Dentro ou fora das quatro linhas?

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Por Juliana Leme Faleiros – Os atritos entre as instituições da República têm agudizado a crise política instalada no Brasil. Dada sua profundidade e capilaridade, indicar seu início impõe mediações e indagações importantes: iniciou-se com o processo eleitoral de 2018? Com a prisão do ex-presidente Lula? Com o golpe de 2016? Com o resultado da eleição à presidência de 2014? Com a crise econômica e as jornadas de junho de 2013? Ou ainda, tudo isso e todo o processo histórico brasileiro?

Nesse cenário e com o jogo jogado fora das quatro linhas, o jornal “O Estado de São Paulo”, de 22 de agosto de 2021, publicou que os ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Michel Temer contataram alguns membros das Forças Armadas a fim de investigar a possibilidade real de golpe pelos militares e pelo presidente Jair Messias Bolsonaro. De acordo com generais consultados “não há apoio do empresariado, da Igreja e da imprensa a uma ruptura e, sem apoio popular, nada seria possível”. O desafio, dizem eles, é conter os membros das polícias militares.

Na matéria veiculada há alguns pontos interessantes: (i) a ausência da ex-presidenta Dilma Rousseff no rol de ex-presidentes; (ii) os motivos, como apontado, para a não ocorrência do golpe; (iii) o argumento utilizado pelos ex-presidentes e seus interlocutores para se movimentarem em diálogo com os militares.

Comecemos pelo primeiro: o reconhecimento desavergonhado e tardio pelos civis e militares consultados – apesar de amplamente exposto pelos críticos do golpe – de que a Comissão Nacional da Verdade instituída pela ex-presidenta Dilma Rousseff foi um dos grandes motivos pelo qual ela foi apeada de seu segundo mandato. O fato de ela, mulher divorciada, ousar instituir uma comissão para investigar crimes cometidos pelos militares durante a ditadura empresarial-militar é de um atrevimento intolerável para estes que se julgam donos do poder. Diante desse cenário de crise aguda, mantê-la alheada da negociação pelo não golpe é dado como natural; encontrar soluções à brasileira é coisa de homem.

Em segundo lugar, os motivos pelos quais creem que não haverá golpe, quais sejam: a ausência de incentivo do empresariado, das igrejas e da “grande” imprensa, como ocorrera em 1964 e em 2016. O modo como o jornal se expressa deixa a nu sua compreensão de participação popular: são esses segmentos que decidem os destinos da nação, que dizem o que é bom, que são dotadas de razão e discernimento.

Bem se sabe que o jornal em referência não defende a participação popular, pois inesquecível o editorial “Mudança de regime por decreto”, de 29 de maio de 2014, no qual se insurgiu contra o Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014 que dispôs sobre a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). O motivo de sua contrariedade aos mencionados instrumentos jurídicos? Em suas palavras, a arbitrária criação de um sistema no qual a sociedade civil teria viabilizada a participação direta.

Num contorcionismo evidente, a empresa de comunicação se posiciona contrária a um sistema que amplia direitos de participação e dá corpo ao art. 1º, parágrafo único, da Constituição da República. Os decretos que abririam espaço à participação efetivamente popular são uma afronta à democracia que, a seu ver, devem se restringir a sua forma representativa.

Em terceiro lugar, interessa tratar do argumento que une os ex-presidentes homens: a defesa da democracia. A junção desses nomes e um breve olhar retrospectivo mostram que para eles a democracia defendida é formal, mais afeita à higidez do processo eleitoral e às regras do jogo previamente estabelecidas do que à concretização de direitos que garanta à massa de despossuídos condições mínimas de existência.

Florestan Fernandes, em suas contribuições teóricas sobre a sociedade brasileira, diz que o modo como o capitalismo aqui se desenvolveu e se consolidou bem como a forma como as instituições foram organizadas resultaram uma democracia restrita às frações burguesas que se sustentam autocraticamente. O exercício de direitos está restringida ao seleto grupo apontado na matéria em diálogo – empresariado, igrejas e “grande” imprensa – que, ideologicamente, tem recebido o nome de apoio popular.

Não se nega a legitimidade da preocupação sobre a possibilidade de golpe por parte do atual ocupante da presidência haja vista que tanto ele quanto seus apoiadores mais extremos não negam esse desejo. O que parece ficar cada vez mais evidente é que os golpistas de 2016, com apoio de parte dos golpeados, estão se reorganizando para colocar o país no prumo, endireitá-lo (em todos os sentidos dessa palavra) e trazer de volta um país historicamente feito pelo alto – empresariado, igrejas e “grande” imprensa – excluída a massa de despossuídos, como se referia Florestan Fernandes à classe trabalhadora.

A pressão para o jogo fora das quatro linhas está aí. No entanto, o que se observa dos movimentos políticos é que o Brasil se manterá jogando dentro de suas linhas historicamente construídas: autocracia, capitalismo dependente, democracia restrita e profunda desigualdade socioeconômica.

Por Juliana Leme Faleiros, mestra em Direito Político e Econômico (MACKENZIE). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Bacharela em Direito e Ciência Política. Advogada e professora.