Sobre a Ilusão de que o Identitarismo tem Pautas

Sobre a Ilusao de que o Identitarismo tem Pautas
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Frequentemente, ouvimos alguém se queixar do modus operandi dos identitários nas Universidades e nas redes sociais. Vítimas de cancelamentos, calúnias, difamações e ameaças, pronunciam melancolicamente frases como “o problema não são as identidades, mas a essencialização”, quando não o álibi costumeiro: “é preciso separar o método das pautas. As pautas são justas.”

Essas pessoas acham que o identitarismo é um conjunto de movimentos engajados em promover justiça social, como partes que integram o ideário mais amplo do progressismo. Estão erradas. Nenhuma prática humana é aquilo que seus porta-vozes anunciam sobre ela. As práticas estão muito mais nos efeitos gerados em nome das mensagens e dos rótulos que as orientam do que nas próprias mensagens e nos rótulos.

O que é o identitarismo? Sequer de movimento ele pode ser chamado. É uma corrente de opinião, que apenas casual e episodicamente conserva relações com movimentos sociais. As tais minorias não são materialmente beneficiárias dos enquadramentos identitários. Convenhamos: Os movimentos sociais não surgiram com o identitarismo e não vão deixar de atuar após varrermos do debate público nacional o espólio identitário.

Enquanto corrente de opinião, o identitarismo modula a ação, o pensamento e a fala das pessoas e o faz por meio de um expediente muito singular. Não possuindo um corpo coerente de conceitos, nem bandeiras fixas, nem vínculo formal com partidos, nem intelectuais orgânicos ou líderes alavancados pelo reconhecimento popular, ela, influente e difusa, é marcada mais por cacoetes comportamentais do que por teses. O que se consegue pensando, falando e agindo conforme o identitarismo é espalhar comportamentos desagregadores e conflituosos, como os cancelamentos, e triunfais, como as performances de lacração. E isso é tão explícito que constrange ler e ouvir as pessoas que foram vitimadas por empreendimentos identitários insistindo no eufemismo de que as pautas têm sua validade. Não há pauta identitária. Tudo o que há é esse modus operandi que lesa e continuará lesando.

Os identitários escamoteiam a cooperação para enaltecer o conflito. O cientista político Carlos Sávio Teixeira e eu temos chamado isso de pan-conflitivismo. O pan-conflitivismo respalda o reconhecimento compulsivo de novas identidades sociais por diversos truques, entre os quais o da chamada intereseccionalidade. Conceito que identifica fatores sociais que atravessam uma mesma individualidade, seria, a princípio, uma forma de firmar um critério de cooperação, fazendo com que indivíduos participassem de identidades sociais irredutíveis uma a outra, como gênero e raça. Mas, no exercício efetivo da coisa, o pan-conflitivismo identitário é uma método para um grupo se destacar de outros e antagonizá-los, armado pela retórica de que detém o lugar de fala dos que são onerados por mais de uma circunstância social de opressão. É a isso que serve o conceito de interseccionalidade. Assim, firma-se uma ideia de pirâmide social em que a base seria constituída pelas identidades interseccionadas mais afetadas pelas injustiças ocidentais. Desagregação, conflito e triunfo de oprimidos contra oprimidos são um combo de sadismo legitimado precisamente pelas tais pautas.

O discurso da nobreza ou justiça das pautas identitárias é insustentável. Cada vez que alguém sai com o papo “mas e o nordestino?” , “mas e o periférico?”, “e a negra?”, há um autoengano. No contexto identitário consagrado como o temos vivido, não se está conferindo lugar de fala (o que já seria patético, dado que quem quer justiça em uma sociedade injusta, quer mudança, e quem quer mudança não pode querer apenas o direito de falar a partir de seu próprio lugar). O que se está fazendo é lubrificar as engrenagens de desagregação, conflito e triunfo que, mais cedo ou mais tarde, vão moer também quem crê na nobreza dessas pautas. Não é arbitrário que, quase sempre, quem se importa com o discurso progressista é aquele atacado por alguma alcateia autoproclamada antirracista ou antitransfóbica. A soma total dos “anti” não dá um “pró”.

A massa de nordestinos, moradores de periferia e negras não tem suas vidas alteradas pela pedagogia social que tem sido universalizada por essa corrente de opinião. Quem muda de vida são apenas seus porta-vozes, uma elite acadêmica, midiática e cultural, enriquecida pela normatividade da resistência e da representatividade – que tenho indicado aqui em minha Coluna ser um binômio conservador.

É preciso parar com esse vocabulário e com seus cacoetes. Parar com essa história de que temos que “reconhecer a importância das pautas”. E mudar o encaixe da coisa. Nordestinos, moradores de periferia, negras e quaisquer outros pleiteantes de justiça só prosperam quando adquirem cidadania plena. E cidadania plena não é algo que nos seccione em uma pirâmide social de opressões, mas o que nos une em uma situação nacional de tensões e injustiças historicamente acumuladas das quais só nos livraremos pelo exercício delicado e complexo da cooperação. Criar conceitos acadêmicos para consagrar conflitos é simples e fácil. Difícil é o trabalho real: o de reinventar a cidadania e dar um novo sentido ao ser brasileiro.

Um caminho para aprofundar essa discussão e detalhar um rumo está no artigo Contra a Mediocridade, Contra o Identitarismo, que escrevi com o professor Sávio.