Os “sem religião”: um fenômeno religioso?

Os sem religiao um fenomeno religioso
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Por Brand Arenari  – Nas últimas semanas um assunto ocupou destaque em muitas reportagens de portais e jornais de alcance nacional como a UOL/Folha de São Paulo, BBC/Brasil entre outros: o fenômeno dos “sem religião”, especialmente a sua impressionante força crescente na população jovem. Segundo o datafolha, estes que eram apenas pouco mais de 7 % da população brasileira no início deste século, seriam hoje 14%, praticamente dobrando de tamanho em 20 anos. Já entre os jovens de 16 a 24 anos os dados do Datafolha demonstram um alcance de 25% dentro dessa população, atingindo as marcas acima dos 30% nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro onde superam evangélicos e católicos. Sem dúvida alguma isso indica uma nova transformação sócio religiosa no país, o Brasil pós católico (https://disparada.com.br/brasil-pos-catolico/) não será ocupado apenas por evangélicos/pentecostais, mas também por uma religiosidade atomizada, desvinculada ou fragilmente vinculada à instituições religiosas, enfim, uma religiosidade que longe de ser ateia ou agnóstica, é traduzida sobre os signos de uma espiritualidade fluida, em que budas, iemanjás, terços e mandalas se reúnem num altar exclusivamente individual.

Por tudo isso, é natural e esperado que tanto leigos como alguns especialistas no assunto procurem a explicação deste fenômeno no universo da religião, em suas transformações internas, numa suposta caduquice de seus discursos que não atingiriam os mais jovens, sedentos por novas experiências e inovações. No entanto, num olhar mais atento, tudo indica que este não se trata de um fenômeno produzido, no que se refere suas causas principais, pelas fricções e desgastes internos ao universo religioso, mas que é resultado de um fenômeno social mais amplo ao qual a religião e a religiosidade são transformados “de fora para dentro”. O avanço e expansão das estruturas da vida (instituições), dos valores e visão de mundo da modernidade, intensificados por ondas de radicalização do liberalismo, tal como o neoliberalismo dos anos 90 do século passado e o ultraliberalismo do século presente, apontam outras “razões” que merecem ser debatidas.

Como primeiros indícios, cabe notar que os “sem religião” não é algo exclusivo de nossa realidade nacional e nem tão novo assim. Segundo o Pew Research, em pesquisa realizada em 2019, quase 30% da população norte-americana se declara sem religião, já na Europa, dados do relatório “Europe’s Young Adults and Religion” (Bullivant, 2018) presentes nos estudos do demógrafo José Eustáquio Diniz, demonstram que na França 64% dos jovens de 16 a 29 anos se declaram sem religião, na Espanha são 55% e no Reino Unido 70%. Esta presença ostensiva no chamado ocidente caracteriza-se pela radicalização de uma tendência moderna, isto é, o abandono paulatino de modelos coletivos de identidade, tornando assim o indivíduo cada vez mais indivíduo, e logo, criando modelos de religiosidade altamente individualizados. Desde a década de 80 a sociologia da religião esta atenta a esses fenômenos. A tentativa de apreender esses modelos se mostra nos conceitos de “Sheilanismo” do famoso sociólogo da religião norte-americano Norbert Bellah. A noção de “sheilanismo” é a maneira como Bellah usa para retratar esta tendência individualizada da transcendência. A personagem Sheila do seu livro Habits of Heart (1985) cria sua própria religiosidade a partir de uma bricolagem de várias tendências religiosas, formando assim uma religião só sua, o que Bellah chama ironicamente de “Sheilanismo”. Assim, existiriam o “Rachelism”, “Richardism”, “Bettinaism” e etc.

A análise da radicalização do individualismo feita pelo sociólogo alemão Ulrich Beck também se mostra como instrumental valioso para a compreensão dos “sem religião”. Com riqueza, Beck demonstra um processo evolutivo dentro do qual o sujeito vai abandonando modelos de identidade coletiva para direcionar-se cada vez mais para um modelo individualizado de identidade, ou seja, este sujeito da modernidade reflexiva se vê cada vez mais como indivíduo, e suas demandas e expectativas tornam-se cada vez mais individualizadas (standartizadas).

Na primeira ruptura promovida pela modernidade, a qual se deu em relação à sociedade tradicional, as fontes geradores de identidade do sujeito, tais como laços de parentesco e vizinhança foram substituídos por outras categorias como nação e classe, sendo que estas eram oriundas das inovações institucionais modernas, respectivamente o Estado Nação e o trabalho assalariado. Por mais que os valores individuais fossem a marca da modernidade, poderíamos dizer que eles ainda estavam meio dormentes no interior de narrativas de sentido do mundo coletivas como classe e nação, sobretudo em comparação ao patamar que iriam alcançar no desenvolvimento da modernidade. Como assinala Beck, a modernidade industrial é a modernidade dos grandes grupos, mas é a modernidade reflexiva (avançada) que é a modernidade do indivíduo.

Segundo Beck, o mercado é o centro desta força “desenraizante” da modernidade, esta força que arranca os indivíduos dos entornos coletivos em que eles estavam. A posição de homem livre no mercado conduz o sujeito a elaborar um sentido cada vez mais individual de sua história de vida. No desenrolar deste processo que estamos analisando, foi o homem perdendo os eixos narrativos que lhe relacionavam a um coletivo, ou seja, fontes de identidades coletivas. Em casos mais radicais há em nosso tempo um certo número de sujeitos que nem mesmo a família é para ele um referencial importante na constituição de sua identidade, para assim se ver tão somente como um indivíduo.

Um homem plenamente incorporado pelo mercado tende a não se ver mais como um agente para sua classe e nem como um defensor de sua pátria, no máximo, se vê em busca do bem-estar de sua família nuclear, quando não, somente de si mesmo. A possibilidade de narrativa geradora de algum sentido para ação oferecida pelo mercado é aquela da competitividade que este engendra no plano pessoal, o que por seu lado desenrolam na noção de “sucesso” ou “fracasso” pessoal.

Do ponto de vista institucional, isso também ocorre com a religião acoplada simbioticamente a um ideário de um individualismo quase anômico, caminhando como expressão espiritual de um ultraliberalismo cada vez mais radicalizado. Neste sentido, religião e “mercado” ou “religião do mercado” seguem oferendo salvações de natureza mágica para os sofrimentos contemporâneos, em que temos dificuldade de distinguir o que é discurso mágico religioso de líderes espirituais do discurso motivador de coach do sucesso. Neste receituário, o remédio para o desemprego estrutural (coletivo) é o empreendedorismo mágico da força de vontade (individual), ou o remédio para a pobreza seria alimentar esperanças de tornar-se milionário nas criptomoedas, esse novo dinheiro supostamente sem política, sem Estado, sem coletivo, como nos ensina o sociólogo da economia Edemilson Paraná. Moedas mágicas, feijões mágicos em meio a unções empreendedoras num ritual tecno-xamânico para a cura das dores de nosso tempo.

É importante ressaltar que os jovens “sem religião” não são apenas sem religião institucional definida, são também sem partido, sem nação, sem classe social, são “sem tudo” que uma identidade e, por conseguinte, uma utopia coletiva pode oferecer. Nossos jovens vagam sitiados por miragens de hedonismo e performances individuais nas “ostentações” e “lacrações” onde fragmentos de coletividade das lutas identitárias se lhes apresentam como frágeis alternativas. O que se tem afinal não é simplesmente uma mudança de comportamento por parte da população jovem, tem-se uma mudança de mentalidade, uma nova “profecia religiosa” cuja mensagem consiste em exorcizar da vida tudo que não é indivíduo, logo a Igreja, o Estado, a política e tudo mais que represente o coletivo passa a ser abrigo do “demônio”.

Por Brand Arenari, Doutor em sociologia pela universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, professor do departamento de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada/IPEA.