O politicismo vulgar não compreende que Getúlio Vargas construiu uma nação

O politicismo vulgar nao compreende que Getulio Vargas construiu uma nacao
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Por ocasião do aniversário de Getúlio Vargas, fato bastante celebrado com orgulho pelos militantes trabalhistas, Jones Manoel do PCB apresentou sua posição sobre o líder da Revolução de 30. Novamente, Jones sucumbe a uma posição teórica politicista vulgarizada do marxismo. Ele diz que “a burguesia faltou ao encontro com o ‘projeto nacional de desenvolvimento‘”, além de acusar o primeiro governo Vargas de apenas “modernizador” e “sem rebeldia popular”, por conciliar com o “latifúndio e a oligarquia paulista”. Ainda retomou a discussão anacrônica sobre o autoritarismo de Vargas.

Sobre o problema do politicismo já respondi em dois artigos na polêmica do “dependentismo“, argumentando que é uma falsa questão a exigência da burguesia como sujeito voluntário em um Projeto Nacional de Desenvolvimento. Mas é preciso ainda fazer justiça a Getúlio Vargas como demiurgo do Brasil em que vivemos.

Segundo Jones, o Getúlio do segundo governo é que “apela para as massas” e enfrenta o imperialismo, e ao fim e ao cabo, é derrotado porque a burguesia o “odeia”. O militante comunista pelo menos reconhece a coragem de Getúlio com seu ato derradeiro eternizado na Carta-Testamento. E ainda tripudia do petismo que “nasceu para superar a “herança varguista” e não conseguiu repetir bravura semelhante”.

No entanto, Jones adere, mesmo sem perceber, ao liberalismo politico da aliança USP-PT. É absolutamente ridículo acusar o Getúlio dos anos 30 de autoritário para quem pretende utilizar o método do materialismo histórico-dialético. Getúlio é mais autoritário que Joseph Stálin na União Soviética? Que Adolf Hitler na Alemanha? Que Benito Mussolini na Itália? Que Chang Kai-Chek na China? Todos perseguiram comunistas nos anos 30.

Stálin enviou uma picareta ao outro lado do mundo para matar seu maior inimigo político, aquele que era o chefe do Exército Vermelho na guerra civil, bem como expurgou boa parte dos mais altos dirigentes de seu partido. Inclusive o “democrata” Franklin Roosevelt, que governou os EUA por 12 anos seguidos, ameaçou a Suprema Corte, e impulsionou o FBI de J. Edgar Hoover que faria inveja à Gestapo na perseguição ao movimento negro e também aos comunistas dos EUA nos anos 50 e 60.

Esse é apenas o contexto geral daquela época de crise estrutural do capitalismo e do liberalismo político no mundo todo. Mas que não se restringe àquele período. Imagine se Fidel Castro não combatesse seus inimigos internos em Cuba com todas as armas que tivesse à disposição? Ou Mao Tse Tung e a Camarilha dos 4 durante a Revolução Cultural? Ou mesmo Deng Xiaoping diante da luta por “direitos humanos” na China nos anos 80? É bastante curioso ver um comunista fazer coro ao liberalismo político contra um governante que persegue seus inimigos que querem derrubá-lo.

O politicismo vulgar nao compreende que Getulio Vargas construiu uma nacao

O contexto interno brasileiro era altamente complexo e nunca pretenderia fazer uma interpretação de fôlego sobre aquele momento. Basta lembrar alguns fatos. Getúlio convidou Luís Carlos Prestes para liderar suas forças armadas na Revolução de 30. Prestes recusou o acordo e em 1935 tentou fazer a sua revolução para derrubar Getúlio, mas foi derrotado. Desse fato decorre a tragédia pessoal de Olga Benário que sempre é trazida a tona na análise do período por óbvias e justificadas questões humanitárias, mas também para ocultar, sob o martírio dessa heroína nacional, erros históricos dos comunistas brasileiros.

Essa questão já foi suficientemente bem tratada em outro texto e não vou cair na armadilha de deixar parecer que estou relativizando os flagelos a que Olga foi submetida após sua deportação. As acusações que se seguem a esse caminho argumentativo já trilhado inúmeras vezes, e que pouca luz traz à discussão central aqui, tentam relativizar outra verdade que é o fato da esposa de Prestes ser literalmente uma agente estrangeira enviada pela União Soviética para fazer a revolução comunista no Brasil. O risco dessa afirmação soar minimamente como uma defesa dessa violência sofrida por uma mulher grávida traz uma interdição ao debate que sempre serviu a liberais e comunistas, ambos inimigos do trabalhismo.

Feita essa ressalva, com todo o cuidado necessário pela dramaticidade da situação, dentro do tema aqui tratado, vemos que é curiosa a hierarquia que normalmente se apresenta colocando o autoritarismo de Vargas ao expulsar uma agente secreta estrangeira para a morte em nível de crueldade superior ao de enfiar uma picareta na cabeça de Trotsky, um idoso exilado no México. Me parece que não adianta discutir esses fatos através de um moralismo sobre a bondade ou maldade dos governantes, mas sobre o interesse de seus Estados nacionais.

Outro desvio liberal severo da argumentação de Jones é sobre a ausência de “luta de classes” em prol de uma “conciliação”. Dizer que Getúlio conciliou com a “oligarquia paulista” é risível. Os paulistas apenas se submetem ao projeto de desenvolvimento varguista depois de pegaram em armas contra Getúlio que os derrotou em 32. Irresignados, em 34, os paulistas criaram seu poderoso aparelho ideológico, a USP, que ai está até hoje pautando o pensamento social brasileiro contra o presidente que assinou a Consolidação das Leis do Trabalho em um comício gigantesco de trabalhadores no estádio São Januário no Rio de Janeiro. A CLT não é do segundo governo Vargas. Essa mesma CLT que toda a esquerda luta tanto hoje para manter o que sobrou dela depois de 30 anos de neoliberalismo.

O corporativismo da CLT também não é nenhuma “influência fascista“. Aqui, vale a pena reproduzir a brilhante exposição do professor Gilberto Bercovici sobre o assunto:

“A grande influência ideológica na elaboração das leis trabalhistas que pode ser detectada foi a do positivismo de Auguste Comte, adaptado ao Rio Grande do Sul pelo líder republicano Júlio de Castilhos, fundador do Partido Republicano Riograndense (PRR, o partido de Getúlio Vargas durante a Primeira República). A proposta do positivismo castilhista era a de uma política de eliminação do conflito de classes pela mediação do Estado, com o objetivo de integração dos trabalhadores à sociedade moderna. Proposta implícita na elaboração das leis trabalhistas durante o Governo Provisório e, especialmente, durante o Estado Novo.

Hoje, as pesquisas realizadas vêm demonstrando que a adesão dos trabalhadores ao populismo e à legislação trabalhista é também entendida como uma espécie de atuação pragmática, visando consolidar conquistas alcançadas e obter novos benefícios. A legislação trabalhista permitiu a imposição de concessões e deveres ao Estado e aos empregadores. A sua utilização é apropriada de modos diferentes de acordo com os vários interesses em conflito.

Os direitos trabalhistas não foram entendidos apenas como dádiva, mas também como conquista. Mais do que isso, os direitos trabalhistas, pela intervenção do Estado, deram acesso à cidadania aos trabalhadores, que foram incorporados à política a partir da década de 1930. Deste modo, a cidadania dos trabalhadores, no Brasil, foi alcançada não pelos direitos políticos, mas pelos direitos sociais, definidos por lei.”

Essa era a “conciliação sem luta de classes” do Estado Novo. Custo à acreditar que os comunistas concordam com a interpretação acadêmica liberal compartilhada por tucanos e petistas que veladamente comemoraram o “colapso do populismo” em 1964. O fato é que Getúlio não é apenas um “modernizador conservador”, ele criou uma nação industrial e rebelde. A “pausa imperialista” foi obra da conjuntura histórica mas também do gênio de Vargas que negociou com EUA e Alemanha para obter o melhor acordo possível com os americanos, culminando na instalação da Companhia Siderúrgica Nacional que deu base à industrialização do país. Evidente que havia contradições. A questão agrária é sem dúvida a maior delas. Getúlio não fez a essencial reforma agrária, que, no entanto, era a prioridade de seu herdeiro político maior, João Goulart. Justamente quando o trabalhismo avança para as reformas de base, entre elas a agrária, é que se consolida o golpe de Estado.

A questão agrária estava na mente de Getúlio que defendia a reforma em seu segundo governo e até na de políticos mais conservadores da época, como seu sucessor Juscelino Kubistchek do PSD, que pretendia fazer sua campanha presidencial de 1965 com o slogan “5 anos de agricultura para 50 anos de fartura”. Segundo Darcy Ribeiro, JK chegou a convidá-lo para ser ministro da agricultura se eleito. Imagine um antropólogo defensor de índios como ministro de Estado da agricultura. Esse era o Brasil que viria como futuro da Era Vargas se não tivesse sido interrompido pelo golpe.

Os processos histórico-político-nacionais são complexos, cheios de contradições e coagidos por estruturas amplas da economia, da cultura e da geopolítica. Não dependem apenas da vontade ou da ideologia dos governantes. Getúlio não foi apenas um homem, foi um ponto culminante da história nacional. Assim como Perón para a Argentina, Nehru para a Índia, Park para a Coréia do Sul, Mao para a China, e Stálin para a União Soviética, que aliás também teve seu processo soberano de desenvolvimento interrompido em 1991.

Mas assim como as instituições brasileiras que dão conteúdo ao nosso Estado nacional, tais como os direitos trabalhistas e as empresas públicas, que estamos hoje todos apaixonadamente defendendo, foram criadas por Getúlio; os russos também devem muito ao período de Stálin que industrializou aquele país semi-feudal. Insuspeito historiador trotskista, Isaac Deutscher, escreveu que Stálin era a síntese nacional russa de Ivã, O Terrível e Lênin. Imagine se um russo, por mais ressentido que fosse pela violenta repressão stalinista, chamasse Stálin, que estruturou o Estado nacional soviético que dá base à retomada nacionalista atual de Putin, de apenas um “modernizador conservador”.

Getúlio Vargas é o maior estadista da história do Brasil, e seu legado não é apenas do movimento trabalhista, e sim de todo o povo brasileiro que vive em uma nação industrial de território continental, cuja economia é altamente estratégica para todo o planeta. Assim como os mexicanos, apesar de alguns milhares de km a mais, também estamos muito longe de Deus e muito perto dos EUA. O Brasil, ao contrário de países da Ásia, de fato não tem uma história de enfrentamento militar contra o imperialismo norte-americano, mas produziu o Projeto Nacional de Desenvolvimento mais ousado e bem sucedido da periferia do capitalismo no ocidente sob influência direta dos EUA, justiça feita à pequenina Cuba que permanece resistindo com seus poucos milhões de habitantes com direitos sociais universais mas sem desenvolvimento industrial.

Como já repeti em vários outros textos, nossa posição geopolítica submetida ao lado americano da Guerra Fria foi decisiva para a interrupção de nosso Projeto Nacional, e não o suposto “conservadorismo” de Vargas ou a falta de uma “burguesia nacional”. Pelo contrário, sem ele, provavelmente hoje seríamos um país pré-industrial sempre à beira da guerra civil e do colapso da unidade da nação. A Revolução Nacional do Brasil começou em 1930 e está por ser terminada. Com este povo, com esta história, com esta cultura, e com este símbolo rebelde chamado Getúlio Vargas.