Filme ‘Medida Provisória’: alguns destaques sobre o Brasil

Medida provisória
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Por Waleska Miguel Batista e Fellipe Rodrigues Sousa – Lázaro Ramos estreou na direção do filme “Medida Provisória”, filmado em 2019, a partir da adaptação da peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação. O ator, apresentador, escritor e diretor merece aplausos e reverência pelo lindo resultado do longa, que conta com um elenco de referência nacional na dramaturgia como Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah e Alfred Enoch, além de belíssimas participações como a da Conceição Evaristo, Flávia Oliveira e Emicida.

O filme merece aplausos por apresentar o maior número de personagens negros em seu elenco em comparação com outras produções nacionais, assim como por expor para o público as bases das reflexões do pensamento social brasileiro, ou seja, o filme se propõe a reflexão sobre qual é a identidade brasileira e o que o país pode ser.

Resumidamente, “Medida Provisória” narra o fato de que o Estado aprovou uma Medida Provisória, que estabelece que as pessoas negras sejam enviadas compulsoriamente aos países africanos, sob a justificativa de dar aos negros o retorno para as terras da qual eles foram sequestrados. A aparência de justiça nessa decisão aponta mais uma das facetas do direito, ao reproduzir os interesses das camadas dominantes, particularmente, na expulsão dos negros brasileiros do Brasil. O filme tem a história narrada no Rio de Janeiro.

Em entrevista a Silvio Almeida, no canal de YouTube Entrelinhas, Lázaro Ramos afirmou que pensou em entrar para a política, e não restam dúvidas que seu filme é um ato político.

O filme reverenciou os pensadores do Brasil, André e Antônio Rebouças, respectivamente, através dos personagens interpretados por Seu Jorge e Alfred Enoch. André Rebouças (1839-1898) e Antônio Rebouças (1838-1873), brasileiros negros, nasceram livres no século XIX, e enquanto engenheiros trouxeram grandes reformas ao Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Para além disso, André participou de campanhas em favor do movimento abolicionista, destacando-se ao lado dos líderes Joaquim Nabuco e José do Patrocínio.

Interessante observar que no filme, o personagem André questionava como chegou à aprovação da medida provisória que dá título à obra. No enredo, Antônio tem o sobrenome Gama, em referência ao nosso intelectual, escritor e advogado, Luiz Gama (1830-1882), que argumentava que a abolição é um projeto político e que a resistência é uma virtude cívica. Antônio Gama resistiu.

A personagem Capitu, uma das mais emblemáticas e estudadas da obra de Machado de Assis, foi homenageada através do papel homônimo interpretado por Taís Araújo. Também ganham destaque a cantora Elza Soares, com sua música e potência, e os cartazes com as imagens de Marielle, e os grafites de mestre Moa, Rafael Braga e tantos outros na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro.

Não há uma cena, diálogo ou construção de personagem que não remeta a formação do Brasil. No filme, a personagem antagonista é uma agente do Estado incumbida de executar a medida provisória. Interpretada por Adriana Esteves, chama-se Isabel, em nítida referência à princesa que assinou a lei áurea.

Por sua vez, a Medida Provisória n. 1.888, estabelece que os negros retornem aos países africanos. Nota-se que o número da norma é o ano da abolição da escravidão (13 de maio de 1888), a tal ponto que evidencia que a Medida Provisória não significa o reconhecimento da humanidade das pessoas negras. Pelo contrário, as pessoas negras passaram a ser perseguidas por apresentarem o fenótipo negro.

Em uma das cenas, um dos seguranças do Estado que estava auxiliando no envio dos negros à África é identificado como negro. A seguir, ele é preso junto com aqueles que ele estava prendendo. Ser negro era não ser brasileiro, assim como ter fenótipo negro era não ser brasileiro, motivo pelo qual se justificava o envio dessas pessoas para países africanos.

Importante destacar que a medida provisória é vista no filme como uma decisão justa, legitima e antirracista, uma vez que os negros não serão mais mantidos na subalternidade do Brasil. Em vez de propor projetos de inclusão dos negros e o combate aos comportamentos racistas, ou seja, de mudanças estruturais, o Estado solucionou o problema retirando o elemento estigmatizado: a população negra.

A Medida Provisória é uma forma de branqueamento do Brasil, porém, diferente da ideia de miscigenação, ela se estabelece com a expulsão dos negros e de tudo que lembre a africanidade. É o Genocídio do Negro brasileiro. Isto não é apenas tirar a vida, mas matar a alma, as aspirações e sonhos, bem como a cultura e a ancestralidade.
Sob o pretexto de defesa da nação, a Medida Provisória n. 1888 foi aprovada. Mas não foi aceita com passividade, de modo que o diretor do filme já nos brinda evidenciando a falácia de que os negros foram dominados sem resistência ou que no Brasil a escravidão não teve insurreições.

Os personagens André e Antônio foram resistentes até o final, pois ninguém poderia violar o direito de propriedade deles para que se cumprisse a Medida Provisória. Ainda, a médica Capitu, esposa de Antônio, foi abordada pelos agentes do Estado enquanto estava em procedimento cirúrgico, para que fosse enviada para algum país africano. Em sua fuga do hospital, ela se abriga na mata do Rio de Janeiro, e ao avistar uma família em perigo, atinge um dos agentes que as perseguia, deixando-o desacordado. Não há outra interpretação para esse ato que não seja legítima defesa.

A articulação de resistência das pessoas negras frente a opressão da Medida Provisória resgatou a importância dos quilombos, que no filme recebeu o nome de “Afrobunkers”, que foi organizado nos antigos barracões das escolas de samba, que haviam sido fechados após a proibição do carnaval. Importante mencionar que as escolas de samba têm uma função educadora e de resistência da ancestralidade, por isso foi relevante o filme ter a sede dos “Afrobunkers” em uma escola de samba.

Os desfiles das escolas de samba são a exteriorização dos sentimentos de um povo que desceu dos morros (ou saiu das periferias) e foi às ruas mostrar sua cultura, conhecimento e resistência.

Os “Afrobunkers” se organizaram com dimensão social, política, jurídica e econômica para garantir a sobrevivência da população negra no Brasil. Em adição, a partir da participação democrática, os “Afrobunkers” conseguiram ocupar as funções de militares, dirigiram-se ao centro, pegaram o carro da polícia e “resgataram” Antônio de sua casa. Depois, todos se reuniram em uma fabulosa manifestação para mostrar que os negros brasileiros estão vivos, resistem e que vão permanecer aqui. Nós não vamos sair!

Conceição Evaristo no poema “Tempo de nos aquilombar”, narra que temos de agir no momento certo, esta é a acertada tática e necessário esquema, sempre estando atentas nas mãos e gestos de cooperação. O filme também apresenta pessoas brancas que se manifestaram contra a Medida Provisória e que tentaram infligir a ordem de não alimentar ou dar meios de comunicação aos resistentes.

Além disso, nota-se que os “Afrobunkers” eram constituídos por pessoas negras com ideias diversas sobre algumas ações políticas, mas isso não os dividiu. Com o objetivo da libertação dos negros e do combate ao racismo, todos os negros foram juntos às ruas, pois as suas reivindicações, ainda que carregassem contradições, tinham a mesma finalidade de liberdade.

O Brasil sempre teve várias vozes negras com pensamentos distintos, mas devemos nos unir e não nos dividir. As demandas e reivindicações são diversas, mas ninguém deve soltar a mão de ninguém. O foco é o fim de todas as formas de exploração.

Tanto na ficção do filme quanto no Brasil de hoje, não restam dúvidas de que chegamos em uma época retrocessos com a política de normalização das desigualdades, sucateamento das condições de vida e, na constância da pandemia, até no impedimento dos rituais de morte.

Ora, os negros constituíram a formação do Brasil com seus corpos, braço, filhos e filhas, bem como com a organização política, econômica e cultural. Os negros e indígenas são brasileiros. Nada se fez e tampouco se fará sem nós!

Elza Soares, em sua música “O que se cala” canta:
Pra que explorar?
Pra que destruir?
Por que obrigar?
Por que coagir?
Pra que abusar?
Pra que iludir?
E violentar
Pra nos oprimir?
Pra que sujar o chão da própria sala?
Nosso país

Por Waleska Miguel Batista, doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Sustentabilidade e Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Integra o Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro, CNPq. Professora Universitária e Advogada.
Fellipe Rodrigues Sousa, mestre em Direito Político e Econômico e Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado.