O petróleo saudita em yuan e a hegemonia global dos Estados Unidos

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Criou alarde a notícia que circulou há poucos dias segundo a qual a Arábia Saudita estaria avaliando vender seu petróleo para a China em yuan. A se confirmar essa iniciativa, os chineses, compradores de cerca de 25% do petróleo exportado pelos sauditas, passariam a poder adquiri-lo sem precisar usar dólares ou o sistema financeiro dos Estados Unidos, enquanto os sauditas poderiam começar a constituir reservas na moeda chinesa ou em ativos nela denominados.

Com boas razões, a notícia foi interpretada como uma grande e importante novidade nas relações internacionais. Já no dia seguinte, por exemplo, circulou um vídeo de cerca de 10 minutos no qual um comentarista de redes sociais, visivelmente afeito a sensacionalismos, “decretava” que a “yuanização” do petróleo saudita marcava o fim da hegemonia global dos Estados Unidos. Será?

Comecemos recapitulando o óbvio: de acordo com Daniel Yergin no seu enciclopédico O Petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e dinheiro, o petróleo é o material básico da assim chamada “civilização” contemporânea. A partir dele são produzidos inúmeros grupos de produtos como combustíveis, plásticos, farmacêuticos e fertilizantes, para citarmos apenas os principais. Sem petróleo e seus derivados, não pode funcionar qualquer sociedade urbana e industrial, tampouco podem existir e se movimentar forças armadas modernas. Trata-se, assim, do recurso mais estratégico para o que Yergin chamou de “sociedade dos hidrocarbonetos”.

Na primeira metade do século XX os Estados Unidos eram, de longe, o maior consumidor mundial de petróleo. Porém, a sua produção, embora também fosse enorme, dava sinais de rápido declínio em relação às necessidades do país. Então, já se suspeitava que o Golfo Pérsico abrigasse a principal província petrolífera do mundo, mas as reservas do Iraque e da Pérsia eram exploradas principalmente pela companhia britânica Anglo-Persian Oil Company e as empresas estadunidenses não conseguiam concessões nesses territórios.

Assim, na década de 1930, essas empresas saíram à procura de novas áreas e, dentre elas, realizaram estudos de prospecção no reino da Arábia Saudita, fundado em 1932. Logo foram então encontradas, no leste do país, reservas de petróleo de excelente qualidade e de dimensões potencialmente colossais, poucos metros abaixo da superfície. Em seguida, ainda durante a Segunda Guerra Mundial em fevereiro de 1945, o então presidente Franklin Roosevelt, poucas semanas antes de morrer, reuniu-se com o rei saudita Abdul Aziz Ibn Saud a bordo de um navio da Marinha dos Estados Unidos no Canal de Suez, no Egito. Roosevelt estava convencido da necessidade de encontrar uma fonte estável e segura de petróleo para o seu país no pós-guerra. Então, ambos selaram uma aliança pela qual os estadunidenses se comprometiam a fornecer segurança militar à monarquia saudita em troca desse suprimento energético.

Dessa forma, um consórcio de empresas estadunidenses formou a Aramco – Arabian-American Oil Company, que na década de 1950 descobriu os maiores campos de petróleo do mundo e investiu enormes montantes com vistas a fazer da até então paupérrima Arábia Saudita a maior produtora e exportadora mundial, evidentemente sob controle estadunidense. Na década de 1970, durante a chamada “Crise do Petróleo”, os sauditas lideraram o embargo dos produtores do Golfo Pérsico aos países ocidentais e assumiram o controle majoritário do seu petróleo ao nacionalizar, em 1976, a hoje intitulada Saudi Aramco. A explosão dos preços internacionais do produto, porém, repentinamente pôs nas suas mãos fortunas que não encontravam aplicações produtivas no próprio país ou nos vizinhos. Forjou-se, então, um novo acordo entre os sauditas e os Estados Unidos no qual os primeiros se comprometiam a vender o seu petróleo agora nacionalizado exclusivamente em dólares e, em troca, recebiam acesso privilegiado a oportunidades de investimento desses dólares excedentes no sistema financeiro dos Estados Unidos e, em menor escala, da Grã-Bretanha.

Assim, a aliança entre os dois países foi reforçada a partir da chamada “reciclagem dos petrodólares”. Esse fato resultou no depósito de centenas de bilhões de dólares nos bancos estadunidenses, aumentando enormemente a sua capacidade de fornecimento de empréstimos e realização de investimentos. Esse dinheiro forte “barato” alimentou, durante alguns anos, a industrialização de países periféricos como Brasil e México – por exemplo, financiando os planos nacionais de desenvolvimento dos governos Medici e Geisel -, produzindo o endividamento externo que, na década seguinte, com a elevação exponencial dos juros nos Estados Unidos, resultou na “crise da dívida” latino-americana.

O que interessa aqui, porém, é que através desse sistema os Estados Unidos lograram atrelar o petróleo saudita, o regulador de última instância do suprimento mundial, ao dólar. Logo, não há dúvidas de que a Arábia Saudita é um aliado fundamental para a referida hegemonia global dos Estados Unidos e que a comercialização do seu petróleo em dólares consiste num ponto-chave nesse esquema. A Arábia Saudita tem importância estratégica semelhante à da Alemanha ou do Japão para a posição global dos Estados Unidos, pois garante que a demanda global incessante por petróleo resulte numa outra demanda global, não menos incessante, por dólares e ativos denominados em dólares, como títulos da sua dívida pública. Essa condição reforça a posição hegemônica do dólar nas relações internacionais e apoia o chamado “privilégio exorbitante” desfrutado pelos Estados Unidos, como a sua capacidade de financiar suas dívidas a juros baixíssimos, de utilizar a sua própria moeda nos seus pagamentos internacionais e de, assim, poder consumir muito mais do que produz sem incorrer em desequilíbrios financeiros significativos.

Como exemplo cabal da importância da ligação entre o dólar e o petróleo, temos o fato de que a Guerra do Iraque iniciada pelo governo George W. Bush em 2003 teve como um dos seus objetivos, se não o principal, bloquear a iniciativa de Saddam Hussein de vender o petróleo iraquiano em euros. Ou seja, o governo de George W. Bush agiu para coibir um precedente de “desdolarização” do comércio do petróleo do Golfo Pérsico e de criação de “petroeuros”. Em que pesem pretextos como a “Guerra ao Terror” e as alegações – que se comprovaram falsas – da posse de armas de destruição em massa, tratou-se de uma guerra empreendida pelos Estados Unidos contra a ascensão do euro como rival internacional do dólar através da sua vinculação ao petróleo. Não por acaso, franceses e alemães, cuja moeda era “projetada” pelas ações de Saddam Hussein, se opuseram veementemente à invasão, enquanto a Grã-Bretanha de Tony Blair seguiu fielmente os desígnios imperiais estadunidenses.

Feita essa necessária exposição, a disposição saudita – ainda a ser confirmada – de vender o seu petróleo em yuan tem que ser compreendida dentro do contexto atual.

Em primeiro lugar, é indispensável considerarmos o confisco que as autoridades dos Estados Unidos e seus aliados estão realizando sobre centenas de bilhões de ativos, denominados em dólares, de propriedade do governo, de empresas e de indivíduos russos. Essa iniciativa transmite a qualquer governo “prudente” uma mensagem óbvia: a de que os seus ativos situados no sistema financeiro estadunidense ou a sua mercê não são seguros como geralmente se afirma, pois podem ser “sequestrados” pelos controladores daquele sistema se eles assim desejarem.

Embora a Arábia Saudita seja aliada estadunidense da maior importância, trata-se de país de regime autocrático, absolutamente distinto da “democracia liberal” da qual os Estados Unidos se consideram o modelo a ser seguido pelo resto do mundo. Para padrões ditos “ocidentais”, o regime saudita é extremamente retrógrado em termos de valores e comportamentos, desfrutando de péssima imagem. Portanto, os dirigentes sauditas talvez temam sofrer, em algum momento, pressões por parte de um governo mais “progressista” nos Estados Unidos para “abrir”, “modernizar”, “liberalizar” o seu regime, utilizando para isso algum tipo de chantagem com os seus petrodólares. Portanto, os sauditas devem estar considerando prudente reduzir a sua vulnerabilidade às ações estadunidenses ao diversificar as suas reservas e os seus investimentos.

Por outro lado, já fazem alguns anos que a China vem buscando “desdolarizar” progressivamente as suas relações com o exterior. Para isso, entre outras iniciativas, vem trabalhando para construir um comércio internacional de commodities agrícolas, minerais e energéticas denominado em yuan, controlado por bolsas de mercadorias e futuros em Shanghai, Dalian e Zhengzhou. Com isso, os chineses desejam pagar na sua própria moeda pelos recursos naturais que necessitam importar, evitando o uso do dólar e do sistema financeiro internacional controlado pelos Estados Unidos. Assim, reduzem o seu risco cambial, aumentam a sua segurança financeira e a segurança do seu abastecimento de matérias-primas indispensáveis, incluindo o petróleo.

Temos aqui, portanto, uma convergência de interesses entre sauditas e chineses. Todavia, a iniciativa deve ser posta em seu devido lugar. A Arábia Saudita permanece estritamente ligada aos Estados Unidos e nada indica que deseje, ou mesmo que possa, tomar outro rumo no curto prazo. Por exemplo, os sauditas são altamente dependentes do fornecimento de material militar estadunidenses. A Arábia Saudita é uma das maiores importadoras mundiais de equipamentos militares e os Estados Unidos são, de longe, a sua principal fonte. Há contratos multibilionários de fornecimento e manutenção desses equipamentos entre eles, Deteriorar as suas relações com os Estados Unidos colocaria a segurança do regime saudita em posição muito vulnerável. Essa não parece uma opção estratégica sensata.

Por outro lado, em que pesem esforços crescentes de internacionalização do yuan,  ele ainda está a, pelo menos, uma ou (mais provavelmente) duas décadas de distância do dia em que poderá colocar qualquer desafio sério à hegemonia internacional do dólar. Para que isso seja possível, falta acessibilidade dos estrangeiros à moeda chinesa e liberdade para utilizá-la. O yuan continua sendo uma moeda predominantemente “doméstica”, protegida por uma espécie de “grande muralha” financeira que praticamente a isola das influências externas. Por enquanto, as autoridades chinesas preferem que ele permaneça assim, pois exercem a sua soberania monetária sem restrições e controlam melhor a moeda para seus fins desenvolvimentistas. Isso não seria possível, pelo menos da mesma forma, se abrissem a conta de capitais do país, permitindo maior liberdade de movimentação ao dinheiro estrangeiro.

Além disso, a China detém enormes reservas em ativos em moedas estrangeiras, principalmente dólares, cerca de 3,2 trilhões. Enfraquecer a posição internacional do dólar nesse momento significaria, para os chineses, uma espécie de “tiro no próprio pé”, pois reduziria o poder de comando das suas reservas e também as suas possibilidades de uso no exterior. O processo chinês de construção de alternativas ao dólar e ao sistema financeiro internacional hegemonizado pelos Estados Unidos existe e claramente já está em andamento, por exemplo, com iniciativas como os swaps cambiais, a criação do CIPS e, mais recentemente, do renmimbi digital. Porém, esse processo é lento, cauteloso e progressivo. Os chineses privilegiam a segurança nos seus movimentos internacionais, planejam suas ações em horizontes bastante dilatados de tempo e não tomarão nenhuma medida “radical” contra o dólar, mesmo porque ainda não se sentem prontos para assumir o protagonismo internacional nesse campo em sacrifício dos seus objetivos domésticos.

Em suma, não está no radar da Arábia Saudita qualquer ruptura com os Estados Unidos, assim como não está no da China pressionar pela substituição imediata da posição internacional do dólar em favor da sua moeda.  Não há “yuanização” do petróleo saudita ou o surgimento de um “petroyuan” à vista. O que há, sem dúvidas, são dois países que se veem sob “risco geopolítico” buscando alternativas, procurando diversificar as suas operações financeiras, as suas reservas, reduzir a sua dependência e vulnerabilidade frente às ações dos Estados Unidos, uma potência ainda hegemônica que vem se mostrando cada vez mais imprevisível na medida em que “abusa” da sua prerrogativa de impor sanções, isto é, de usar a sua posição dominante nas finanças globais para avançar seus interesses geopolíticos

Com efeito, esses passos serão seguidos por outros países que também não desejam se sujeitar a esse poder arbitrário estadunidense, como a Índia e a Rússia, que vinha fazendo isso desde 2014. Todos terão que reduzir a sua exposição/dependência do dólar e das finanças sob controle dos Estados Unidos, muito embora sem poder prescindir inteiramente deles, dada a sua abrangência. Nenhum deles deverá romper com o dólar imediatamente, mas enquanto países que desejam autonomia e independência em relação aos interesses e às ações estadunidenses, terão que buscar outras possibilidades. Esse fato sinaliza uma provável mudança de grande magnitude na ordem mundial: um processo de redução da centralidade do dólar que será bastante longo, construído vagarosamente, em favor de um sistema financeiro internacional mais “multipolar”.