A Petrobrás de Bolsonaro: símbolo de um projeto de Brasil destruído

A Petrobras de Bolsonaro simbolo de um projeto de Brasil destruido
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Um dia existiu um Brasil que, apesar de todas as suas carências e dificuldades, ousou se projetar um país soberano, industrializado, moderno e autônomo.

Foi movido por esses ideais que, em 1953, Getúlio Vargas criou a Petrobrás. Sem contar com qualquer colaboração de ditos “burgueses” brasileiros, então pouco numerosos e flagrantemente desinteressados e incapazes, muito menos com a das grandes corporações multinacionais, que não queriam correr o risco de criar áreas produtoras concorrentes, Getúlio decidiu fundar uma empresa estatal com o objetivo de assegurar a posse e a exploração desse recurso crucial, estratégico – “o ouro negro que dará independência ao Brasil”, conforme afirmavam as peças de propaganda do seu governo.

Com essa empresa, Getúlio pretendia conceder ao Brasil a autonomia energética necessária para alcançar aqueles fins. Assim, ela foi o resultado concreto da intensa campanha nacionalista que mobilizou amplos setores civis e militares em torno do lema “O petróleo é nosso”. Por isso, a Petrobrás logo se tornou o principal símbolo da nossa construção nacional. Não por acaso, tornou-se também o principal alvo daqueles interessados em sabotar tal construção. “É só ele desistir da Petrobrás”, disse o senador Assis Chateaubriand em 1954, expondo a sua condição para cessar a oposição do seu império midiático ao governo. Getúlio, como sabemos, não desistiu.

Meio século depois, no dia 28 de março de 2022, Jair Bolsonaro anunciou a demissão do até então presidente da Petrobras, o general de exército da reserva Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de completar seu primeiro ano no cargo. Ao patriota Silva e Luna coube a “honra” de ter promovido, em 2021, a maior distribuição de dividendos da história da empresa, mais de 100 bilhões de reais arrancados dos bolsos dos brasileiros e embolsados por uma pequena elite de acionistas, no Brasil e no exterior. Seu substituto será Adriano Pires, ex-professor do Coppe-UFRJ e diretor-fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura.

Pires, por sua vez, é um “defensor ardoroso” da privatização ao qual Bolsonaro teria prometido “se livrar” da empresa, que segundo ele, lhe dá “muita dor de cabeça”. Em rigor, essa mudança cosmética vem na esteira do – até aqui – último aumento no preço dos combustíveis anunciado pela Petrobrás, no dia 10 de março. Então, a empresa reajustou nas suas refinarias a gasolina em 18,8%; o diesel em 24,9%; e o gás de cozinha (GLP) em 16,1%. No comunicado em que apresentou suas razões para tal, afirmou que o objetivo era garantir que “o mercado brasileiro continue sendo suprido” sem perturbações nas suas cadeias de produção, importação e distribuição. Por fim, fez uma impotante ressalva: a “volatilidade” dos preços internacionais decorrente da guerra na Ucrânia não teria sido levada em consideração nesse reajuste. Ou seja, há a perspectiva de novos tarifaços em breve.

Embora ainda seja considerada a principal empresa estatal brasileira, já debatemos anteriormente as razões pelas quais, na prática, a Petrobrás já foi privatizada. Os efeitos da entrega irrestrita da empresa à administração por interesses privados têm se feito cada vez mais evidentes nos últimos tempos. Apenas para citarmos um exemplo, os preços da gasolina e do diesel nas suas refinarias mais do que dobraram desde 2020. Tal qual as anteriores, essa última rodada de aumentos provocará efeitos terríveis sobre toda a sociedade brasileira. Os combustíveis encarecidos impactam os fretes rodoviários, principal modal de transportes no Brasil, elevando os custos de todas as cadeias de produção e distribuição. Assim, se os preços dos combustíveis aumentam, a inflação se dissemina rapidamente, abrangendo quase todos os produtos. Além disso, os combustíveis mais caros também afetam os custos e tarifas dos transportes públicos. Por outro lado, milhões de brasileiros vem tendo o seu acesso ao gás de cozinha vedado pelos aumentos incessantes. Assim, são forçados a recorrer à lenha, que pelo menos desde o ano passado já se tornou mais utilizada que o GLP nas cozinhas brasileiras e tem feito o Brasil retroceder aos anos 1970 neste quesito. Além das perdas na qualidade da sua alimentação, essa infeliz substituição provoca inúmeros acidentes e mortes país afora.

Ao contrário de outros tempos, recorrer ao etanol tampouco tem sido uma opção. Nos anos 1970, a disparada dos preços internacionais do petróleo, que então importávamos em grandes volumes, levou a ditadura militar a conceber o Pró-Álcool. Ao contrário da gasolina e do diesel, a produção do etanol em grande escala podia ser alcançada com recursos nacionais, pois a cana-de-açúcar era uma cultura agrícola genuinamente brasileira e as refinarias poderiam ser construídas ou instaladas aqui. De fato, assim se fez, dando ao Brasil o pioneirismo na produção de um combustível que não requeria matérias-primas importadas, portanto, tendo seus custos de produção e preços em moeda nacional. Ou seja, tal qual a Petrobrás por Getúlio, o Pró-Álcool e o etanol foram criados com claro sentido de construção das bases materiais da soberania, da autonomia e do desenvolvimento nacionais, embora sob o signo do autoritarismo de governos de viés ideológico claramente antipopular.

Em fevereiro de 2022, porém, enquanto a gasolina havia aumentado 32,62% no Brasil nos 12 meses anteriores, o etanol aumentou em 36,17%. A razão? Segundo os “especialistas”, o etanol “compete com a gasolina”. Logo, se o preço da gasolina aumenta, aumenta o consumo do etanol e, automaticamente, seus preços são reajustados. Ou seja, em vez de funcionar como um substituto, o etanol tem tido os seus preços devidamente “calibrados” para custar, proporcionalmente, aproximadamente o mesmo que custa a gasolina. Isso garante as altas taxas de lucro dos produtores e distribuidores de combustíveis, enquanto subtrai aos brasileiros a possibilidade de uma alternativa aos preços do petróleo. Assim, uma tecnologia nacional inovadora, criada com o objetivo de proporcionar autonomia e a continuidade do desenvolvimento diante das dificuldades do cenário externo, hoje tornou-se apenas mais uma fonte de acumulação privada regida por uma suposta “lei do mercado”.

Dois dias depois do aumento estratosférico do dia 10 de março e temendo as suas repercussões nas suas pretensões à reeleição, Bolsonaro afirmou – como se não tivesse nada a ver com isso – que a administração da Petrobrás demonstrava “não ter qualquer sensibilidade” com a população. Além disso, sugeriu que a sua política de preços tinha que mudar e que a empresa apresentava um “lucro absurdo […] num momento atípico do mundo”. Todavia, declarou também não estar “satisfeito com o reajuste”, mas reiterou: “não vou interferir no mercado”. Disse, ainda, que se limita a dar “palpites e sugestões” ao comando da empresa, sem emitir quaisquer ordens ou comandos; e que “o brasileiro tem que entender que quem decide esse preço não é o presidente da República, é a Petrobrás, com seus diretores e seu conselho”.

Ou seja, confessando a sua impotência como de costume, Bolsonaro explicitou sem dar qualquer margem a dúvidas: saibam vocês brasileiros que, ao me elegerem para a Presidência do seu país, escolheram alguém incapaz de exercer qualquer comando executivo sobre a Petrobrás. Bolsonaro, mais ainda do que fez Michel Temer, foi o presidente que reconheceu para essa suposta empresa estatal o estatuto de uma espécie de feudo privado, independente, situado dentro do Estado brasileiro. Uma empresa que opera à revelia dos comandos do pretenso chefe desse Estado. Uma empresa que opera à revelia das escolhas do povo brasileiro, aquele do qual, segundo afirma a Constituição, emana e é exercida a sua soberania. Uma empresa que é utilizada pelos seus proprietários para extorquir esse mesmo povo, reduzindo as suas oportunidades de emprego e renda, aviltando a sua qualidade de vida e o expondo ao risco de morte precoce.

Em suma, essa, pois, é a Petrobrás de Jair Bolsonaro. Uma empresa criada como instrumento de construção nacional, tanto no plano material quanto no simbólico, é vista por ele como uma “dor de cabeça” da qual deve “se livrar” o quanto antes. Uma empresa transformada em instrumento de saque e loteamento de um país que caminha, a passos largos, para se tornar mera área de exploração privada, nacional e internacional. Não poderia haver símbolo mais representativo – e trágico – deste Brasil que nos tornamos, um projeto de país destruído.