A prisão do deputado Daniel Silveira PSL/RJ consolida o novo estado da correlação de forças entre as instituições democráticas e os movimentos de extrema-direita que ascenderam na crise estrutural da política e da economia do Brasil aberta em 2013.
Apesar de a prisão de um deputado eleito pelo povo apontar formalmente para uma violação da democracia típica do lavajatismo, a aparência esconde a essência nesse caso. Portanto, é preciso contextualizar no médio-prazo esse acontecimento.
Bolsonarismo e lavajatismo são as duas principais facções de extrema-direita que ganharam o protagonismo na anti-política nos últimos anos. Diversos fatos marcaram a ascensão das duas facções: a condução coercitiva de Lula, o vazamento de grampo da Presidente da República, o impeachment de Dilma marcado pelo discurso de Bolsonaro em homenagem aos torturadores da ex-guerrilheira, a prisão do ex-presidente para tirá-lo da eleição, e por fim, a chegada ao poder pelas urnas da aliança bolsonarista-lavajatista.
O bolsonarismo é um movimento de massas, portanto populista, mas que também possui expressões corporativistas e golpistas nas baixas patentes, principalmente das polícias militares. O deputado Daniel Silveira é um policial militar indisciplinado assim como Bolsonaro foi um capitão expulso do Exército. Sua índole corporativista é anti-alto-oficialato, e seu movimento é mobilizado principalmente nas bases militares, inclusive nos setores criminosos ligados ao avanço das milícias pelo Brasil a partir do Rio de Janeiro.
Desse modo, houve, por um tempo, no começo do governo, a percepção de que Bolsonaro armava um golpe militar-miliciano. Porém, rapidamente ficou claro que os militares não tinham organização golpista nenhuma desde o fim da Ditadura, ao contrário dos anos 50 e 60, quando tentaram por diversas vezes até conseguirem, enfim, chegar ao poder pelas armas. Por outro lado, ficou claro que a base bolsonarista era pouco organizada, e o fenômeno populista do líder carismático elegeu uma trupe de boçais absolutamente incompetentes que não fazem a menor ideia de como disputar por dentro das instituições, a exemplo desse deputado Daniel Silveira, que agiu de forma ridiculamente impulsiva a ponto de permitir ser completamente humilhado pelo STF e por seus colegas da Câmara dos Deputados.
Esse acontecimento insólito se segue a uma série de fatos que demonstram o enfraquecimento da anti-política que busca destruir as instituições democráticas. A disputa entre as facções da extrema-direita jogou importante papel nisso, mas também atuações de setores do próprio regime democrático, à direita e à esquerda. De um lado, Rodrigo Maia liderou de forma altiva a Câmara impondo freios ao Presidente, e de outro, a oposição atuou com as armas que tinha para combater os arroubos fascistas da base bolsonarista, a exemplo do ato heroico e inacreditável de um Senador da República que enfrentou a milícia golpista no Ceará em cima de uma retroescavadeira e levou dois tiros no peito defendendo a democracia. Nada mais emblemático do que a Câmara dos Deputados confirmar a prisão de um fascista musculoso, que tripudiou do assassinato de Marielle Franco pela milícia, no dia que se completa um ano de quando Cid Gomes interrompeu fisicamente com seu próprio corpo uma insurreição miliciana.
Mas o grande protagonista dessa luta em defesa das instituições democráticas, sem dúvida, tem sido o STF, que apesar de ser a cúpula do Judiciário, é indicado pela política. Não obstante deve-se acusar o STF de ter sido omisso no início e avanço do lavajatismo, hoje, é essa corte que enfrenta a anti-política, tanto da República de Curitiba como do golpismo fascista-miliciano.
Após a exposição dos esqueletos de corrupção da família Bolsonaro e das intervenções do Presidente nos órgãos de controle como a Polícia Federal e a Receita Federal, tornou-se insustentável a permanência do chefe do Partido da Lava-Jato no governo. O ex-juiz que condenou Lula e foi premiado com o cargo de Ministro da Justiça, Sérgio Moro, caiu atirando para matar ao vazar conversas privadas para tentar incriminar Bolsonaro, que só saiu fortalecido do episódio. A partir do rompimento entre bolsonarismo e lavajatismo, a política encontrou fôlego para enfrentar as duas facções.
O STF, liderado por Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes (nenhum dos dois indicados pelo PT, diga-se), partiu para o ataque e debelou as redes virtuais de organização do bolsonarismo mais radical e enquadrou Moro e seu braço-direito, Deltan Dallagnol, com base na Vaza-Jato. Bolsonaro tentou reagir com blefes golpistas e agitou suas bases, que foram sendo controladas pelo STF com diversas prisões dos agitadores mais tresloucados, como Sara Winter e Oswaldo Eustáquio.
Demonstrando que seria preciso mais do que fake news, um soldado e um cabo para derrubar as instituições democráticas, e cercando Bolsonaro cada vez mais judicialmente com a prisão de Queiróz, o operador de rachadinha, na casa do advogado da família, o STF empurrou o presidente para o jogo da política institucional. Bolsonaro não abandonou a mobilização populista de suas bases reacionárias, mas se submeteu às negociações democráticas com o Congresso Nacional e forjou uma grande base parlamentar em acordo com o Centrão, vencendo as lideranças até então hegemônicas da centro-direita encabeçadas por Rodrigo Maia.
Bolsonaro agora joga o jogo da democracia, e é muito melhor nisso do que Dilma ou Collor, diga-se. Ele mantém suas bases mobilizadas, mas sem qualquer possibilidade de golpismo militar ou miliciano, e se submete à soberania do Congresso e do próprio STF. A prisão de Daniel Silveira consolida esse processo de superação da hegemonia da anti-política que durou de 2013 a meados de 2020. Por enquanto, a extrema-direita continua na ofensiva, mas cada vez mais submetida às instituições eleitas pelo sufrágio universal, e é somente nesse campo de batalha que a esquerda pode voltar a disputar a hegemonia do povo.