Conflito Rússia-Ucrânia: o que significa e como nos toca

Conflito Rússia-Ucrânia o que significa e como nos toca
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Vivemos um momento histórico. Pela primeira vez, desde o fim da Guerra Fria, o Atlântico Norte, liderado e hegemonizado pelos Estados Unidos, depara-se com um enfrentamento amplo e ostensivo ao seu sistema de dominação, perpetrado não por um pequeno país, como foram os casos de Iraque e Líbia, mas pela Rússia.

Não se trata apenas de um conflito militar, no qual a Rússia revidou as hostilidades da Ucrânia, Estado-fantoche do Atlântico Norte, contra os russos de Donbass e contra a própria fronteira russa, mas de um confronto civilizatório, no qual se digladiam, de um lado, o projeto da Nova Ordem Mundial unipolar, de dominação geopolítica, geoeconômica e espiritual por parte das corporações financeiras e midiáticas e das instituições militares norte-atlânticas, e, de outro, o projeto de um mundo multipolar capitaneado pela ascensão econômico-militar russo-chinesa, aberto a projetos nacionais independentes e integrados numa nova forma de globalização, definida pela integração tecnológica e econômica mas não pela subordinação militar e pela homogeneização cultural.

Não deixam dúvida quanto ao caráter total do conflito tanto o posicionamento público anti-Rússia dos barões capitalistas transnacionais como George Soros e David Rothschild, dedicados à espoliação econômica e ao aviltamento psicossocial das nações em prol dos devaneios globalistas de uma “sociedade aberta”, desterritorializada e caótica, quanto o pronunciamento de Putin de que o Ocidente seria um “império de mentiras”, assentado na diferença entre o poder aparente das instituições e das formas de governo – das democracias, dos partidos, dos parlamentos, das eleições, da imprensa etc. – e o poder de fato do partido único financista e belicista que se esconde por trás do poder aparente e o sustenta para manipular e controlar as sociedades sem ser fiscalizado e sem sofrer oposição.

Não se pode dizer que os Estados Unidos não procuraram, conscientemente ou não, esse conflito. Os Estados Unidos inocularam no continente europeu um clima de conflagração bélica a partir da Ucrânia, presidida desde 2014 por governantes títeres, a fim de aprofundarem o seu controle político, militar e econômico sobre a União Europeia, particularmente sobre a Alemanha, com o fito de romper as fortes relações econômicas da Alemanha com a Rússia e, assim, prejudicar a indústria alemã, a única no bloco OTAN capaz de competir com a sua, colocando em prática o antigo e famigerado Plano Morgenthau, desenhado pelos Estados Unidos após a II Guerra Mundial para desindustrializar a Alemanha e transformá-la em uma colônia pastoril. Além disso, os Estados Unidos também conseguiram encaminhar a discussão acerca da adesão à OTAN da Suécia e da Finlândia, dois países historicamente neutros e com fortíssimos complexos industriais-militares nacionais com estreitas relações com a Rússia.

Espremida entre os Estados Unidos e a Rússia, a Europa tende cada vez mais a se dividir entre duas zonas de influência, uma estadunidense e outra russa, tal como na Guerra Fria, mas com muito mais intensidade agora, devido ao declínio do nacionalismo dos países europeus, que ainda era significativo no pós-guerra mas deixou de ser nas últimas décadas em razão da utopia transnacionalista da União Europeia, fulminada pela realidade dos grandes poderes nacionais. A Europa desaparece cada vez mais do primeiro plano da História, ocupado pelas principais potências – no momento, Rússia, China e Estados Unidos. Comprova-se, assim, a previsão do economista alemão Friedrich List (1789-1846) de que somente os países territorialmente grandes seriam capaz de sustentar o protagonismo histórico, cabendo aos países pequenos a posição de satélites.

O Brasil, em todo esse cenário, não pode ter outra diretriz de ação que não o interesse nacional, o único critério possível de atuação geopolítica. A moral privada e as preferências subjetivas não podem suplantar a Razão de Estado, que coloca a permanência histórica da nação como objetivo supremo. Nesse sentido, interessam diretamente ao Brasil a resistência de Putin às forças financistas e militares norte-atlânticas, que ameaçam a nossa integridade territorial e a nossa coesão social, e a abertura de uma maior multipolaridade internacional pela ascensão eurasiática impulsionada por Rússia, China e Índia. O Brasil jamais estará seguro num mundo controlado pelas forças globalistas e financistas opostas a Putin, que não escondem seus intentos de internacionalizar a Amazônia, que corresponde a metade do nosso território, e de semear a discórdia e a cizânia em nossa sociedade por meio de “guerras culturais”, para que, divididos, sejamos mais facilmente dominados. O fortalecimento geopolítico da Rússia e, mais amplamente, da Eurásia, atua como um contrapeso ao imperialismo anglo-saxão e garante maiores chances de paz e tranquilidade para o Brasil.

Dessa forma, a posição que melhor contempla o nosso interesse nacional é a aproximação pragmática com a Rússia, dentro das nossas limitadas possibilidades de um país desarmado, desindustrializado e institucionalmente debilitado, que orientam para uma neutralidade amigável, sem nos envolvermos diretamente nem nos submetermos a sanções. A neutralidade nos posiciona em sentido divergente aos Estados Unidos, mostrando ao restante do mundo que o Brasil se habilita a participar ativamente da multipolaridade emergente. Porém, em face da vulnerabilidade do nosso país às pressões e chantagens estadunidenses, ela deve ser temperada com rodeios diplomáticos que não nos levem a um rompimento com o Atlântico Norte. Parece ser esse o entendimento do Governo Federal e do Itamaraty, pelo menos até o momento.

A aparente esquizofrenia da diplomacia brasileira, na qual as declarações de neutralidade proferidas por Bolsonaro acompanham o voto alinhado aos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU, ao mesmo tempo em que a mensagem do voto deixa claro que o Brasil gostaria de ter se mantido neutro, além de expressar a fraqueza diplomática brasileira e a incapacidade do Brasil de sustentar uma posição objetivamente mais independente, como faz a Índia, país atômico e que continua desenvolvendo sua indústria e sua defesa, também aponta que o Brasil, dentro do possível, não pretende se tornar um satélite dos EUA e, sem romper com ele, procurará ter um papel mais ativo na multipolaridade emergente. A situação do Itamaraty deixa clara a necessidade do Brasil adentrar o seleto clube dos países dotados de arsenais nucleares e desenvolver o seu próprio parque produtivo e o seu próprio sistema de pagamentos, para podermos defender com mais efetividade a nossa soberania e os nossos interesses, inclusive o de se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

De todo modo, caberá somente ao Brasil definir o seu destino. Tanto mais encontrará condições e oportunidades para isso quanto mais o poder imperial dos Estados Unidos, atual potência hegemônica, sofrer a concorrência de outras potências mundiais e ver tolhido o seu instinto excepcionalista expresso na ideologia do Destino Manifesto. Os benefícios da multipolaridade serão muito mais aproveitados, por sua vez, se apostarmos no desenvolvimento e na integração nacionais consoante uma estratégia nacionalista que unifique e coesione a Nação em torno de um futuro grandioso, de modo a termos condições materiais de participarmos de uma forma ativa e independente num mundo não mais dividido entre centro e periferia mas entre múltiplos centros e suas respectivas zonas de influência. Pelo nosso tamanho e riqueza, temos todas as condições para constituirmos um desses centros, unificando a civilização latino-americana e realizando o potencial universal do nosso povo mestiço e sincrético, tal como sonhado por José Bonifácio, Patriarca da Independência e visionário da nossa grandeza.