Voto feminino num país periférico: a democracia restrita como marca

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Por Juliana Leme Faleiros – Falar em direito das mulheres é falar da vida de metade da população mundial; é tratar das circunstâncias de vida de milhares de meninas e mulheres; é refletir sobre as reais condições de suas existências. Pode-se falar do acesso à educação, de direitos reprodutivos e sexuais, de direitos patrimoniais, de mercado de trabalho e de formas de violências. As pesquisas mostram que ainda há muito o que falar e reivindicar.

Aqui, neste momento, o destaque é para os direitos políticos, o direito de votar e ser votado. Muito se diz que, no Brasil, a mulher conquistou esse direito em 1932 com o Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro. Mas, de quais mulheres se fala quando se aponta esse marco legal? A respeito disso, como ensina Sueli Carneiro, é preciso enegrecer alguns pontos sensíveis à história do Brasil.

A Constituição da República de 1891, em seu art. 70, dispôs que os cidadãos maiores de 21 anos poderiam se alistar eleitores sem que houvesse distinção de sexo. Apesar disso, o entendimento generalizado era no sentido de que “cidadãos” significava o cidadão do sexo masculino e todos os óbices possíveis para alistamento de mulheres foram sendo colocados.

Em 1932, dada a pressão, tanto nacional quanto internacional, editou-se o Código Eleitoral que, de fato, dispõe, em seu art. 2º, que “é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo”. No entanto, a fim de “preservar o espírito feminil”, seu art. 121 isentava os maiores de 60 anos e as mulheres “de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral” tornando o voto feminino facultativo. Em 1935, a Lei nº 48 alterou o Decreto nº 21.076 de 1932 e passou a dispor que as mulheres seriam obrigadas ao alistamento caso exercessem função pública remunerada (art. 4º). As mulheres, portanto, passaram a ser portadoras de direitos políticos de forma facultativa, sendo obrigatório apenas às funcionárias públicas.

Outras alterações legislativas foram sendo paulatinamente introduzidas e remodelando o direito ao voto das mulheres como em 1945, com o Decreto-Lei nº 7586, de 28 de maio, que obrigou ao alistamento todas as mulheres, exceto as que não exercessem função lucrativa e em 1965, com a Lei nº 4737, que instituindo o novo Código Eleitoral, retirou as exigências a respeito das atividades das mulheres.

No entanto, e esse ponto é demasiadamente importante, as Constituições da República anteriores à vigente estabeleceram que os analfabetos estavam proibidos de se alistarem eleitores. É somente em 1988 que os analfabetos passam a ter a faculdade de se alistarem.

Conforme pesquisa formulada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a alfabetização só passa a objeto de efetiva política pública no Brasil nos anos de 1960 com a Lei nº 5.379/1967 que instituiu a Fundação MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, voltada, inicialmente, para a população urbana. Esse dado é revelador para o objeto de análise proposto, pois, até então se tem uma legislação que institui o voto aparentemente universal, mas exclui parte significativa da população brasileira que é analfabeta, formada majoritariamente pela classe trabalhadora negra.

Durante o século XX, as mulheres negras, pretas e pardas sob a formulação utilizada pelo IBGE, e indígenas, compuseram o grupo com maior déficit de alfabetização, alcançando índices melhores somente na última década do século passado. A conclusão do IBGE é no sentido de que há “coincidência das fronteiras raciais e das fronteiras socioeconômicas. As desigualdades raciais são também desigualdades sociais e ficam flagrantes quando examinamos os dados relativos à alfabetização, desagregando-os pelas diferentes categorias de cor ou raça que compõem a população brasileira.”

Na década de 1940, por exemplo, período de vigência do Código Eleitoral de 1932, os negros alfabetizados eram menos da metade dos brancos. Neste período, apenas 32,79% de mulheres eram potencialmente portadoras de direitos políticos, pois alfabetizadas; e, numa conjugação de raça e alfabetização, tem-se: 41,02% de mulheres brancas eram alfabetizadas enquanto 14,51% das mulheres pretas e 21,04% das mulheres pardas.

Lilia Schwarcz, em “O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial”, afirma que a raça define o Brasil e discordar desta assertiva é não olhar o país no qual se vive.

Dessa forma, sobre o direito das mulheres de votar e ser votada em 1932, o que se pode dizer é que as mulheres alfabetizadas, majoritariamente brancas, conquistaram esse direito e que, ao reverso, grande contingente de mulheres negras e indígenas aguardaram décadas até que a participação na vida pública lhes fosse autorizada.

Lindolfo Collor, ao dispor sobre o Decreto do Trabalho das Mulheres de 1932, exprime com acuidade a forma de organização política neste país: “não se encontra nele nenhuma inovação perigosa e as próprias regras mais ou menos universalmente aceitas são adaptadas ao espírito rigorosamente brasileiro.”

A ideia de que a legislação brasileira acompanha pari passu a legislação de países centrais ou até mesmo mais avançada que alguns deles – as mulheres francesas conquistaram o direito de voto em 1944 – é uma construção no mínimo enganosa. Um país periférico, historicamente organizado pelo alto e com marco estrutural de democracia restrita às classes dominantes, constrói, em verdade, suas bases nas entrelinhas legislativas sempre em atendimento rigoroso ao “espírito brasileiro”.

Por: Juliana Leme Faleiros.