mantendo-se ativos graças ao outro, em uma polarização totalmente estética em torno de nada.

A que serve a candidatura de Ciro

Mais grave, no entanto, é o segundo momento da dupla falsidade deste argumento. Como profetizou Paulo de Tarso em 2003 e sintetizou Nildo Ouriques na expressão “petucanismo”, o projeto petista sempre foi neoliberal, reafirmando a condição subalterna do Brasil. O que Lula está propondo é um neoliberalismo mais “racional”, com algum distributivismo amiúde, para fazer a gestão da pobreza. As sinalizações emitidas pela campanha de Lula são, no mínimo, contraditórias, sobretudo no que toca à reforma trabalhista e às privatizações. Quem se lembra da eleição de Dilma em 2014 e seu governo com Joaquim Levy está vacinado a essas contradições e seu pólo dominante.

Alguns quadros por ingenuidade ou quiçá hipocrisia procuraram enquadrar essa questão em uma falsa polêmica em torno do vice da chapa, Alckmin, que até agora demonstrou estar à esquerda de Lula – o que não é difícil. O histórico do PT sempre foi de grande permeabilidade para quadros tucanos.

Essa é a confissão do equívoco de Hugo Albuquerque: a própria propositura da indagação mostra a relevância da candidatura de Ciro Gomes

A candidatura de Ciro, em primeiro lugar, serve para trazer de volta algo que já esquecemos: a luta pela libertação nacional. Resgata a bandeira anti-imperialista e a centralidade da questão nacional, soterrada por 42 anos de hegemonia petista e seu pós-modernismo fragmentário. Liquida com o falso pragmatismo de um governo “contraditório”, cujo pólo dominante sempre foi neoliberal.

Certamente, um novo governo trabalhista após quase 60 anos será contraditório, como todos os anteriores foram. Mas o pólo dominante dessas contradições foi a luta pela industrialização e a organização dos trabalhadores, e não sua capitulação frente às finanças imperialistas.

Em segundo lugar, a candidatura de Ciro Gomes serve para fazer um contraponto à esquerda do projeto petucano. Porque, ao contrário de Lula, o programa trabalhista é inequivocamente anti-imperialista, atacando o esteio da submissão colonial do Brasil: o famoso tripé macroeconômico. Considerando a implosão e completa submissão de PSOL, PCdoB e PSB engolidos pelo hegemonismo petista, o PDT e Ciro Gomes estão entre os últimos representantes da esquerda a fazê-lo, o que fica patente na própria indagação de Hugo Albuquerque.

Em terceiro lugar, a candidatura de Ciro Gomes serve como alternativa concreta e viável para a classe trabalhadora brasileira escapar à armadilha dos projetos coloniais de Lula e Bolsonaro – diferentes, porque são o lado racional e irracional da mesma moeda. Com 12% ainda em maio, o prognóstico é de crescimento muito maior para o trabalhista se comparado a última eleição. Dado o enfraquecimento do petucanismo com a implosão do PSDB e a paulatina atrofia do PT, a possibilidade de se repetir um agosto de 2018 se torna cada vez mais distante. Não só isso: a guerra na Europa e a consequente decadência da hegemonia do Consenso de Washington sinalizam para parte de nossa burguesia que a repetição daquele arranjo já não é mais possível, o que pode dar viabilidade tanto para a candidatura socialista de Ciro como para o governo trabalhista. Isso fica patente nos acenos de Kassab de um possível apoio do PSD para Ciro.

Daí que testemunhamos nas redes sociais um verdadeiro furor de perfis verificados, intelectuais e outros influencers da esquerda submetidos ao neoliberalismo petista em condenar uma candidatura socialista, mais viável e cujo programa é muito mais radical. Com a tendência de queda, o lulismo entra em desespero. O resultado disso foram espetáculos tragicômicos, como a defesa de Laura Carvalho do câmbio valorizado que aniquila nossa indústria desde 1994. Um tanto mais engraçado foi a sequência de tuítes de David Deccache, economista ligado a uma ala acessória do PT, que além de defender a desindustrialização brasileira também assinou embaixo da política colonial para nosso câmbio.

Cabe frisar que o apelo a um suposto “golpe militar” para manter Bolsonaro é completamente desprovido de qualquer fundamentação na realidade. As sinalizações emitidas pelos principais oficiais vão em sentido contrário e apontam para um abandono e isolamento da ala “Silvio Frota” capitaneada pelo comandante nomeado por Lula para a MINUSTAH, General Heleno. O fantasma anti-militarista surge no mesmo instante em que os governos de Biden e Macron ameaçam nossa soberania territorial sobre a Amazônia e diversas figuras ligadas ao establishment estadunidense e eurocrata passam a demonstrar interesse em tutelar nosso processo eleitoral – alguém da esquerda estaria disposto a defender essa intromissão?

Todos querem a unidade da esquerda para enfrentar o colonialismo genocida de Bolsonaro. Lula não tem condições de ganhar a eleição e, caso ganhasse, conduziria um programa muito mais reacionário que o de Ciro Gomes. Deste modo, não resta dúvidas do caminho para isso:

O PT deve abrir mão de candidatura própria para a presidência da República e apoiar Ciro Gomes e o PDT incondicionalmente.

Essa é a autocrítica e o pedido de desculpas para os trabalhadores do Brasil que nós, marxistas, devemos por nosso erro coletivo em 2003.