Quanto o salário mínimo para 2024 realmente aumentou?

Salário Mínimo
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O governo federal anunciou que o salário mínimo aumentará de R$ 1.320 para R$ 1.412 a partir de 1º de janeiro de 2024. Trata-se de um aumento de 6,85%, acima da inflação registrada entre novembro de 2022 e novembro de 2023 pelo IBGE, que foi de 3,85%. Ou seja, de fato, houve aumento real do salário mínimo fixado em lei. Mas qual é a dimensão concreta deste aumento?

O Planalto seguiu parcialmente a fórmula que marcou as gestões petistas entre 2003 e 2016, quando a variação do PIB aplicada para conferir aumento real ao salário mínimo era a de dois anos antes. Como o PIB cresceu 3% no último ano do governo anterior (2022), este foi o índice aplicado para o ajuste real em 2024, acima da inflação. O “real”, no caso, é o aumento acima da inflação medida de acordo com o o INPC calculado pelo IBGE (3% + 3,85% = 6,85%).

Todavia, os números isolados podem enganar. É por isso que o DIEESE – órgão intersindical que pesquisa diversos índices econômicos de maneira autônoma – divulga mensalmente o chamado salário mínimo necessário. Este deveria ser o salário mínimo fixado em lei para atender o comando constitucional para a remuneração básica, atendendo as necessidades de alimentação, vestuário, moradia, transporte, lazer e etc das famílias brasileiras. O valor é calculado levando-se em conta os preços dos bens desta cesta de produtos e serviços que o salário mínimo deveria ser capaz de adquirir.

Segundo o DIEESE, o salário mínimo para novembro de 2023 deveria ser de R$ 6.294,71. O salário mínimo de 2023, fixado ainda em 2022, foi de R$ 1.302. Isto corresponde somente a 20,97% – pouco mais de um quinto – do que seria necessário para atender as necessidades dos trabalhadores brasileiros. Se tirarmos uma média para os 11 meses de 2023 (até novembro, inclusive) para chegar a um valor anualizado, o salário mínimo necessário seria de R$ 6.488,34. O salário mínimo nominal de 2023, na terminologia adotada pelo DIESSE, correspondeu a 20,34% deste mínimo real para todo o ano.

Para termos uma verdadeira dimensão do aumento do salário mínimo nominal, precisaríamos conhecer o valor do salário mínimo necessário para o ano de 2024. No entanto, isso não é possível, porque o cálculo do DIEESE é baseado em uma pesquisa empírica mensal, realizada por meio do levantamento de preços reais nas grandes cidades do país. Por esta razão, não temos como conhecer de antemão qual a fração que o novo mínimo nominal de R$ 1.412 corresponderá em termos percentuais do mínimo real.

Os economistas realizam este tipo de projeção especulando qual será a inflação em 2024, baseado em diversas metodologias (além de ideologias e interesses) – com diferentes graus de acerto e, sobretudo, erro. Para fins de comparação com os anos anteriores, podemos adotar o que provavelmente é o melhor cenário: o de uma inflação de 0%.

Neste cenário completamente hipotético – francamente impossível e totalmente otimista – o salário mínimo necessário ou real seria idêntico à média de 2023, mantendo-se no mesmo valor de R$ 6.488,34 que calculamos para o ano que se encerra a partir dos dados do DIEESE. Deste modo, o salário mínimo nominal de R$ 1.412 corresponderia a 21,76% do salário mínimo real de 2024, um aumento de mais de um ponto percentual em relação a 2023, quando esta proporção foi de 20,34%.

O impacto é com certeza positivo e expressivo – num cenário excessivamente otimista, lembremos. Contudo, a comparação mesmo com as gestões petistas do passado mostra como esta fórmula é tímida.

Proporção entre o salário mínimo nominal dividido pelo real, entre 2008 e 2024

Salário mínimo necessário e real
Salário mínimo necessário e real

 

A hipotética e otimista proporção entre o salário mínimo nominal e real de 21,76% para 2024 é ainda muito menor do que a registrada em 2018 – em pleno governo Temer (!) – quando ela foi de 25,40%. Esta foi a maior proporção que o salário mínimo real alcançou nos últimos 15 anos: o mínimo nominal fixado em lei para 2018 foi de R$ 954,00, enquanto o mínimo real calculado pelo DIEESE foi de R$ 3.755,25. A segunda maior proporção foi atingida em 2012, antes do ajuste fiscal de Dilma, chegando a 25,25%, com mínimo real de R$ 2.463,81 e mínimo nominal de R$ 622,00. Repise-se que a proporção de 21,76% para 2024 é hipotética e otimista, enquanto as proporções anteriores são empíricas, efetivamente medidas pelas pesquisas de preços reais relizadas pelo DIEESE.

Na tabela abaixo, elaborada a partir de dados do DIEESE, podemos ter uma visão da variação desta proporção nos últimos 15 anos. Todos os valores são em moeda corrente do ano (sem deflator):

Ano Proporção Nominal/Real em % Nominal (fixado por lei) Real (calculado DIEESE, anualizado pela média)
2008 20,73% R$ 415,00 R$ 2.002,00
2009 22,77% R$ 465,00 R$ 2.042,43
2010 24,17% R$ 510,00 R$ 2.110,26
2011 23,98% R$ 545,00 R$ 2.272,45
2012 25,25% R$ 622,00 R$ 2.463,81
2013 24,52% R$ 678,00 R$ 2.765,33
2014 24,75% R$ 724,00 R$ 2.925,16
2015 24,02% R$ 788,00 R$ 3.280,75
2016 22,71% R$ 880,00 R$ 3.875,13
2017 25,02% R$ 937,00 R$ 3.744,52
2018 25,40% R$ 954,00 R$ 3.755,25
2019 24,13% R$ 998,00 R$ 4.135,85
2020 22,15% R$ 1.045,00 R$ 4.717,49
2021 19,79% R$ 1.100,00 R$ 5.558,91
2022 18,91% R$ 1.212,00 R$ 6.408,14
2023 20,34% R$ 1.320,00 R$ 6.488,34
2024 21,76%  R$   1.412,00 R$   6.488,34

Elaboração do autor, a partir de dados do DIEESE.

Há diversos fatores que devem entrar em consideração que mitigam esta comparação. O ponto alto desta proporção em 2018 se deve ao efeito deflacionário da “Ponte para o Futuro”, cuja destruição da economia brasileira e o tombo catastrófico na demanda efetiva foram tão grandes que derrubaram os preços – basta reparar que os mínimos reais calculados pelo DIEESE para 2017 e 2018 são inferiores ao de 2016. Quanto ao ano de 2012, o responsável foi o expressivo crescimento do PIB no ano de 2010, causado pelo déficit fiscal em função das política anticíclia contra a “marolinha” da crise do subprime.

Além disso, a proporção entre o salário mínimo real e nominal, embora significativa, não pinta o quadro completo da situação da classe trabalhadora brasileira. É preciso considerar outros fatores, como o tamanho da fração da População Econômica Ativa no setor formal versus aquela na informalidade, a taxa de desemprego, as negociações sindicais, a quantidade de trabalhadores remunerados acima do mínimo, e etc.

Mesmo a inflação sozinha não revela o quanto que a variação de preços impactou a reprodução social dos trabalhadores (seu consumo), pois há diferenças substanciais entre regiões, diferentes estratos do proletariado, e etc. Há um interessante comentário de Michael Hudson sobre a hipertrofia de transferências de renda na forma de aluguel e juros e alteração quantitativa da cesta de consumo dos trabalhadores estadunidenses que, mudando o que deve ser mudado, pode ser estendido aos brasileiros também.

Apesar de todas essas considerações, não se pode subestimar a importância da proporção entre o salário mínimo real e o nominal. É o salário mínimo fixado em lei – o nominal do DIEESE – que determina diretamente o valor da maioria das aposentadorias e do BPC, o Benefício de Prestação Continuada, que impactam diretamente a remuneração dos estratos mais vulneráveis dos trabalhadores brasileiros.

As aposentadorias pelo salário mínimo nominal e o BPC são as mais importantes políticas de transferência de renda direta no Brasil, superando em muito a importância do Bolsa Família e outras medidas correlatas. Se isso não fosse suficiente, a cesta de consumo destes estratos mais baixos do proletariado possui um baixíssimo coeficiente de importação em termos relativos, o que aumenta expressivamente o impacto destes gastos públicos na demanda efetiva. Cada real gasto nas aposentadorias mais baixas aumenta muito mais o PIB do que um real gasto em salários de juízes, que é dispersado em importações fúteis, para um exemplo didático.

A proporção de 21,76% para o ano de 2024 é completamente irrealista. A efetiva manutenção da Paridade dos Preços de Importação pela atual gestão da Petrobrás já traz os augúrios de uma inflação alta para o ano que vem, em um contexto geopolítico cada vez mais convulsionado em todo planteta. Ademais, a hipótese da “Greedflation“, a inflação causada pelo aumento unilateral dos preços pelos oligopólios transnacionais a fim de debelar a queda na lucratividade, também indica que a elevação de preços é praticamente garantida no ano que vem.

O prognóstico fica ainda pior quando lembramos que o crescimento do PIB de 2022 e de 2023 foi causado por medidas excepcionais que conseguiram contornar o Teto de Gastos, como a sangria do BNDES e a privatização da Eletrobrás na gestão de Paulo Guedes e a PEC da Transição aprovado pelo “Centrão” no final do ano passado. O Novo Teto de Haddad aponta para uma desaceleração significativa da economia do ano que vem, indicando um impacto negativo nesta proporção para 2024 e 2025.

A aplicação pelo Planalto da fórmula das gestões petistas do passado não foi capaz de reverter o congelamento efetivo do salário mínimo nominal nos governos de Temer e Bolsonaro. Descontado o auge “deflacionário” nas últimas duas gestões, o pico anterior de 2012 está longe de ser atingido. Isso mostra quanto que as “conquistas sociais” do liberalismo hegemônico são efêmeras e rapidamente se esvaziam uma vez que a política econômica “responsável” do austericídio com uma tímida distribuição de renda colapsam sobre o próprio peso.

Esta é a diferença de um social-liberalismo recuado para um reformismo que provoque alterações estruturais: mesmo após quatro décadas de neoliberalismo, o legado varguista segue vivo, ainda que escapando de pouco em pouco pelos dedos dos Trabalhadores do Brasil…