O reconhecimento internacional da violência de gênero como estrutural no Brasil

O reconhecimento internacional da violência de gênero como estrutural no Brasil
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Por Juliana Leme Faleiros – Em junho de 1998, Márcia Barbosa de Souza, uma moça de 20 anos do interior paraibano, foi encontrada morta numa região de difícil acesso em João Pessoa, capital do estado, com marcas de espancamento. A investigação do crime apontou Aércio Pereira de Lima, então deputado estadual, como autor do crime, o que levou a um deslocamento ou ampliação da discussão: o crime transbordou das páginas policiais para as editorias políticas dos meios de comunicação. O caso concreto – moça interiorana assassinada por um homem público – foi permeado pelo mau uso da imunidade parlamentar, pela letargia em processar e julgar os responsáveis e, desse modo, em demonstrar a eficiência seletiva do Estado brasileiro em efetivar direitos fundamentais.

Em razão disso, o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e, em 24 de novembro de 2021, veio a público a decisão do “Caso Barbosa de Souza y Otros vs. Brasil”. Nela, o Brasil foi condenado à implementação de medidas de satisfação, ou seja, a publicação e divulgação da sentença com ato de reconhecimento acerca de sua responsabilidade internacional. Além disso, determina que o Brasil garanta a não repetição, isto é, empreenda políticas públicas que mapeiem e previnam a violência contra as mulheres, com análises quantitativas e qualitativas, promova a formação adequada das forças policiais a respeito das questões de raça e de gênero e eventos de conscientização na Assembleia Legislativa da Paraíba sobre a violência de gênero e a má utilização da imunidade parlamentar para estabelecer privilégios e, ainda, adote medidas nacionalmente uniformes a respeito da investigação sobre feminicídio. Por fim, a sentença estabelece o pagamento de indenização por danos materiais e imateriais aos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

A decisão é significativa e merece atenção em vários pontos sendo que, nesta oportunidade, três serão salientados. O primeiro refere-se ao reconhecimento do caráter estrutural e generalizado da violência de gênero presente na sociedade brasileira, o que caracteriza a persistência da violação de direitos humanos. A existência de uma cultura de tolerância e romantização de violência dessa natureza incrementa a naturalização de feminicídios, a banalização de atos orientados pela desigualdade de gênero e, ainda, minimiza os efeitos sociais e políticos a respeito da manutenção de dados alarmantes quanto à ocorrência das mais variadas formas de violência e discriminação.

O segundo ponto – importantíssimo, diga-se – está no reconhecimento de uma perspectiva racial presente na violência de gênero. A sentença destaca que a taxa de vitimização das mulheres negras no Brasil é 66 vezes maior do que das mulheres brancas e que os dados mostram que no primeiro semestre de 2020, 75% das mulheres assassinadas eram negras. Sim, o Brasil é um país verticalmente racializado com as mulheres negras na base dessa infame pirâmide e o reconhecimento internacional e institucional desse aspecto é fundamental para desmistificar a rançosa democracia racial.

Por fim, destaca-se a atuação dos meios de comunicação. Ao reconhecer a violência de gênero racializada como um elemento estrutural da sociedade brasileira, a sentença também aponta as empresas de comunicação como difusoras dessa estrutura. No caso sob exame levado à Corte IDH, sendo o autor do crime um homem de destaque no cenário político, os meios de comunicação se voltaram para a vítima: vasculharam sua vida, colocaram em dúvida sua conduta moral e sua reputação. Trouxeram para o centro do debate a sua subjetividade a fim de reduzir a ênfase no ato em si – o feminicídio – praticado por um homem branco. A mídia enfatizou o histórico de homem público carregando na tinta para conferir-lhe credibilidade, num clássico exemplo de violência midiática.

Sobre essa forma de violência – midiática – é sempre importante lembrar o “caso Eloá” e a conduta dos diversos comunicadores que transformaram em espetáculo a prática criminosa de Lindemberg Alves, o autor do crime. Lindemberg manteve Eloá e Nayara, então menores de idade, em cárcere privado por mais de 100 horas, a todo instante televisionado. O caso é muito bem relatado no documentário “Quem matou Eloá?” por mostrar tanto a romantização das condutas criminosas por parte dos meios de comunicação quanto por mostrar os equívocos das forças policiais. A forma de agir da chamada grande imprensa e dos agentes públicos, ao não conferirem gravidade extrema ao crime, pode ser explicada pela naturalização da violência e por tratarem a situação como mais uma briga entre namorados.

Sobre o Caso Márcia, vale destacar que, em 2007, após amplo uso de recursos protelatórios e de ser protegido pela imunidade parlamentar, Aércio Pereira de Lima, feminicida de Márcia, foi, finalmente, condenado a 16 anos de prisão. No entanto, teve direito de recorrer em liberdade e morreu em 2008, recebendo as honrarias de estilo da Assembleia Legislativa paraibana e do Governo do Estado, que declarou luto oficial de três dias.

A decisão da Corte IDH no “Caso Barbosa de Souza y Otros vs. Brasil” traz luz a uma questão estrutural da sociedade brasileira, mas essa não é a primeira vez que a Corte se debruça sobre essa forma de violação de direitos humanos – a violência de gênero racializada e estrutural no Brasil. No “Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil” o país foi condenado, em 2017, pela violência policial e pelo estupro de três jovens em duas incursões na Favela Nova Brasília em 1994 e 1995. Ambos os casos têm em comum a letargia em processar e julgar os responsáveis e, além de outros comandos decisórios específicos de cada processo, as sentenças reconhecem a persistência dessa forma de violação de direitos humanos, impondo a necessidade de formação continuada sobre as questões de gênero e as formas de violência correlatas, sejam os violadores agentes do Estado ou agentes da iniciativa privada. Aliás, impõem que tanto a investigação quanto o processo penal devem ser orientados sob uma perspectiva de gênero a fim de contribuir para a reversão dos dados estatísticos de alto índice de violência.

Desse modo, o que se pode assinalar sobre o “Caso Barbosa de Souza y Otros vs. Brasil” é o reconhecimento acerca da “reincidência” do Brasil no que diz respeito à violência de gênero e que todos – indivíduos e entes públicos e/ou privados – devem pressionar para que essas sentenças internacionais sejam, de fato, cumpridas.

Por Juliana Leme Faleiros, mestra em Direito Político e Econômico (MACKENZIE). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Graduada em Direito e Ciência Política. Advogada e professora.