O fermento do bolo – o fermento do desenvolvimento não é déficit, é investimento

o fermento do desenvolvimento
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O economista José Carlos de Assis, da COPPE-UFRJ, publicou artigo no blog petista 247 chamado “Um bolo sem fermento!”, com crítica importante ao recente livro de Ciro Gomes, “Projeto Nacional: O Dever da Esperança”. Neste livro, Ciro apresenta um projeto nacional de desenvolvimento para discussão do país.

Assis diz que o livro acerta em tudo, menos no central: como financiar o desenvolvimento.

Já eu devo dizer que o artigo de Assis não acerta em tudo e muito menos no central: o que é realmente o fermento do desenvolvimento.

Não devemos, no entanto, desfazer da crítica relevante de Assis, que questiona um ponto de fato deliberadamente silencioso do livro de Ciro, o lugar da emissão de moeda na economia.

Muito menos devemos confundi-la com as difamações de campanha das tropas petistas, que defendem o partido que aplicou por 13 anos a taxa de juros reais mais alta do mundo, praticou altos superávits primários e o populismo cambial que dizimou a nossa indústria, nada mais oferecendo ao país do que a gestão da política econômica criada por Armínio Fraga (o tripé macroeconômico). Os neoliberais petistas, que apoiaram o selvagem choque neoliberal de Levy em 2015, não perdem uma oportunidade de acusar de neoliberalismo seus oponentes. É importante que lembremos sempre que, perto do PT, Paulo Guedes – com sua mínima taxa Selic, câmbio desvalorizado e super déficits primários – é um radical heterodoxo.

Assis não parece ser um petista, embora faça afirmações equivocadas que repete – talvez por osmose –, como a de que o projeto de Ciro “não tem nada de muito diferente do programa que o PT lançou na perspectiva eleitoral alguns meses atrás”. Ora, o projeto de Ciro só tem em comum com o projeto petista aquilo que eles copiaram dele (ele não foi lançado meses atrás, mas anos atrás), e essencialmente coisa alguma em comum com o governo petista.

Erra ainda quando diz que o livro repisa “mágoas”, quando a obra não trata de um único fato político concreto de natureza eleitoral ou pessoal e faz rigorosa crítica política e econômica ao desastre petista.

Por fim erra Assis quando diz que o projeto de Ciro é “uma receita extensa, diluída em múltiplos objetivos não integrados entre si, e sem mecanismos estruturantes”. O mecanismo estruturante do projeto de Ciro é a ação do Estado e o aumento de formação de poupança interna.

E é aqui que Assis erra fundamentalmente.

Assis acredita que Ciro está recorrendo a metáforas de economia doméstica para justificar sua valorização do equilíbrio fiscal, mas quem recorre a essas metáforas é ele. Ele compara o Estado a “Uma dona de casa de espírito empreendedor que vê uma oportunidade de investir [e] não tem por que não recorrer a crédito”. É ele que está ainda na gaiola mental do monetarismo quando equaliza emissão de moeda e emissão de dívida. Isso é um terrível equívoco. O Estado não precisa recorrer a contrair crédito em sua própria moeda. Ele pode EMITIR crédito em sua própria moeda. Ao emitir crédito o Estado está taxando riqueza real para convertê-la em poupança, e ainda a emprestando a juros. Ao emitir dívida, está pagando juros para os mais ricos e, se esses forem mais altos que a taxa de crescimento, são pura concentração de renda.

Entrou na moda usar a MMT, uma mera teoria descritiva do sistema monetário, para justificar o desequilíbrio fiscal indefinido e o aumento indefinido da dívida interna como motores do desenvolvimento. Isso é um profundo equívoco. Déficits e dívidas não são motores, mas meios para se obter o verdadeiro motor do desenvolvimento: poupança interna convertida em investimento. Você pode aumentar artificialmente a poupança interna com déficits ou emissão de dívida. Mas déficit é confisco que atinge os mais pobres duas vezes: primeiro porque os confisca igual aos ricos, segundo porque geralmente causa inflação. Já ampliar a dívida também atinge os mais pobres porque faz com que o Estado amplie seus gastos com os mais ricos através de juros.

O Estado pode financiar o investimento com emissão monetária, dentro de certos limites, que o arremedo de MMT brasileiro finge que não existem. Se financiarmos tudo com emissão de moeda, perde-se o controle dos preços, da taxa de juros e a dívida vem toda para o curto prazo, causando fuga de capitais ao mesmo tempo que brutal concentração de renda. Isso eles fazem questão de não entender.

Eu não sou um economista, sou um professor de filosofia. Portanto aqui vou usar meus recursos para explicar para não economistas todo esse imbróglio. Vou explicar isso com um recurso filosófico: o experimento mental. No caso, mais precisamente, lançarei mão do que chamamos de “ficção útil”. Suponha uma ilha onde só se produz milho. A produção anual da ilha são mil sacas de grãos de milho. A ilha tem um governo central que emite uma moeda: o rubi. Cada rubi vale inicialmente uma saca de milho. Temos mil rubis circulando na economia. Nesta ilha, precisamos de um décimo de saca plantada para produzir uma nova saca. A poupança interna da ilha para investir na próxima safra e manter sua produção deve ser, portanto, de cem sacas de milho. A gestão do governo dessa ilha consome outras 100 sacas de milho. Para obtê-las, o Estado recolhe 100 rubis de impostos. Por fim, as outras 800 sacas de milho são consumidas pelo resto dos habitantes.

Como pode a economia da ilha crescer? Ela tem que poupar mais grãos de milho e plantar (supondo que ela tem recursos de solo disponíveis). A receita liberal para isso é diminuir o Estado para que ele diminua o recolhimento de impostos. Pagando menos impostos sobrará mais grãos nas mãos dos produtores, e eles os usarão para aumentar a produção. Mas nada garante que isso vai acontecer. Nunca. Os produtores podem estar satisfeitos com o nível de vida, e deixar os grãos apodrecerem. Ou ainda podem resolver consumir mais. Na outra ponta, o Estado pode ficar sem recursos para segurança e não poder conter um incêndio em plantação, ou sem recursos para cuidar de uma praga. Se o Estado não é atingido em setores inchados e parasitários, o resultado é sempre desastroso para a produtividade geral da sociedade.

Qual parece ser a receita de Assis para o desenvolvimento? O Estado emitir mais rubis. Devemos lembrar aqui que rubis são símbolos da riqueza real, não riqueza de fato, que no caso aqui, são os grãos de milho, a capacidade de trabalho e a terra. Supondo que haja terra ociosa o suficiente na ilha, emitindo mais rubis o Estado pode comprar parte da safra (confiscar, na prática) e usá-la para investir na plantação e assim aumentar a produção. Suponha que ele emita mais 60 rubis. Ele pode comprar mais 60 das 1000 sacas totais. Somadas às outras 100 sacas tradicionalmente poupadas pelos produtores, poderíamos esperar agora uma safra de 1600 sacas ano que vem. O que a emissão de moeda fez, foi criar poupança forçada. Poupança de riqueza real, não de dinheiro. E o governo direcionou essa poupança real para investimento. É claro que aqui estamos evitando para fins de facilitação do raciocínio outros insumos, como trabalho e terra, intempéries, ou uma economia mais complexa, com serviços, leite e banana (por isso o cenário é mais uma ficção útil do que um experimento mental).

Mas percebam o valor que tem o equilíbrio fiscal aqui. Os rubis não foram emitidos para aumentar os gastos de custeio do governo. Se fossem, teriam mergulhado a economia da ilha na recessão, com os produtores consumindo menos e provavelmente investindo menos (se quisessem se aproximar do seu nível anterior de consumo). A emissão só deu certo porque foi INTEGRALMENTE direcionada ao investimento, e a chegada da nova safra vai dissipar a inflação residual gerada (só não haveria inflação se houvesse recursos ociosos de todos os tipos: trabalho, terra e milho selvagem na ilha para suprir a nova demanda). Sim, porque a moeda em circulação num primeiro momento aumentou, mas não a quantidade de bens.

Outra proposta de Assis é o governo pedir emprestado no mercado. Ele recolheria 60 rubis emprestados pelos produtores mais afortunados prometendo 6 rubis a mais de retorno no próximo ano. Investindo, se conseguisse um retorno de 600 sacas, pagaria os 60 rubis emprestados, os 6 rubis de juros e ainda seria um excelente negócio. O que seria péssimo negócio seria pegar 60 rubis, prometer mais 6, e jogar tudo para consumo ou custeio do pequeno Estado. Isso seria o passaporte para começar uma rolagem de dívida que, na prática, deixaria o Estado, ano após ano, nas mãos de seus credores. Ele poderia a qualquer momento dar um calote, mas isso não aconteceria sem sangue e desestruturação da economia. Antes do calote, alguns credores poderiam transformar suas dívidas em mais riqueza real, como terras e sacas.

O que ambas as ficções úteis ensinam é o valor do equilíbrio fiscal. O estado pode sim, emitir, e, pode sim, fazer dívida (mas só o deve se e somente se a taxa de juros que paga é menor que o ritmo de crescimento do PIB). Ele faz isso para forçar poupança interna em níveis que não são, jamais, conseguidos pela iniciativa dos agentes privados. E poupança interna investida é o motor do desenvolvimento. Só o Estado pode mobilizar altos níveis de poupança interna, e, portanto, de investimento, para alavancar o desenvolvimento. Mas isso só acontecerá através da emissão ou da dívida se esses recursos forem integralmente aplicados em investimento, no aumento da produção do país. Se a emissão vier para o custeio do Estado o resultado será inflação e recessão, se a dívida vier para o custeio do Estado o resultado será recessão, concentração de renda e poder.

Não, a União não é um estado da federação, ela pode emitir moeda. Um estado da federação, que não emite moeda, só tem um jeito de subir seus níveis de investimento público (depois do fechamento dos bancos estaduais): sanidade fiscal. Recolher mais impostos do que gasta para se manter, e investir toda a diferença. A União, de fato, pode “criar” poupança simplesmente emitindo moeda. Mas o que de fato ela está fazendo com isso é confiscar riqueza real da sociedade para que ela não seja consumida, mas sim, investida. No entanto, sempre é importante lembrar que se não houver capacidade ociosa na indústria, desemprego e recursos naturais inexplorados, a emissão de moeda causará sim, num primeiro momento, inflação. Com ela, o desalinhamento dos preços relativos (por exemplo se houver capacidade ociosa na indústria, mas não de recursos naturais). Com o desalinhamento de preços relativos, teríamos uma inflação inercial resistente.

Ciro, assim como Mauro Benevides e Nelson Marconi, dois de seus principais colaboradores, tem repetidamente afirmado que devemos excluir o investimento público do cálculo do superávit primário. O que significa isso? Significa que devemos procurar o equilíbrio fiscal entre receita e despesa do governo, para que TODO GASTO PARA ALÉM DAS RECEITAS FISCAIS seja integralmente direcionado para investimento. Além disso, devemos racionalizar essas despesas e receitas. Temos que parar de pagar altos juros para os ricos, ou seja, colocar o Estado a serviço do financiamento da concentração de renda, ao mesmo tempo que escolhemos o financiar cobrando mais impostos dos ricos, evitando que os pobres paguem mais de sua renda.

Toda emissão de moeda é um confisco de riqueza por parte do Estado que toma uma proporção igual da riqueza de ricos e pobres. Nunca é a melhor forma de gerar poupança interna. O que Ciro proporia então para a ilha das sacas de milho?

O que Ciro proporia é que os que acumulam mais sacas de milho paguem mais rubis de impostos, assim como o Estado diminua o pagamento de juros e subsídios para eles. Com isso ele pretende, digamos, diminuir em 30 o consumo de sacas pelo Estado e aumentar em 30 a quantidade de rubis recolhidos por impostos. Fazendo isso ele garantiria mais 60 sacas para plantar além das 100 dos produtores. Aumentando a poupança interna pela capacidade de investimento do Estado via ajuste fiscal concentrado no andar de cima, Ciro garantiria ainda a diminuição do que o Estado tem de ineficiente e parasitário, a diminuição da concentração de renda e o equilíbrio de preços. Se além disso ele quiser emitir 40 rubis, que seja. Mas que seja em ambiente de equilíbrio entre receitas e despesas de custeio e essa emissão seja igual ou menor que o volume total de investimentos. Porque não é a emissão que é o fermento do crescimento. O fermento do crescimento é a poupança interna bem investida. A aplicação de riqueza real para produzir mais riqueza real através do trabalho. Emissão de moeda é só uma forma de aumentá-la. Não é a melhor.

Isso é o que é central no projeto de Ciro. Temos que aumentar nossa poupança interna por todos os meios disponíveis, mas há meios melhores que outros. Quem tiver ouvidos de ouvir, ouça.