Uma xícara de café nunca é só uma xícara de café

A imagem mostra cena do filme "Que horas ela volta", em que a patrona é servida uma xícara de café.
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Juliana Leme Faleiros – O trabalho doméstico no Brasil é majoritariamente realizado por mulheres. De acordo com IBGE elas dedicam, em média, 21h por semana para as atividades domésticas enquanto os homens, 11h, sendo que, as mulheres brancas dedicam 20h e as mulheres negras, 22h. Além disso, ainda de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres pertencentes às classes mais altas comprometem 18h por semana em atividades dessa natureza enquanto “as mulheres que fazem parte dos 20% com menores rendimentos domiciliares per capita realizam, em média, 24,1 horas semanais.” Ou seja, quanto maior o poder aquisitivo, maior a probabilidade de terceirizar os serviços domésticos para outras mulheres.

A respeito do trabalho doméstico ao redor do mundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que essa categoria tem níveis de remuneração mais baixo no mundo e cerca de 90% não têm seguridade social. Em síntese, a OIT revela que, em 2013, havia 67 milhões de pessoas adultas exercendo tais atividades sendo que, desse total, 80% eram mulheres. No caso da América Latina e Caribe 18 milhões de pessoas exercem essa atividade e, desse montante, 88% são mulheres. E mais: nessa região do globo o trabalho doméstico representa 27% da ocupação feminina.

A mesma organização internacional afirma que, em 2016, o Brasil tinha 6,158 milhões de pessoas trabalhadoras domésticas e desse total 92% eram mulheres. Ademais, 42% não contribuem com a previdência social e apenas 4% da categoria de trabalhadoras domésticas e trabalhadores domésticos é sindicalizada. A OIT alerta que “em 2015, 88,7% dos trabalhadores domésticos entre 10 e 17 anos no Brasil eram meninas e 71% eram negras”.

Essa breve compilação de dados permite afirmar que, no Brasil, o trabalho doméstico é sintoma das categorias estruturantes de classe, raça e gênero, ou seja, se fosse possível apresentar uma imagem do trabalhador doméstico seria a imagem de uma mulher negra e pobre.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apresentou a pesquisa “Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua”, em 2019, e a despeito da ampliação de direitos para essa categoria profissional, mormente a Emenda Constitucional nº 72 de 02 de abril de 2013 e a Lei Complementar nº 150 de 1º de junho de 2015, não se vislumbra suficientes modificações socioeconômicas na condição da vida de milhões de mulheres brasileiras trabalhadoras domésticas. De 1995, momento no qual se passou a fazer pesquisas estatísticas a esse respeito, até 2018, aponta-se mudanças, mas não transformações, pois, são as mulheres negras que permanecem neste setor.

A partir da coleta de dados por mais de duas décadas, a pesquisa do IPEA evidencia a permanência do velho no novo e a legislação se revela, dessa maneira, apenas a sofisticação das técnicas sociais para manutenção da particularidade conservadora da sociedade brasileira.

Não há “processo de equilíbrio de antagonismos” como pretendeu Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”, mais tarde nomeado de democracia racial. O que se apresenta, na verdade, é o mito dessa harmonização que, como ensina Florestan Fernandes em “O Significado do Protesto Negro”, mitos existem para esconder a realidade.

A sociedade brasileira é hierarquizada e excludente, pois, seu passado colonial de grandes propriedades ancorado na exploração do trabalho do negro escravizado persiste com novas roupagens, configurações e instituições. A democracia é restrita à burguesia e a massa de despossuídos fica alheia ao universo de direitos.

“Que horas ela volta?”, filme de Anna Muylaert lançado em 2015, traz uma interessante metáfora para pensar o Brasil. Val (Regina Casé), a pernambucana trabalhadora doméstica, presenteia sua patroa, Bárbara (Karine Teles), com um conjunto de xícaras de café que são metade branca e metade preta. A caixa do utensílio insinua que se deve fazer uso delas de maneira trocada: xícaras brancas com pires pretos numa possível leitura de conciliação dos antagonismos. Ao final, no entanto, Jéssica (Camila Márdila), a filha de Val que vem para São Paulo para prestar vestibular e que abala a pretensa harmonia de antagonismos presente na casa de Bárbara e José Carlos (Lourenço Mutarelli), troca as xícaras: ela serve café para sua mãe com xícaras e pires da mesma cor. Jéssica compreende que a democracia racial é um mito?

Por Juliana Leme Faleiros, mestra em Direito Político e Econômico (MACKENZIE); especialista em Direito Constitucional (ESDC); professora e advogada.