Tréplica a Castañon em sua defesa do livro de Ciro Gomes

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O Estado cria e, portanto, é o dono da moeda legal. Para funcionar, a economia deve ter essa moeda em quantidade adequada para o financiamento dos gastos do Estado e das transações do público (investimentos, poupança financeira e gastos correntes). Para ter moeda em quantidade suficiente para pagar as suas transações, o setor privado tem que adquiri-la do Estado, que é seu dono original, mediante emissão monetária e de títulos de dívida pública. Este é como moeda, mas, ao contrário dela, rende juros pagos pelo Estado, chamados básicos.

O Estado não pode doar a moeda que emite ao setor privado. Isso não faria sentido, a não ser nas políticas de assistência social. Para obter a moeda do Estado, o setor privado tem que lhe vender bens e serviços. Quando o Estado compra esses bens e serviços – da indústria, do comércio, do setor privado e do funcionalismo -, o setor privado obtém a moeda necessária para financiar suas transações correntes e pagar impostos; o Estado também transfere moeda ao setor privado com o pagamento dos juros pela recompra dos títulos públicos que emitiu.

A emissão monetária não pode ser em quantidades infinitas, pois, do contrário, geraria hiperinflação. O meio de manter a emissão monetária em quantidades adequadas ao financiamento não inflacionário da economia é o planejamento anual dos gastos públicos e a estimativa dos gastos privados. Ambos devem refletir o crescimento desejado da economia. Para isso, do lado do Estado, é preciso o planejamento das necessidades de financiamento dos gastos, através do orçamento anual, que deve se adequar a um planejamento plurianual de investimentos públicos (determinativo) e privados (indicativos).

Do lado do setor privado, para dar conta de suas necessidades anuais de aumento da moeda, é preciso estimar o valor da quantidade necessária para investimentos novos em termos reais (compensando-se a inflação). Isso deve ser compatibilizado com o orçamento público anual na parte dos investimentos correntes, refletindo direta e indiretamente o aumento dos gastos reais do governo através do efeito multiplicador destes últimos. A soma do valor estimado do investimento púbico planejado com o investimento privado estimado, induzido por ele, determina o valor do investimento global da economia e influencia a taxa de crescimento do PIB prevista no planejamento.

É através do investimento global na economia que se criam empregos e se esgota a capacidade ociosa da economia, de máquinas e pessoas (desemprego), no mercado de trabalho formal. Uma vez terminada a recessão, o funcionamento normal da economia segundo a política econômica de Finanças Funcionais deverá sustentar o pleno emprego, com variações na margem, desde que o desemprego estrutural de homens e máquinas seja gradualmente combatido com políticas específicas, segundo o programa voltado para periferias que denominamos Cidade Cidadã – Emprego Garantido, Trabalho Aplicado (à parte).

O conjunto dessas políticas indicadas por Finanças Funcionais (ou Teoria Monetária Moderna – TMM) assegurará o desenvolvimento sustentável da economia, a altas taxas de crescimento econômico, sem inflação e reduzindo a influência dos ciclos externos de crise através do correto manejo do gasto público, do câmbio e do controle das finanças especulativas mediante tributação adequada. Com isso, o Brasil enterrará definitivamente as políticas depressivas adotadas sobretudo nos últimos anos pelos governos Temer/Guedes-Bolsonaro, do próprio PT e principalmente de FHC, sob o tacão do que há de mais de retrógado nos ditames do FMI, do Banco Mundial e do chamado Consenso de Washington. Este último, entre nós e em outros países controlados pelo neoliberalismo, tomou a forma de “tripé macroeconômico”. Este é definido pela combinação de superávit orçamentário primário e liberação total do câmbio, metas de inflação, assim como privatização indiscriminada e submissão da política econômica ao controle absoluto do “mercado dito livre” (aversão ao planejamento). A aversão ao planejamento foi o erro original em economia da Nova República.

Com isso, considera-se que a dívida pública (estoque, ou acumulação de déficits anuais) não é um mal em si, caso os títulos públicos que a financiam sejam a juros razoáveis. Sobretudo em situação de recessão, o déficit público é necessário para levantar o investimento e o emprego. A dívida pública só é prejudicial quando remunerada a juros exagerados pagos pelo Estado. Esses equivalem a doação, ou “assistência social” para ricos e muito ricos, e formam a base segura do que se chamou de “ciranda financeira”. A dívida pública é importante também para manter o valor real da poupança financeira privada oriunda de lucros, à espera de hora adequada para o investimento ou qualquer gasto. Está na origem do próprio capitalismo.

Conceitualmente, como disse, emissão de moeda e de títulos públicos pelo Estado são da mesma natureza. A diferença é que moeda é um passivo junto à sociedade garantido pelo Estado soberano, que não rende juros, enquanto títulos (dívida pública) é um passivo, também garantido pelo Estado soberano, que rende juros. A emissão de títulos não é necessariamente para financiar os gastos do Estado. É para regular a liquidez da economia: a emissão de títulos novos reduz a liquidez (moeda em circulação), enquanto a recompra de títulos aumenta a liquidez. Combinadas, essas ações do Estado evitam a inflação monetária de natureza quantitativa, ou seu contrário, um aperto exagerado de liquidez.

Recuperei este longo texto de justificação da teoria de Finanças Funcionais (ou TMM) para responder ao artigo, também longo, de Gustavo Castañon, com o qual ele desqualifica minhas críticas ao Projeto Nacional de Ciro Gomes. Castañon confessa que não é economista, mas filósofo. Não precisava dizer. Está implícito em seu texto. Lembrou-me o livro de Marx “Miséria da Filosofia”, onde o fundador do materialismo histórico desmonta a “Filosofia da Miséria” de Proudhon. Segundo Marx, Proudhon era considerado na França como um grande filósofo alemão; e, na Alemanha, como um grande economista francês. Ele, Marx, na qualidade de filósofo e economista, queria esclarecer esse duplo erro.

Não sei se posso dizer que sou filósofo, porém me é fácil apontar os equívocos econômicos de Castañon. Ele usa metáforas baseadas em preconceitos econômicos ortodoxos, neoclássicos e neoliberais, derivados da manipulação do senso comum, que estão na origem da confusão que a maioria dos economistas (e filósofos) fazem com os conceitos de economia fiscal-monetária. Ele não é o único. O próprio Keynes foi culpado por muita confusão que ainda se faz com conceitos de poupança e investimento. Ortodoxos insistem em dizer que gastos públicos expulsam investimentos privados (crowding out). Neoliberais falam em austeridade fiscal e superávit primário. Milton Friedman inventou que a inflação é causada exclusivamente pela expansão monetária derivada de gastos públicos excessivos.

Entretanto, devo agradecer a Castañon a oportunidade do debate. Não estou atacando pessoas. Estou atacando ideias que acho equivocadas, à procura de uma saída para o caos em que se encontra o Brasil. Roberto Requião, o último dos grandes nacionalistas brasileiros, há muito tem reclamado da ausência desse debate, sobretudo no mundo político. Nesse campo, Ciro é uma exceção positiva. As crises brasileiras são tão profundas e tão extensas que não temos muito tempo para encontrar um caminho de superação, além do horizonte do terremoto bolsonarista. Eu próprio me reuni a um grupo de especialistas para discutir saídas. Breve cuidarei de dar notícias disso quando chegarmos a um consenso.

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