Três interpretações sobre a guerra na Ucrânia

Três interpretações sobre a guerra na Ucrânia
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Há fundamentalmente três variações de leituras sobre o caráter da guerra na Ucrânia. A depender do gosto do freguês, há uma política radicalmente diferente como decorrência.

1. Guerra inter-imperialista.

A mais clássica de todas, remete às análises de Lenin sobre o quadro do mundo no pré-primeira guerra mundial. Rússia está em defesa de seus mercados, matérias primas, rotas comerciais, etc. em aliança com a China, contra o bloco hegemônico dominante liderado por EUA e OTAN, tal como, no passado, estava a ascendente Alemanha contra a liderança industrial e colonial de Inglaterra e França.

Favorece esta interpretação o fato de a Rússia ser uma grande potência militar que se fundamenta ideologicamente nas glórias passadas de um dos piores impérios da humanidade: o czarismo grão-russo.

No caso, então, não haveria dúvida: oposição total ao conflito pela divisão do mundo, nenhuma adesão a qualquer dos blocos, transformação da guerra inter-imperialista em guerra revolucionária interna, o famoso “derrotismo revolucionário” aplicado pelos bolcheviques.

2. Guerra anti-imperialista.

Numa segunda leitura, destaca-se o fato de a Rússia, desde o desmonte da URSS, ter sido reduzida a uma condição mais periférica na economia global, ocupando predominantemente um papel de exportador de commodities, com finanças e sistema bancário bem pouco desenvolvidos (na era do capital financeiro!), para não falar dos setores na vanguarda da indústria.

Não havendo mais bloco soviético nem Pacto de Varsóvia, tendo a Rússia experimentado um selvagem desmonte nos anos 90, quando praticamente virou um país da América Latina em matéria de subordinação aos EUA e degradação social, atualmente Putin representaria uma tendência anti-imperialista voltada a reerguer o país como agente soberano. Tal luta beneficiaria todos os países hoje perseguidos pelo imperialismo, de Cuba a Irã.

Nesta chave de leitura, Putin seria mais parecido com um Perón, Vargas ou Nasser do que com um kaiser Guilherme II, do segundo império germânico. Não se trataria de divisão do mundo em áreas semi-coloniais de influência, mas de resistência legítima de um país oprimido pelo imperialismo da OTAN, o que implicaria em apoio tático aos movimentos russos, já que até Trotsky dizia que se Vargas e o império britânico entrassem em guerra, o apoio deveria ser dado ao Estado brasileiro — nesta mesma linha de interpretação, um dos seus seguidores mais famosos, Nahuel Moreno, defendeu apoio à Argentina (dos militares!) contra a Inglaterra, na Guerra das Malvinas, ainda que buscando nunca se confundir inteiramente com as posições do nacionalismo burguês.

3. Guerra de libertação nacional.

Aparentemente a mais insólita de todas, tal caracterização pode, no entanto, ser aplicada por aqueles que acompanham desde 2014 a Guerra no Donbass, onde uma parte da população etnicamente russa se insubordinou contra Kiev, devido a uma perseguição étnica, cultural e linguística, chegando ao ponto de grupos, com beneplácito do governo, recuperarem a tradição do nazismo ucraniano e organizarem milícias em busca de limpeza étnica.

Neste sentido, a Rússia estaria apenas prestando apoio ao lado esmagado e colonizado do conflito, tal como fizera na África contra dominações coloniais e potências reacionárias locais (como o caso de Angola contra Portugal ou África do Sul do apartheid). Não à toa muitos ucranianos de origem russa do leste resgatam símbolos soviéticos e a memória da II Guerra Mundial contra o nazismo.

Estas, ao meu ver, são as três caracterizações possíveis do conflito. Talvez todas tenham sua parcela de verdade ou possa ser, ainda, que nenhum dos tipos ideais acima seja fiel à realidade, restando, no entanto, saber qual destas políticas está menos suscetível à captura da esquerda por interesses reacionários, seja do lado atlantista e norte-americano, seja do lado russo.