Por que a seita losurdiana idolatra a mercadoria?

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Gostaria de fazer breves comentários sobre o texto de Jones Manoel “O marxismo e a controvérsia sobre a China: nota sobre o debate entre Elias Jabbour e Maurilio Botelho” publicado na coluna da editora Boitempo e, ao mesmo tempo, retomar algumas bases importantes sobre a Wertkritik (Nova Crítica do Valor). O debatedor do lado oposto, Maurilio Botelho, é um dos grandes nomes do Brasil na publicação de livros e textos dentro da perspectiva da Nova Crítica do Valor (NCV) que apresenta, talvez como obra que inaugura essa nova perspectiva de interpretação da sociedade capitalista e a retomada da teoria da crise de Marx em novos patamares teóricos, o texto “A crise do valor de troca” na antiga revista Crítica Marxista que depois alterou-se o nome para Krisis. Nesse texto estão as bases da teoria do colapso/crise do valor fundamental que será desdobrada em textos posteriores do ensaísta alemão Robert Kurz como “O colapso da modernização”, “A ascensão do dinheiro aos céus”, “A substância do capital” e “Dinheiro sem valor”. Apesar do Kurz ser o nome mais conhecido, outros nomes rondam e produzem essa teoria viva em processo como Roswitha Scholz, Norbert Trenkle, Ernest Lohoff, Anselm Jappe, Karl Heinz Lewed, Claus Ortlieb, Tomasz Konicz, Peter Klein, Daniel Spath, entre outros. No Brasil, Maurilio Botelho e Marcos Barreira são destacados nomes nessa perspectiva, assim como Fábio Pitta, Marildo Menegatti, Robson Oliveira, Joelton Nascimento, entre outros.

Para a NCV, a sociedade produtora de mercadorias e sua lógica de valorização do valor é uma contradição em processo, em que a produção de riqueza material/real e a produção de riqueza abstrata (criação de valor) se contradizem entre si. Marx define valor como a “substância” contida em todas as mercadorias que permite a troca equivalente, sendo o dinheiro mera representação no nível da circulação dessa equivalência já dada. O valor é a quantidade de trabalho humano contido na mercadoria e a grandeza de valor o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Ressalta-se que é tempo de trabalho socialmente, não individualmente. É o tempo médio social para produzir geladeira, cadeira, etc., e não o tempo de cada empresa em si. O valor é criado na produção, na grande indústria (modo especifico de produzir bens necessários no capitalismo), e não na circulação. Na produção moderna há, simultaneamente, produção de riqueza material e produção de valor (processo de produção material e processo de valorização). A mercadoria produzida tem uma dupla característica: valor de uso (que na definição de Marx é aquilo que dá “suporte” ao valor) e valor de troca, manifestação do valor na troca mercantil. Quando Marx retrata a produção de valor pela categoria da mais-valia relativa demonstra que o desenvolvimento das forças produtivas aumenta a produtividade de riqueza material (produz mais mercadorias em menor tempo) e diminui a criação de valor (o trabalho humano torna-se obsoleto na produção, sendo o trabalho a “substância” do valor). O tempo de trabalho socialmente necessário para produzir X, com a racionalização da produção, diminui e a necessidade de trabalho humano idem. Essa contradição é o motor que move o capital e seu processo expansionista (sendo o imperialismo sua forma política de implementar a modernização).

Entretanto, a partir da década de 70 a mercadoria constitui-se como totalidade ultrapassando todas as barreiras territoriais, que possibilitava sua expansão. Aliado a isso, o advento da eletrônica nas guerras mundiais pelos aparatos militares e sua utilização no processo de produção, aliado à ciência do trabalho taylorista, resultou no mais amplo domínio sobre a classe proletária e o início do começo do fim: o desenvolvimento total das categorias capitalistas (mercadoria, valor, trabalho, direito e Estado) resultaram no limite interno absoluto do capital, ou seja, a quantidade de trabalho expelido da produção não é mais absorvido em outras áreas com a Terceira Revolução Industrial e a microtecnologia. Os novos trabalhos criados são funcionais à reprodução social, mas são improdutivos em relação à criação de valor. A riqueza material/real e a riqueza abstrata (valor) se dissociam, ou seja, a economia capitalista afasta-se em uma pura representação, simulação, ou seja, o capital fictício portador de juros. Marx já dizia que o D-D´ é a forma mais fetichista do capital, mas para a turma losurdiana o fetichismo da mercadoria é ideologia de classe média, como Elias Jabbour afirma em um post dias atrás. O capital portador de juros antecipa um crédito que deve ser pago posteriormente na distribuição do valor, isso está na teoria de Marx, no livro 3 de “O Capital”. Mas talvez, para os losurdianos, a teoria monetária moderna seja menos ortodoxa para os dias de hoje. Talvez falar em emancipação seja um simples “humanismo” e idolatrar o trabalho a missão revolucionária.

Outro ponto a ser destacado: a relação de inversão fetichista produzida pela concorrência na circulação mercantil torna uma compreensão da crise algo mais distante e de difícil percepção. O desenvolvimento das forças produtivas diminui a produção de valor, ou seja, destrói as bases materiais; mas a inversão da concorrência mercantil faz com que estes setores mais avançados tecnologicamente vendam suas mercadorias por um preço menor e maior quantidade, aumentando o lucro. O modo de representação capitalista inverte o modo de produção capitalista. O setor mais avançado destrói as bases de sustentação da sociedade moderna e é “recompensado” e o setor atrasado, que mantém as bases do valor é “punido” com a falência. Essa questão é bem detalhado no texto “A crise do valor de troca”, merecendo um tratamento mais detalhado e um conhecimento prévio da teoria do valor de Marx, mas compreender o capital como propriedade privada dos meios de produção e mercado é reducionista, pois não coloca em xeque a forma de produção capitalista: a santificada “grande indústria” dos altares do marxismo.

Esse processo de decomposição das formas sociais capitalistas, que Kurz denomina de colapso, como um longo processo histórico em que o valor produzido segue uma lógica decrescente (mas que os positivistas marxistas com seus dados só compreendem a inversão fetichista produzida pela concorrência), apresentam dois sintomas que se desdobram nas últimas décadas: o desemprego estrutural e a lógica da superfluidade, em que a antiga classe proletária torna-se em sujeitos não-rentáveis, ou seja, de meros apêndices da máquina à meros seres humanos descartáveis. Além desse processo de obsolescência do trabalho, que a ontologia do trabalho marxista chama de precarização e culpa o capital portador de juros (que dá pano para em texto futuro retomar a questão do antissemitismo e sua crítica reducionista da economia política), a ampliação do capital fictício e da concessão de créditos produzem um endividamento público e privado e a nova estratégia que o capital criou de “fugas para frente”, de retenção do colapso, mas que só acelera com suas bolhas especulativas e a decomposição do capital.

Em outro momento, a tentativa de colocar Maurilio Botelho junto de Miriam Leitão é surreal, beira o ridículo, pois o debate entre neoliberais e a nova onda desenvolvimentista de esquerda (socialismo chinês, cirismo, keynesianismo 2.0) coloca uma falsa polaridade como centro de debate: mercado e Estado. O processo de modernização e expansão do capital sempre alternou entre mercado e Estado, foi o próprio surgimento das armas de fogo e de um exército profissional apartado da sociedade que serviu de protótipo ao Estado, a relação entre Estado e mercado é de reciprocidade e dependência mútua. Isso pode ser visto com mais detalhes em “Dinheiro sem valor” de Robert Kurz. Analisando historicamente, a planificação econômica dos países do socialismo real implementarem o processo de modernização e o desenvolvimento do direito, Estado e da grande indústria, uma sociedade pautada no trabalho, algo que já havia ocorrido nos países centrais na época do Absolutismo. Hoje, esse debate “Estado” X “Mercado” resulta de um lado em um darwinismo social com os neoliberais defensores do livre mercado, em que a concorrência mercantil produz a guerra de todos contra todos e, de outro, um populismo de esquerda ou direita com características antissemitas (sobre tal recomendo “A economia política do antissemitismo” do Kurz e “Antissemitismo e nacional socialismo” de Moishe Postone). Por detrás dessa ideologia do progresso iluminista na qual o marxismo é refém (ver mais em “Razão Sangrenta” do Kurz), com a impossibilidade do capital manter sua valorização do valor (pois o barbudo alemão já ensinou que capital portador de juros não produz valor) o lado obscuro e constituinte do capital floresce na superfície: exceção, imperialismo de exclusão, sujeito narcisista, antissemitismo, militarização, etc.

O debate proposto coloca lado a lado dois pontos de vista de interpretação do marxismo diversos. Do lado de Jones e Elias, há uma crítica reduzida ao modo de distribuição do valor produzido, ou seja, ao mercado e à propriedade privada dos meios de produção. Seus antagonistas, que se mantém dentro da mesma crítica reducionista, são os defensores da tese de que a China seria uma forma de capitalismo de Estado (não é o caso de Botelho e da NCV, mas do althusserianismo). Para esses não haveria socialismo pois a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual permanece e se solidifica. Porém, ambos antagonistas trabalham na caracterização do capital como mercado e propriedade privada. Já a NCV critica o próprio modo de produção capitalista, ou melhor dizendo, a grande indústria. Não se trata de libertar o trabalho, mas libertar-se do trabalho. O ponto de vista da crítica não é mais a ontologia do trabalho como categoria fundante do ser social, mas a crítica da sociedade pautada no trabalho como categoria fundante do valor e da sociedade moderna. Não se trata de uma superação do capitalismo, com novos arranjos institucionais que garantam a autogestão proletária, mas da abolição da mercadoria, valor, dinheiro, trabalho, direito, Estado. Não se trata de uma crítica imanente, em que há potenciais emancipatórios no capital como a grande indústria e a classe proletária que emanciparão a humanidade, mas de uma crítica categorial, de uma ruptura ontológica com o capital. Não se trata mais do sociologismo reduzido da luta de classes, mas do capital como forma de dominação impessoal mediado por coisas, o capital como sujeito automático, como valor que se autovaloriza e gera a autofagia social. As classes sociais são suportes, máscaras de caráter, apêndices, personificações do capital e trabalho e motor do capital.

Finalizando, o debate proposto pela Boitempo tinha como titulo “China: horizonte socialista ou fim da linha capitalista?”, mas Jones e Elias deslocaram para “China: horizonte socialista ou capitalismo de Estado?”. Isso deve-se ao fato de que a base deles, a teoria de Domenico Losurdo e sua bizarrice de “marxismo ocidental” coloca tudo em um conceito aberto e diz: acadêmicos, marxistas idealistas, etc. Entretanto, grande parte da produção da NCV se dá em ambiente não acadêmico, em torno de revistas como Krisis, Exit! e Jaggernault, entre outras. Segundo que a NCV não se autodenomina mais marxista, pois defendem que a crise fundamental do valor é uma crise fundamental do marxismo e que uma nova teoria crítica a partir do fetichismo da mercadoria e da teoria da crise provenientes de Marx deve ser construída. Enfim, a NCV é um alienígena para os dois debatedores de Maurilio. Fica evidente também pelas diferenças de pontos de partida que conciliar o marxismo e a NCV é uma missão impossível que resultará sempre no sacrífico de um lado em favor do outro. Lukács e Postone, Althusser e Kurz, são água e óleo.