O viralatismo militante e o ataque à alma brasileira

O viralatismo militante e o ataque a alma brasileira
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“Por complexo de vira-lata eu entendo a inferioridade que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”

Por Diego Abreu – Apesar de inicialmente pensada como uma imagem descritiva da sabujice crônica de grande parte do jornalismo desportivo brasileiro nos tempos de Nelson Rodrigues, a metáfora rodrigueana do complexo de vira-lata acabou consagrando-se como um dos conceitos mais produtivos e amplamente empregados do pensamento social em nosso país. Justo! Afinal, não faltam em nossas terras tropicais exemplos de indivíduos e grupos que incorporam de uma maneira quase perfeita os atributos do complexo de vira-lata: o pessimismo crônico, a subalternização voluntária e o narcisismo às avessas. O dramaturgo recifense não foi o primeiro a denunciar essa patologia. Alberto Guerreiro Ramos, outro pensador da primeira prateleira nacional, já no início da década de 1950 defendia a noção de hipercorreção, isto é, a tendência, generalizada na intelectualidade brasileira, de aplicar teorias estrangeiras a problemas do país sem qualquer preocupação de filtragem ou adaptação. Independente da etiqueta usada para nomear o fenômeno, a realidade é que o deslumbramento diante do alienígena e a rejeição da própria nacionalidade são características tão perniciosas quanto profundamente arraigadas da personalidade coletiva brasileira.

Durante grande parte do século XX, graças à preservação de um certo espírito de altivez no cenário intelectual e político brasileiro, conservou-se um estigma sadio em torno da figura do vira-lata. Evidentemente, não faltavam indivíduos dignos da alcunha, homens e mulheres que incorporavam o viralatismo de maneira religiosa. Contudo, havia um certo pudor em admitir-se um vira-lata. De fato, não era de bom grado apresentar-se aberta e diafanamente como alguém que considerava o seu próprio país inferior aos demais; que se via como parte de uma coletividade fadada ao fracasso e à submissão. Portanto, mesmo os defensores das teorias mais profundamente depreciativas do Brasil e da brasilidade buscavam ocultar esse fel através do uso de um discurso hermético e malabaresco ou da realização de acenos pontuais e superficiais a aspectos positivos do país. Porém, nas últimas décadas, o brasileiro de mente colonizada, atingido em cheio pelo complexo de vira-lata, perdeu definitivamente a sua timidez. De tal modo, deu-se origem a um tipo mais excêntrico (e mais perigoso) de viralatismo. Apoiados na genialidade de Nelson Rodrigues, podemos denominar esse novo tipo de vira-lata militante.

Parafraseando o dramaturgo pernambucano das Laranjeiras, por viralatismo militante eu compreendo o esforço sistemático, intencional, efusivo e politicamente orientado de certos indivíduos e organizações de advogar pela inferioridade e pelo fracasso do Brasil, promovendo um sentimento de vergonha diante do seu passado, descrença em seu presente e desesperança em seu futuro. O viralatismo militante marca um salto qualitativo em relação ao vira-lata rodrigueano: enquanto o último agia movido pela espontaneidade e por um certo grau de ingenuidade, o militante do viralatismo age com método, consciência e disciplina. Seus ataques ao seu povo são fundamentados em teorias sofisticadas, cheias de termos em English, e expressam não apenas um sentimento negativo em relação ao Brasil, mas um afã programático de destruição dos elementos imateriais que constituem a alma do país. O viralatismo militante é uma doutrina de autossabotagem intelectual e política; é a arte dissimulada de atirar contra seu próprio companheiro de fileira ao mesmo tempo que finge marchar na mesma direção. Enquanto o complexo de vira-lata original poderia ser qualificado como um traço orgânico da sociedade e da subjetividade coletiva brasileira, o viralatismo militante é incensado e estruturado de fora do país, com a valiosa cooperação de grupos internos, operado como uma arma eficiente de prostração nacional, facilitando tanto a dominação do país quanto o espólio de suas riquezas.

Inúmeros são os recursos simbólicos, propagandísticos e retóricos empregados pelos militantes do viralatismo programático em seu esforço de envenenamento do espírito nacional. De tão vasto o arsenal, torna-se virtualmente impossível catalogá-lo. Porém, algumas dessas armas merecem referência pela recorrência do seu uso. A primeira delas, certamente a de emprego mais comum, é a fetichização colonizada e irreal do estrangeiro. Quem nunca viu vídeos gravados em Nova Iorque, Londres ou Paris (a depender do gosto e da inclinação política do indivíduo) em que tais cidades são descritas como verdadeiros Édens terrestres? Quem nunca viu turistas em estado de êxtase andando pela Times Square com a mesmo espírito de devoção com que os fiéis mais fervorosos caminham pelas terras sagradas em romaria? Em tais registros, nunca são retratados os problemas dessas metrópoles; magicamente, os ratos de Paris, o clima cinzento de Londres e a violência de Nova Iorque são apagados, restando apenas uma representação idealizada de tais cidades. Evidentemente, esse tipo de mistificação não serve para apresentar uma visão realista da vida vivida fora do Brasil, mas constrói uma fábula tão mentirosa quanto sedutora: a fábula de que nosso país é uma ilha de miséria e atraso no meio de um mundo de prosperidade e opulência. O resultado dessa operação é a criação de uma terrível mistificação no coração dos brasileiros: a ideia de que nossos problemas não são frutos das escolhas políticas e dos erros administrativos de nossa classe mandatária, mas são vícios de essência do Brasil, inerentes à própria natureza do nosso povo e da nossa nação. Não é preciso ser nenhum gênio da lógica para entender o porquê de tantas pessoas poderosas promoverem e incentivarem o viralatismo militante.

Outra ferramenta retórica comumente empregada pelo vira-lata militante é o sectarismo desonesto e seletivo. Ainda que muitos dos cruzadistas da guerra contra o Brasil tivessem o sonho de cuspir em tudo que existe em nosso país, a força da realidade impõe o reconhecimento de nossos méritos civilizacionais enquanto nação: o relativo desenvolvimento econômico de certas cidades e regiões, a grandeza de nossa cultura, o caráter sublime de nossa natureza, o valor de nossa gente, etc. Não conseguindo mistificar o valor de tais elementos constitutivos da brasilidade, o militante do viralatismo emprega a tática do sectarismo de ocasião, atribuindo tais virtudes não à totalidade da nação ou do povo, mas a algum grupo artificial que possa ser diferenciado (de preferência, em antagonismo) do restante do país. No jogo de metonímias do sectarismo vira-lata, quando o país cresce economicamente, não é uma conquista nacional, mas apenas dos empreendedores que carregam o país nas costas. Quando alguma paisagem deslumbrante é avistada, não se tratam mais das belezas do Brasil, mas de alguma região ou estado. Quando alguma das nossas riquíssimas manifestações culturais é exaltada, em vez de ser reconhecida como uma expressão da brasilidade, sua existência é atrelada a algum fragmento de Brasil, tornando-se a música dos negros, a literatura do Nordeste, as tradições gaúchas, a arte indígena, etc. Há, portanto, uma regra religiosamente seguida pelo ativista da inferioridade brasileira: tudo que remeta a algum aspecto negativo ou degradado da realidade deve ser associado ao Brasil; por outro lado, tudo que pode ser considerado positivo ou engrandecedor deve ser completamente alienado do país. Mesmo que isso implique distorcer o mundo ou criar arbitrariamente categorias artificiais, o importante é defender intransigentemente a narrativa binária transformada em mantra: nada no Brasil presta; tudo fora do Brasil é melhor.

Em sua caraterização do comportamento próprio do vira-lata, Nelson Rodrigues destacou as implicações políticas dessa autodepreciação crônica: “o subdesenvolvido faz um imperialismo às avessas. Vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia”. De fato, um dos objetivos principais do viralatismo militante é instrumentalizar uma das etapas mais importante do processo de domínio de um povo: a colonização de sua mente e de seu coração. A partir do momento em que se convence alguém de sua inferioridade perante o outro, torna-se muito mais fácil subjugá-lo, pois os fundamentos de sua resistência, sua honra e seu orgulho, já lhe foram exauridos. Portanto, os grupos políticos e econômicos que promovem de maneira sistemática toda forma de discurso depreciativo em relação ao Brasil atuam, de forma consciente ou não, como armas de ataque e subordinação do país. Enquanto no século XIX as conquistas coloniais eram operadas através do uso de canhoneiras e artilharia, o colonialismo contemporâneo, coordenado pelas elites transnacionais apátridas, usa o poder da linguagem para colocar uma nação de joelhos sem disparar um tiro.

No entanto, a ameaça instituída pelo viralatismo programático vai além da subjugação por forças oligárquicas forasteiras. Estigmatizar todos os elementos inerentes à brasilidade significa atacar os alicerces imateriais da nossa nacionalidade, enfraquecendo os laços culturais e espirituais que consagram e solidificam a unidade do Brasil. Se as nações do mundo desenvolvido contam com um sólido cinturão de instituições nacionais e uma generosa integração econômica e comercial entre as diferentes regiões e grupos sociais, países como o Brasil, ainda em processo de formação do sua estrutura como Nação, carecem de tais elementos geradores da solidariedade patriótica e da pertença nacional. Portanto, valores intangíveis como o orgulho de ser membro de uma coletividade histórica, o amor pelas manifestações culturais ou o culto às realizações de seu povo representam um dos pilares mais importantes de conservação da própria materialidade do país, desnutrida do arcabouço de laços políticos e econômicos que o sustentem.

Em face desse cenário de grave ameaça à própria essência do nosso país, surge uma pergunta inescapável: o que é possível fazer para combater esse avanço do viralatismo militante contra a brasilidade? Ainda que medidas de maior alcance e eficiência só possam ser tomadas pelo próprio sistema político que, não raro, impulsiona o projeto de ataque à alma nacional, o mestre Nelson Rodrigues, com sua defesa intransigente do escrete canarinho durante as décadas de 1950-1970, tem muito a nos ensinar sobre as formas efetivas de se combater o complexo de vira-lata. Enquanto o viralatismo se fortalece com o fomento à fragmentação social e ao ressentimento do povo contra sua nacionalidade, a promoção de um sentimento de pertença coletiva e orgulho generoso de nossa Pátria atuam como um poderoso antídoto ao veneno da autodepreciação. Nem sempre é fácil encontrar motivos para se alegrar com o nosso país; especialmente quando os grandes veículos de mídia e de entretenimento, peças ativas no projeto de colonização mental do país, apenas oferecem ao público uma gavagem de ideias e imagens desabonadoras sobre o Brasil, promovendo uma narrativa única de degradação e humilhação. Porém, é preciso lembrar dos grandes feitos de heroísmo dos grandes brasileiros, das virtudes civilizacionais deste país e das qualidades pujantes no nosso povo. Estamos na terra do samba, do baião, da toada, da milonga, da viola, da mestiçagem, do sincretismo e do futebol mulato, segundo Gilberto Freyre, jogado no balanço da capoeiragem. Somos o país que, enquanto as nações ricas do Atlântico Norte se barbarizavam em segregações raciais e apartheids, ensinava ao mundo que é possível integrar e caldear diferentes culturas, etnias e religiões para formar uma unidade mais rica e complexa, uma verdadeira operação barroca de superação das antíteses a partir da construção de uma síntese mais generosa. Ainda que os problemas da nossa realidade possam exaurir nossa energia, é preciso lutar com vigor contra o viralatismo militante e seu projeto de destruição da alma nacional. E, se em algum momento nos faltar inspiração, nada melhor do que buscá-la nos escritos de um dos guerreiros mais tenazes e geniais nessa batalha pelo resgate da grandeza do Brasil. Com a palavra, Nelson Rodrigues:

“O que se faz, na Europa, é uma imitação de vida. Ao passo que nós ‘vivemos’ de verdade, e repito: — nós vivemos a vida, em todas as suas possibilidades e consequências. Numa simples jogada, nós pomos uma carga de vontade, de caráter, de personalidade, de invenção que o europeu sequer compreende. Eu diria ainda que nós também ‘vivemos’ o futebol, ao passo que o inglês, ou o tcheco, o russo apenas o joga. Há um abismo entre a seca objetividade europeia e a nossa imaginação, o nosso fervor, a nossa tensão dionísica.”

Por Diego Abreu

 

Referências

RODRIGUES, Nelson. A Pátria de Chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.