Perigo Amarelo 4.0: uma peça na geopolítica da nova década

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O Perigo Amarelo

“Perigo amarelo” ou também “Terror Amarelo” e “Espectro Amarelo”. Desde que surgiu, no início do século XIX, essas expressões foram utilizadas por líderes e conselheiros de Estados “ocidentais” para se referirem aos povos asiáticos em períodos em que temiam sua ascensão econômica.

Se no início, o “Perigo Amarelo” foi utilizado como slogan para justificar as políticas imperialistas dos europeus no leste da Ásia – tendo os chineses como primeiro alvo do discurso – com as disputas políticas, econômicas e militares ocorridas nos séculos XX e XXI, japoneses e coreanos também foram incluídos na lista. Como medida de segurança, segundo esse discurso, deveriam então ser vigiados, temidos e, no limite, eliminados.

O “Perigo Amarelo”, valendo-se de preconceitos culturais e aprofundando-os,  é, nas palavras da pesquisadora Gabriela Shimabuko, “um recurso na manipulação das relações de poder e aliança que visa manter a hegemonia euro-americana, conduzindo o medo coletivo numa lógica de terror” contra povos asiáticos. [1]

Intensificando os discursos racistas e xenófobos, alguns governos adotaram medidas práticas a fim de manipular o temor contra os orientais e seus descendentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1882, surgiu o Ato de Exclusão de Chineses, com restrições à imigração e naturalização. Em 1924, foi promulgada sua “versão atualizada”, a Lei de Imigração, também conhecida como Ato de Exclusão de Asiáticos, que vigorou até 1965. Influenciados pelos norte americanos, países como Canadá, Peru e Brasil também adotaram políticas migratórias semelhantes entre 1920 e 1930. Ou seja, mais que um “discuso”, existe um racismo que marcou as políticas governamentais para a imigração nos países que mais se valeram dela.

 

Crescimento econômico chinês como ameaça aos Estados Unidos

Após o “século de humilhação” chinês, que vai de meados do século XIX até meados do XX, a China passou por uma grande revolução anti-colonial e socialista. Com o Partido Comunista Chinês à frente do governo, especialmente a partir da década de 1970, sua economia deslanchou.

Conforme já foi exposto por Melissa Cambuhy em outra oportunidade:

“De 1952 a 2018, o valor agregado industrial da China aumentou de RMB12 bilhões para RMB30,5 trilhões, 970 vezes a preços constantes, com uma taxa de crescimento média anual de 11%. O PIB aumentou de RMB67,9 bilhões para RMB90 trilhões, um aumento de 174 vezes a preços constantes, com uma taxa média de crescimento anual de 8,1%, e o PIB per capita aumentou de RMB119 para RMB64.644, um aumento de 70 vezes a preços constantes. Além de que de acordo com estatísticas do Banco Mundial, em 2018, a economia da China valeu US $ 13,6 trilhões, perdendo apenas para a economia dos EUA que valeu US $ 20,5 trilhões”.[2]

Ao final de 2019, o resultado do PISA, que avalia a qualidade da educação básica no mundo revelou que a China liderava as três áreas de conhecimento testadas (leitura, matemática e ciências). Vale lembrar que os demais países que ocupavam os primeiros lugares na avaliação feita pela OCDE eram asiáticos (quando não, partes da China consideradas a parte, como Macau e Hong Kong)[3].

O investimento em educação feito no decorrer das últimas décadas tem gerado resultados impressionantes. Somente em 2018, por exemplo, a China já possuía a metade dos pedidos de registro de patentes no mundo, com um aumento de 5,3% em relação a 2017. Os EUA, muito embora ocupassem o segundo lugar apresentaram diminuição de 1,6% nesse indicador no mesmo período. Em terceiro lugar estava o Japão, em quarto, a Coreia do Sul e, em quinto, a União Europeia. Ou seja, os Estados Unidos vem perdendo força para a China em inovação[4].

O mesmo acontece em relação ao número de registro de desenho industrial, com a China liderando sozinha e com folga com 54% das tramitações. Nesse quesito, os Estados Unidos ainda perdem para a União Europeia e Coreia do Sul.

Tais avanços refletem de forma significativa na economia chinesa e essa retomada (vale lembrar que a China só não foi a maior economia do mundo durante o século da humilhação) não foi encarada com bons olhos pelos Estados Unidos. Desde a Primeira e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, os EUA se consolidaram como a maior potência mundial. Agora, disputando a hegemonia com os chineses, uma nova onda do discurso de “Perigo Amarelo” parece voltar à tona.

 

Guerra comercial

Independentemente de quem tivesse vencido as eleições estadunidenses em 2016, o conflito de interesses contra a China entraria na pauta do dia em algum momento. Mas, os norte-americanos preferiram o discurso nacionalista de Donald Trump (na tradição do isolacionismo norte-americano), ao invés de apostarem em Hilary Clinton, a então candidata do establishment democrata.

Em termos bélicos, talvez a escolha tenha sido positiva para os países em conflito direto com os Estados Unidos. A história indica que Clinton poderia ter sido ainda mais dura com o Irã e dificilmente teria visitado Kim Jong-Un ou se prepararia para um acordo de cessar fogo com o Talibã.

No plano simbólico, os democratas talvez tivessem optado por ressaltar, mas de forma mais sutil, as diferenças culturais entre os dois povos (o filme “Indústria Americana”, produzido pela companhia Higher Ground, de Michelle e Barack Obama são um aperitivo). Porém, a tosquice de Donald Trump, que não mede as palavras para ser xenófobo e racista, engrossou de vez o discurso contra o Outro, o não norte-americano, que deve ser inferiorizado, temido e rechaçado.

Diferentemente do ódio ao imigrante latino-americano, a China preocupa porque apresenta uma ameaça real aos interesses norte-americanos no big geopolitical game. Em 2018 e iniciada por Trump, China e Estados Unidos passaram a travar uma guerra comercial que tem preocupado líderes e economistas do mundo todo. [5]

Além da adoção de barreiras tarifárias e a troca de ameaças de retaliação, houve também a suspensão de compra de produtos agrícolas norte-americanos pela China e a acusação, por parte dos EUA, de que o país asiático estaria realizando manipulação cambial. Sem contar, ainda, a batalha travada em torno da rede móvel 5G da gigante Huawei.

Muito embora exista a possibilidade de trégua, uma vez que algumas tentativas de acordo já foram esboçadas, o conflito entre Estados Unidos e China parece ser a disputa das próximas décadas.

 

Coronavírus: expostas as chagas do preconceito racial

No final de 2019, foi noticiada a contaminação de algumas pessoas na província de Wuhan por um tipo de coronavirus nunca antes identificado. Posteriormente denominado Covid-19, o vírus teria sido espalhado através de pessoas que manipularam animais silvestres contaminados em um wet market da cidade.

Assintomático em grande parte das pessoas contagiadas e com uma altíssima velocidade de transmissão, só no final de janeiro a China já contabilizava 610 pessoas infectadas e 18 mortos. Em resposta à crise de saúde instaurada, o governo chinês colocou várias cidades em quarentena. A medida foi tratada por muitos veículos de comunicação e instituições ocidentais não como protocolo de segurança e saúde pública, mas como ato autoritário do Partido Comunista Chinês.

Inevitavelmente, o vírus atravessou as fronteiras da China. Casos passaram a ser noticiados na Coréia do Sul, Itália e Irã. Posteriormente, o covid-19 se alastrou para países em todos os continentes do globo terrestre. Quando os italianos, por exemplo, adotaram a quarentena em todo o território nacional, não receberam críticas como os chineses. Pelo contrário, a eles foram dirigidas condolências. O mesmo ocorreu quando em outros lugares do ocidente, medidas semelhantes foram tomadas.

Desde o anúncio do novo coronavírus até agora, a China construiu dois hospitais para tratar pacientes infectados[6], identificou a sequência genética do covid-19 em tempo recorde, já está testando vacinas em humanos e enviou equipe de especialistas e material de combate ao vírus para a Itália.

Na manhã de hoje (19/03/2020), foi noticiado que não há registro de nenhum novo contágio local de coronavírus em nenhum local do país, apenas casos importados. Vale lembrar que a população chinesa é de 1,39 bilhões de pessoas. Isso significa que as medidas de contenção ao vírus e tratamento de infectados surtiram efeitos.

Governos como o dos Estados e do Brasil há menos de uma semana ainda tratavam a pandemia com desdém. E ao invés de se preocuparem em reforçar o sistema de saúde, impor medidas de contenção do vírus e criar políticas econômicas para minimizar os impactos que serão sentidos por empresas, profissionais liberais e trabalhadores informais afetados pela quarentena, espalham boatos de que tudo não passa de um “plano da China para quebrar o mundo e poder comprar todas as ações na bolsa de valores”.

Muito embora pesquisas apontem que o covid-19 não foi criado em laboratório, representantes políticos (cujos robôs virtuais ajudam na propagação de fake news) reforçam esse discurso. Aqui, destacam-se dois pontos: 1) o preconceito contra povos asiáticos construído no último século, somado ao fato de a China ser conduzida por um Partido Comunista fazem com que grande parte da população que recebe fake news sobre o assunto tenda a tomá-la como verdade e; 2) os Estados Unidos possuem interesses muito concretos ao colocarem a culpa sobre a China. Além de tirarem o foco da sua incapacidade em lidar com a questão, reforçam preconceitos raciais (associam os chineses com doenças e condenam hábitos culturais diferentes dos ocidentais) e jogam mais palha na fogueira da guerra comercial.

 

E o Brasil?

No que diz respeito ao Brasil, o dia também amanheceu quente. Eduardo Bolsonaro, deputado estadual (PSL-SP) e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados (filho “zero três” do Presidente da República e que já foi cotado para ser embaixador do Brasil nos EUA) publicou em seu Twitter que a culpa pela pandemia é do Partido Comunista Chinês. Em resposta dura, a Embaixada da República Popular da China no Brasil disse o seguinte:

No decorrer do dia, o vice-presidente Hamilton Mourão e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, vieram a público dizer que a opinião do filho do Presidente não é a visão das instituições do país.

Para os Bolsonaro e aliados, não importa os dados sobre a queda da produtividade chinesa, que sua economia desacelerou bruscamente, a quantidade de vítimas fatais no país e todos os dados positivos referentes às medidas governamentais para tratar do coronavírus. A eles é melhor o cego alinhamento ideológico com os Estados Unidos, mesmo que isso custe desgastes diplomáticos enormes com a China e o aumento do prejuízo econômico nacional. Vale lembrar que o país asiático é o nosso principal parceiro comercial e poderia impor uma série de restrições para a compra de produtos brasileiros, por exemplo.

Além disso, o comportamento do deputado só evidencia o preconceito que muitos brasileiros de fenótipo oriental e imigrantes asiáticos vêm sentido na pele desde o surto do coronavírus[7]. Mesmo que todos os casos importados de coronavírus tenham chegado no Brasil através de uma elite branca que viajava à Europa ou aos Estados Unidos, são vários os relatos de orientais que foram xingados e discriminados em transportes públicos, aeroportos, restaurantes, etc.

E aqui não importa se existe uma romantização, por exemplo, sobre a imagem do japonês: disciplinado, organizado, limpo, recatado e educado. Basta ter os olhos puxados para que chineses, japoneses, filipinos, tailandeses ou sul coreanos sejam considerados todos iguais. Todos “porcos”, bagunceiros e doentes. Assim, animaliza-se o outro, “o inimigo”, para justificar atos de violência física e extermínio posteriores.

Conforme Shimabuko, “o Perigo Amarelo é extremamente mutável e depende inteiramente da conjuntura política, visando sempre favorecer o Ocidente ao atribuir papéis de inimigo comum, muitas vezes racializados, ao Japão e à China, mais recentemente também à Coreia do Norte[8].

Para os Estados Unidos é maravilhoso que outros países adotem o discurso do Perigo Amarelo, pois tornam-se aliados geopolíticos. O Brasil, porém, nada tem a ganhar alinhando-se exclusivamente aos norte-americanos e criando conflitos com o seu maior parceiro comercial. Além de dificultar que novas portas de comércio e parceria internacionais sejam feitas, no âmbito interno, o preconceito contra asiáticos deteriorará ainda mais o que nos resta de pacto civilizacional.

[1] SHIMABUKO, Gabriela Akemi. A origem do Perigo Amarelo: orientalismo, colonialismo e a hegemonia euro-americana. Disponível em: <https://outracoluna.wordpress.com/2017/03/26/a-origem-do-perigo-amarelo-orientalismo-colonialismo-e-a-hegemonia-euro-americana/>. Acesso em 17 de mar de 2020.

[2] CAMBUHY, Melissa. A Revolução Chinesa multipartidária. Disponível em: <https://disparada.com.br/revolucao-chinesa-multipartidaria/>. Acesso em 19 de mar de 2020.

[3] Disponível em: <https://epoca.globo.com/sociedade/por-que-china-lidera-ranking-de-educacao-basica-no-mundo-24115100>. Acesso em 19 de mar de 2020.

[4] Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/efe/2019/10/15/china-registra-metade-das-patentes-globais-e-eua-perdem-forca-em-inovacao.htm>. Acesso em 19 de mar de 2020.

[5] Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/08/16/guerra-comercial-entenda-a-piora-das-tensoes-entre-china-e-eua-e-as-incertezas-para-a-economia-mundial.ghtml>. Acesso em 19 de mar de 2020.

[6] Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/08/china-inaugura-segundo-hospital-feito-para-receber-pacientes-com-coronavirus.ghtml>. Acesso em 19 de mar de 2020.

[7] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml>. Acesso em 19 de mar de 2020.

[8] SHIMABUKO, Gabriela Akemi. A origem do Perigo Amarelo: orientalismo, colonialismo e a hegemonia euro-americana. Disponível em: <https://outracoluna.wordpress.com/2017/03/26/a-origem-do-perigo-amarelo-orientalismo-colonialismo-e-a-hegemonia-euro-americana/>. Acesso em 17 de mar de 2020.