Brumadinho: A Radiografia de uma Tragédia

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As tragédias são importantes oportunidades para refletirmos sobre as razões mais profundas de suas causas. O Brasil e o mundo assistiram em choque a mais um rompimento de barragem. Para além das perdas ambientais, sempre se somam às humanas e com a lama, o soterramento da historia, esperança e modos de vida do povo mineiro. Não nos cabe fazer análises técnicas de mais um crime cometido, dessa vez em Brumadinho. Mesmo porque, é bastante provável que os desvios sejam semelhantes aos que causaram o rompimento da barragem da Samarco, passados três anos. O que podemos, sim, fazer é uma análise sobre os caminhos que trouxeram o Brasil para este descalabro. Definitivamente, esta realidade não pode ser explicada apenas por frouxidão moral, laudos técnicos mal elaborados, problemas de fiscalização; como os principais meios de comunicação querem que pensemos. Claro que o tecnicismo é importante para a manutenção de uma fragata navegando nos mares da história. A questão maior que se coloca é: estaria o Brasil na rota correta?

Brasil é um país riquíssimo em recursos naturais. O curso óbvio de seu desenvolvimento transpassa o aproveitamento estratégico destes recursos. O embrião da história da Vale começa em Itabira-MG, quando investidores internacionais, donos das terras da região, fundaram o “Sindicato Brasileiro de Hematita” em 1909. Dois anos depois, um empresário americano comprou todas as ações e renomeou o antigo “Sindicato” de “Companhia de Minério de Ferro de Itabira”. O contrato de concessão de Itabira assinado em 1920 pelo presidente Epitácio Pessoa foi sucedido por recorrentes disputas que impediram a efetivação do projeto. Aproveitando-se do cenário internacional de guerra e da posição, até aquele momento, dúbia do Brasil, Getúlio barganhou vantagens econômicas para o país. Através de encontros diplomáticos conhecidos como Acordos de Washington, Getúlio conseguiu empréstimos importantes para fundar tanto a Companhia Siderúrgica Nacional, quanto a Vale do Rio Doce; após encampar as áreas antes concedidas à Companhia de Minério de Ferro de Itabira. Neste acordo, o Brasil assumiu o compromisso de fornecer minérios para a indústria bélica americana. Assim, em 1º de junho de 1942 é fundada a Companhia Vale do Rio Doce. Historiadores reconhecem a enorme habilidade da diplomacia brasileira em angariar vantagens diante deste cenário. Há evidências que existiam tropas americanas preparadas para invadir o nordeste, caso o Brasil não cedesse seu território para bases americanas e participasse de forma mais efetiva da 2 º Guerra Mundial. Após sua fundação, a Vale do Rio Doce se expandiu continuamente. Até que em 1985 foi fundado o Projeto Grande Carajás onde está assentada a maior província de minério de ferro do mundo; além de outros minerais como manganês, cobre e ouro. Soma-se uma grande estrutura como o Porto de Ponta da Madeira, em São Luís e a usina Hidroelétrica de Tucuruí.

O projeto da Vale do Rio Doce é uma afirmação de soberania. Todo país emancipado deve ter controle sobre seus recursos naturais. Tanto mais, os recursos não renováveis. Quando éramos uma colônia de Portugal, vimos muito ouro e diamantes escorrendo pelo oceano atlântico. O que ficou? O que ficou do ferro e fogo com que foi feita a exploração do pau Brasil, nossa primeira commodity? Assim como a cultura é produto do ambiente natural em que a sociedade se desenvolve, a exemplo do nosso clima tropical e de nossa culinária; também a economia, nasce e se desenvolve circunscrita às condições ambientais. Esse deveria ser o norte das relações comerciais que nos permitem apreciar um bom vinho chileno em terras tupiniquins, enquanto os descendentes dos Mapuches desfrutam de nossa cachaça no alto das Cordilheiras dos Andes.

Mas não tem sido assim que a divisão internacional do trabalho tem se estabelecido. As trocas comerciais desvantajosas permitem países extremamente limitados em recursos naturais, serem grandes players globais, gozarem de altíssimos níveis de IDH, consumirem recursos naturais de países periféricos e, ainda assim, ostentarem carimbos de nações ambientalmente sustentáveis. Mas qual seria o segredo desta desigualdade? A resposta é a agregação de valor advinda da industrialização. O movimento feito pelo governo de Getúlio Vargas na criação de empresas como a Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional e Petrobras vem do reconhecimento de que a base de desenvolvimento é produto da soberania sobre os seus recursos. Recursos que se confundem com as vocações naturais de como o país se insere no cenário internacional. Se o Brasil é assentado em jazidas de ferro, tenhamos uma empresa capaz de explorá-las de forma responsável. Tenhamos também uma empresa capaz de beneficiar estes minérios para agregar mais valor ao produto. Daí surgiram a Companhia Siderúrgica Nacional e a Vale do Rio Doce. Se estamos assentados em reservas petrolíferas, precisamos de uma empresa capaz de explorá-las. Uma empresa capaz de refinar este produto e transportá-lo. Daí surgiram a PETROBRAS, indústria petroquímica e até mesmo os estaleiros. Se temos terras agricultáveis, precisamos desenvolver cultivares e técnicas de produção. Daí surgiu a EMBRAPA. Se somos um país tropical e populoso, desenvolvamos uma medicina tropical. Daí surgiu a Fundação Carlos Chagas. Se temos a maior floresta tropical do mundo, precisamos entender sua dinâmica, daí surgiu o INPA. São as vocações naturais de um país guiando seu desenvolvimento. Setores nevrálgicos, únicos e estratégicos alavancam a cadeia produtiva nacional e comumente representam monopólios naturais. Ou seja, áreas em que os investimentos necessários são muito elevados e os custos marginais são muito baixos, caracterizando-se por ausência de competição. Um dos exemplos mais interessantes deste fenômeno é a Noruega. País que detém reservas petrolíferas. Noruega delegou ao estado sua prospecção e criou um fundo soberano com seus dividendos; para que os benefícios advindos da exploração desse recurso não renovável sejam aproveitados pelas gerações futuras.

Em 1997, o Brasil abdicou da sua autonomia de desenvolvimento através da privatização da Vale do Rio Doce e de outras empresas estratégicas, vítimas da onda neocolonial representada pelas gestões de Fernando Henrique Cardoso. A vale foi doada ao capital internacional em troca do irrisório valor de U$ 3,3 bilhões. Sendo que apenas o lucro da empresa daquele ano ultrapassou este número em mais de quatro vezes. Crime de lesa pátria. Não somente pelo grave e condenável processo fraudulento e antidemocrático em que se deu a privatização. Mas também, e principalmente, pela entrega de um dos motores propulsores de nosso desenvolvimento e industrialização. A Vale do Rio Doce privatizada deixou de ser uma promotora de desenvolvimento estratégico e industrial para ser uma empresa eminentemente extrativista, focada na maximização de lucros imediatos à investidores internacionais e completamente descompromissada com as atuais e futuras gerações. Abdicamos, com a privatização da Vale e de outras estatais, da autonomia e soberania sobre o nosso processo de desenvolvimento e industrialização.

O que se sucedeu após a onda privatizante de Fernando Henrique Cardoso foi muito didático. Em 2001, a China entra na Organização Mundial do Comércio e injeta mais de um bilhão de pessoas no mercado consumidor global. China, ainda um país rural, fortalece seu processo de urbanização. Com isso, passa a comprar materiais primários do planeta inteiro dando inicio ao ciclo virtuoso de commodities. Quando o presidente Lula assume a presidência em 2003, o cenário internacional já é extremamente favorável. Em suas gestões, as exportações de minérios e alimentos aumentaram significativamente. Com o aumento das exportações, também cresceu a produção de riqueza nacional. Este cenário permitiu às gestões petistas o financiamento de importantes investimentos nas áreas sociais. Entretanto, não houve movimentos na direção da reversão da entrega da nossa soberania e dependência dos ventos internacionais. As bases e motores propulsores do processo de desenvolvimento e industrialização brasileiros continuaram nas mãos de investidores internacionais. Especialmente os curto-prazistas. Ademais, a exploração de nossos recursos naturais foi facilitada por recorrentes processos de flexibilização ambiental. Lembremos da criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade para diminuir as atribuições do IBAMA e o tornar responsável exclusivamente pelos processos de licenciamento ambiental. Lembremos também da reforma do código florestal. Foram movimentos que partiram de setores da produção agropecuária e mineral que naquele momento estavam surfando na onda do ciclo de commodities. Este ponto, associado aos financiamentos de campanhas, subornos e frouxidão moral, foi o gatilho superficial para catástrofes como a da Samarco e da Vale. Apenas o gatilho. A arma, como estamos analisando, é muito maior. Com empresas como a Vale entregues ao capital internacional, o estado brasileiro vê limitadas suas estratégias de desenvolvimento; não tendo controle nem mesmo sobre os preços de seus principais produtos de exportação, pois, tratam-se de commodities. Os números da participação da indústria na produção de riqueza brasileira não deixam dúvidas. Não param de despencar.

A tragédia da Vale reflete a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento. O Brasil está imerso em um sistema internacional extremamente competitivo e sempre, protecionista, sem saber para onde ir. Um barco com o mastro quebrado navegando em águas turbulentas ao sabor das correntes. Nenhuma sociedade se desenvolve sem metas estabelecidas. Nenhuma sociedade se desenvolve sem indústria e tecnologia. Nossas equivocadas escolhas, especialmente àquelas assumidas na década de 90 e não revertidas nos anos seguintes, delegaram-nos à posição colonial de meros exportadores de materiais primários.

Urge a necessidade de formatarmos um projeto que aproveite as vocações naturais como motores para o desenvolvimento de cadeias produtivas que nos provejam soberania sobre nossos recursos estratégicos, emprego e produção de bens com elevado valor agregado. Tudo isso associado à produção de ciência e tecnologia. A tragédia da Vale reflete os problemas do neocolonialismo. O neocolonialismo não se reverte com tecnicismo. Não são mudanças em processos de licenciamento e fiscalização que nos tirarão deste mar de lama. O que causou a tragédia do vale, em última análise, também é o processo responsável pela falência do estado brasileiro. A falência do estado que gera mais de 60 mil homicídios todo ano junto com 12 milhões de desempregados. Não caiamos no esforço da mídia corporativa em nos convencer que as razões da tragédia estão circunscritas à imperícia, imprudência e/ou negligencia dos envolvidos. A lama da Vale reflete a lama em que o navio Brasil foi largado…e navega…com mastro quebrado.