O novo sermão da montanha e a nova crítica do valor

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Adriano Camargo é autor de um escrito chamado “Por que a seita losurdiana idolatra a mercadoria?“. Sua “reflexão” é uma tentativa de responder ao meu escrito publicado no blog da Boitempo chamado “O marxismo e a controvérsia sobre a China“. Adriano é uma espécie de profeta da boa nova, o nosso Moisés do século XXI. Vamos ver qual é o sermão da montanha do nosso profeta.

O título do escrito, como podemos ver, é uma tentativa de ironia. Adoro ironias. O problema é que às vezes a ironia não fica boa. O nome de Losurdo no título é injustificável. O pensador italiano é citado apenas duas vezes. A primeira é essa “mas para a turma losurdiana o fetichismo da mercadoria é ideologia de classe média, como Elias Jabbour afirma em um post dias atrás” e depois essa “mas Jones e Elias deslocaram para “China: horizonte socialista ou capitalismo de Estado?”. Isso deve-se ao fato de que a base deles, a teoria de Domenico Losurdo e sua bizarrice de “marxismo ocidental”“.

Primeiro, essa fala de Elias sobre fetichismo da mercadoria ser ideologia de classe média, é de Elias e Losurdo não tem relação com isso – foi uma tirada polêmica de Elias e não vou entrar no mérito. A segunda citação é só confusão, talvez atormentado por algum demônio e também não tem relação nenhuma com Domenico Losurdo. Assim como Caim e Abel não conheciam outros seres humanos fora seus pais, Adriano simplesmente não conhece Losurdo.

Nosso profeta passa os primeiros parágrafos do seu escrito anunciando a boa nova, digo, explicando em grandes linhas a teoria de Robert Kurz e a Nova Crítica do Valor (NCV). A explicação transita em altíssimo grau de abstração sem concretude histórico-político do processo de acumulação de capital. Pela explicação de Adriano, na França e no Brasil, estão atuando as categorias do capital e não existe diferença. A dialética do abstrato ao concreto, a diferença dos diversos níveis de abstração, a compreensão de que o capitalismo na França e no Brasil são iguais, porém não são o mesmo, não existe. Na prática, tomando apenas o novo sermão da montanha do nosso profeta, é impossível explicar porque a Alemanha não tem as expressões da questão social que o Brasil; por qual motivo alguns países são produtores de ciência e tecnologia e outros meros consumidores; por que alguns países capitalistas acabaram com a mega-concentração fundiária e outros não etc.

Depois de vagar pelo deserto das explicações abstratas, surge do nada uma conclusão com localização histórica: “apresentam dois sintomas que se desdobram nas últimas décadas: o desemprego estrutural e a lógica da superfluidade, em que a antiga classe proletária torna-se em sujeitos não-rentáveis, ou seja, de meros apêndices da máquina à meros seres humanos descartáveis”. Note bem, o desemprego estrutural nas últimas décadas não tem relação com a luta de classes e os enfrentamentos políticos. É uma mera derivação da dinâmica imanente da crise do capitalismo. A única vez que nosso profeta fala da luta de classes é para isso: “não se trata mais do sociologismo reduzido da luta de classes”. Luta de classes é “sociologismo”. A luta de classes é como o bezerro de ouro e nosso Moisés corre logo para quebrá-lo.

Nosso profeta, maravilhado com a voz de Deus, não consegue entender o básico do escrito que ele se propõe a responder. Questionei o professor Botelho sobre sua fala em relação ao endividamento chinês e disse que parecia muito uma abordagem ortodoxa da dívida, crédito e teoria do desenvolvimento capitalista. Meu questionamento pode ser sintetizado nesse trecho: “O professor Botelho, em nenhum momento de suas intervenções, detalha se o tal alarmante endividamento chinês seria interno ou externo, nível de reserva de dólar, forma de regulação do mercado financeiro, gestão da conta de capitais, mecanismos de controle macroeconômico, papel dos bancos públicos, instrumentos de planificação etc.

Qual a resposta? Adriano diz que “em outro momento, a tentativa de colocar Maurilio Botelho junto de Miriam Leitão é surreal, beira o ridículo, pois o debate entre neoliberais e a nova onda desenvolvimentista de esquerda (socialismo chinês, cirismo, keynesianismo 2.0) coloca uma falsa polaridade como centro de debate: mercado e Estado”. Em seguida começa a divagar sobre a relação entre Estado e mercado. Quem leu meu escrito percebeu que não trabalho nesses termos e simplesmente não entendi qual a intenção do nosso profeta.

Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas, nosso Moisés, contudo, apenas escreve linhas tortas. Adriano diz que as experiências socialistas apenas repetiram algo que os países centrais já conheceram “na época do Absolutismo”. Incrível! Sem a iluminação divina, infelizmente, não fui informado que Luis XIV foi o primeiro stalinista! Se você achou esse trecho absurdo, calma que para Deus tudo é possível e sempre pode piorar. Nosso profeta diz que todo marxismo é refém “dessa ideologia do progresso iluminista”. Graças ao nosso bom deus que Robert Kurz veio a terra fazer a crítica da ideologia do progresso. Antes ninguém tinha pensado nesse problema.

Caminhando para conclusão, notamos que nas tábuas da lei do nosso profeta, não temos um debate sobre a China. Adriano deve considerar desnecessário fazer uma “análise concreta de uma situação concreta”. O debate entre Elias e Botelho foi sobre a China, meu escrito debateu centralmente a China, mas Adriano não está interessado no debate sobre a China. Para ele, debater uma formação econômico-social, entender sua particularidade, é proibido. Quando pensa em fazê-lo, tal qual Abraão, escuta uma voz mandando matar essa vontade, mas dessa vez, Deus não interrompe e qualquer reflexão que toque no solo da história é morta.

Por fim, nosso profeta, já no livro do apocalipse, diz “não se trata de uma superação do capitalismo, com novos arranjos institucionais que garantam a autogestão proletária, mas da abolição da mercadoria, valor, dinheiro, trabalho, direito, Estado”. Adriano, eu quero fazer parte desse movimento! Me diga, por favor, considerando que luta de classes é “sociologismo” e que as classes são “suportes, máscaras de caráter, apêndices”, como abolir tudo isso que elencou acima. Qual é a estratégia, táticas, formas organizativas, programas, movimentos e afins? É apenas publicando artigos da Wertkritik?

Combatendo as heresias e desejando realizar uma nova cruzada – mas uma cruzada só com artigos da Wertkritik -, nosso profeta nos informa que “segundo que a NCV não se autodenomina mais marxista, pois defendem que a crise fundamental do valor é uma crise fundamental do marxismo e que uma nova teoria crítica a partir do fetichismo da mercadoria e da teoria da crise provenientes de Marx deve ser construída” e, evidentemente, não existe mistura com os hereges: “fica evidente também pelas diferenças de pontos de partida que conciliar o marxismo e a NCV é uma missão impossível que resultará sempre no sacrífico de um lado em favor do outro”.

Segundo Adriano, só posso concluir que a NCV é uma nova teologia laica, que ao romper com o marxismo abdica de compromissos de práxis e pode, até o dia do julgamento final, fazer apenas a deliciosa crítica no plano das ideias e esperar que um belo dia todos os mortais tenham acesso a boa nova.

Enquanto isso, concluo dizendo: pai, perdoai-vos, eles não sabem o que dizem, escrevem e pensam.