Lula, Ciro e as escolhas da “esquerda”

Lula, Ciro
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Houve um tempo em que ser considerado de “esquerda” significava crer na possibilidade e defender a realização de “transformações estruturais” nas formações sociais então vigentes, principalmente naquelas caracterizadas por profundas desigualdades, como a brasileira. É o que indica, por exemplo, Darcy Ribeiro em América Latina: a Pátria Grande. Fosse por uma via “revolucionária” como a cubana; por um “socialismo-evolutivo” implantado gradualmente, como o que Salvador Allende liderou até sofrer o golpe no Chile; ou mesmo por governos de caráter “reformista”, como o de João Goulart no Brasil, o que interessava aos integrantes do chamado “campo progressista” era promover transformações profundas nas estruturas produtivas, sociais e políticas vigentes nos seus países.

Com efeito, é à luz desse ponto central que podemos constatar a trágica (ou tragicômica?) desorientação da maior parte da auto referenciada “esquerda” diante do atual quadro político no Brasil. De acordo com esses setores, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é quem apresenta uma candidatura representativa das ideias e das visões de mundo do seu campo. Pois bem, há poucos dias, circulou amplamente pelas redes sociais vídeo no qual Lula afirmava, diante de uma plateia presumivelmente composta por jovens, que a principal iniciativa governamental com vistas a proporcionar postos de trabalho para eles não deveria consistir no incentivo à retomada da industrialização, mas no fomento ao “empreendedorismo” – sugestão que teria ouvido do dono da corretora XP Investimentos, isto é, de um dos principais artífices do financismo neoliberal que, há 30 anos, devasta o Brasil.

Então, usando como exemplo a indústria automobilística, Lula se justificou afirmando que fábricas instaladas no Brasil, que em décadas passadas empregavam dezenas de milhares de trabalhadores, hoje empregam apenas pequenas frações disso. Não há dúvidas de que a redução significativa do emprego industrial em relação a outras atividades é uma tendência do capitalismo mundial nas últimas décadas, pelo menos, ou principalmente, no Ocidente. Devido à robotização e aos aumentos crescentes de produtividade, em média, as atividades industriais têm necessitado de cada vez menos trabalhadores para produzir quantidades cada vez maiores de bens. Todavia, essa constatação não basta para dar razão ao ex-presidente.

Em primeiro lugar, se é verdade que as atividades industriais em si mesmas empregam cada vez menos, os seus empregos continuam sendo, na média, os melhor remunerados. Além disso, continuam sendo as que mais induzem inovações e produzem ganhos de produtividade, além de exercer poderosos efeitos multiplicadores sobre outros setores como os serviços, principalmente os de elevada complexidade. Portanto, ainda que empreguem menos que outrora, as indústrias permanecem fundamentais e indispensáveis para viabilizar a formação de uma força de trabalho dinâmica e dotada de alto poder de consumo.

Além disso, o exemplo empregado por Lula foi infeliz. A indústria automobilística foi o “carro-chefe” da industrialização que se procurou implantar no Brasil, principalmente a partir do governo de Juscelino Kubitschek no final da década de 1950. Nos países centrais, porém, embora permaneça relevante, ela já foi há muito superada em dinamismo e importância, no que diz respeito à vanguarda da acumulação capitalista. Quando se fala em “retomar” a industrialização brasileira, não se propõe um retorno àquele passado. Não é em indústrias já amplamente estabelecidas e, de certa forma, ultrapassadas que devemos investir, mas em outras que permitam o desenvolvimento e o domínio de tecnologias de ponta, produzindo para o país ganhos excepcionais; e que, ao mesmo tempo, se mostrem vitais para garantir a segurança e a soberania nacionais em diversas dimensões. São os casos das indústrias ligadas aos recursos energéticos (petróleo, gás e, preferencialmente, as energias renováveis); da agroindústria (máquinas e eletrônicos, fertilizantes, produtos químicos, sementes geneticamente modificadas etc.); do complexo da saúde (equipamentos, produtos fármaco-químicos, materiais hospitalares etc.); das indústrias ligadas à defesa nacional; e das biotecnologias, para as quais possuímos uma espetacular dotação de recursos naturais dada a biodiversidade existente no nosso território.

São esses, não a indústria automobilística, os setores que devem liderar um novo salto de industrialização no Brasil. Mesmo porque, além da questão da geração de empregos de maior qualidade, é forçoso reconhecer que um país com as nossas dimensões territoriais e habitado por mais de 200 milhões de pessoas, altamente concentradas em centros urbanos, não conseguirá prosperar, se desenvolver e se estabilizar socialmente sem retomar um grau ao menos moderado de industrialização. Em vez disso, Lula pretendeu resumir a questão ao emprego expondo a sua preferência pelo fomento ao “empreendedorismo” que, sabemos, em geral nada mais é do que um eufemismo ao “vai lá e se vira” dado pelos ideólogos neoliberais à classe trabalhadora que o ex-presidente afirma defender.

Portanto, se podemos reconhecer que, dado o quadro atual de muitos milhões de desocupados e desalentados, qualquer ajuda governamental para que os trabalhadores “se virem” é melhor do que deixá-los inteiramente desassistidos, não parece admissível que esta seja a principal proposição apresentada por um candidato à Presidência defendido como (a) opção de “esquerda”. A não ser que, hoje, isso signifique fazer do Brasil um país de renda média baixa no qual o horizonte de expectativas dos cidadãos comuns seja ocupar-se como motoboy, manicure, entregador de Ifood, motorista de Uber e outras funções geralmente precarizadas e mal remuneradas.

Não satisfeito, dias depois, em entrevista à revista Time, Lula fez a seguinte declaração, questionado sobre qual seria a política econômica do seu novo governo:

“Eu sou o único candidato com quem as pessoas não deveriam ter essa preocupação, porque eu já fui presidente duas vezes. E a gente não discute política econômica antes de ganhar as eleições. Primeiro você precisa ganhar para depois saber com quem você vai compor e o que você vai fazer. Quem tiver dúvida sobre mim olhe o que aconteceu nesse país quando eu fui presidente da República: o crescimento do mercado. O Brasil tinha dois IPOs. No meu governo fizemos 250 IPOs. O Brasil devia 30 bilhões, o Brasil passou a ser credor do FMI, porque emprestamos 15 bilhões. O Brasil não tinha um dólar de reserva internacional, o Brasil tem hoje 370 bilhões de dólares de reserva internacional. […] Então as pessoas precisam ter em conta o seguinte: ao invés de perguntar o que é que eu vou fazer, olhe o que eu fiz.”

Em rigor, é como se afirmasse: me elejam, que depois eu verei o que fazer. Uma declaração que não indica nem o compromete com qualquer tipo de orientação, exceto gerar no eleitorado a expectativa de reproduzir o que fez entre 2003 e 2010. Isto é, em essência, proporcionar uma positiva e necessária expansão do crédito e do consumo popular, porém sem tocar nas diretrizes fundamentais da administração neoliberal no Brasil: “tripé macroeconômico”; conta de capitais aberta; câmbio flutuante e, no caso, supervalorizado devido ao aproveitamento de um “boom” excepcional nos preços internacionais das commodities, com consequente reprimarização exportadora.

Sim, houve durante o governo Lula uma melhora substancial na situação das contas externas brasileiras. Porém, seu governo não promoveu nenhuma transformação estrutural. Ao contrário, em aspectos centrais, fez um governo conservador, o que encaminhou o próprio esgotamento daquela posição aparentemente “privilegiada”, produto de condições circunstanciais. Por exemplo, entre 2003 e 2010, aprofundou-se a desindustrialização vivida pelo Brasil desde a década de 1990, levando o percentual do PIB produzido pela indústria da transformação de cerca de 18 para 15%. Seu governo praticou, de fato, algumas políticas industriais, mas fadadas ao fracasso e à desmoralização devido à sua economia política neoliberal profundamente hostil à industrialização. Mesmo assim, Lula invocou tais “realizações” para dispensar dar maiores explicações e pedir aos seus eleitores uma espécie de “cheque em branco”, justamente no campo de ação mais relevante para os seus destinos nos próximos anos. Parece pretender ganhar as eleições com base no personalismo mais extremo, um “confia em mim que tudo vai dar certo”.

Dentro do quadro crítico que vivemos, compreende-se perfeitamente que amplas parcelas da população demonstrem intenção de votar em Lula, massacradas que estão pelo desastre produzido pelos governos que o sucederam, em especial por Temer e Bolsonaro. É tamanha a carência da maior parte dos brasileiros que terem tido acesso a determinados serviços, terem experimentado a sensação de crer num futuro melhor para si mesmos e para suas famílias ou “simplesmente” terem se alimentado adequadamente são razões mais do que justas e suficientes para fazê-los desejar o retorno de Lula à Presidência. Não é isso que causa espanto, pelo contrário. O que causa é a adesão acrítica, incondicional, de setores autointitulados de “esquerda” à sua atual candidatura. Seus vínculos atuais com o campo estão muito mais relacionados à sua simbologia, à sua representação como a principal liderança “progressista” no Brasil nas últimas décadas, do que à sua prática presente, na qual tem apresentado ideias confusas e de cunho claramente conservador. Privilegiar o fomento ao “empreendedorismo” em lugar da industrialização está de acordo com o governo predominantemente conservador que fez, mas nada tem a ver com a promoção das necessárias transformações estruturais.

Enquanto isso, Ciro Gomes tem demonstrado a “audácia” de, num ambiente político e ideológico francamente hostil, propor tais transformações no seu Programa Nacional de Desenvolvimento (PND), embora certamente não isento de críticas e reparos. É Ciro, também, que há anos vem procurando avançar na conscientização do eleitorado brasileiro a respeito dos principais problemas nacionais, projetando pautas tão cruciais quanto a inauguração de um novo processo de industrialização para o centro do debate eleitoral, embora também sem ignorar o atual apelo desse suposto “empreendedorismo”. Ainda que não tenha origens políticas ou mesmo identificação explícita com o campo, hoje é Ciro quem apresenta um programa que possa ser identificado com a premissa fundamental da “esquerda” de procurar promover transformações estruturais na sociedade brasileira. A coerência com essa ideia historicamente orientadora do seu pensamento recomendaria que tais setores reconhecessem o caráter e a importância da candidatura de Ciro Gomes, além das veleidades pessoais.