Ciro Gomes dá entrevista sobre política externa ao MyNews

Ciro Gomes da entrevista sobre politica externa ao MyNews
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Na última sexta-feira, Ciro Gomes deu uma esclarecedora entrevista sobre política externa ao programa “Cruzando Fronteiras”, do Canal MyNews. O programa pretende convidar todos os presidenciáveis para tratar desse tema tão fundamental ao país, mas pouco explorado nas campanhas presidenciais.

Em tempos de manifestações políticas reduzidas a tweets, inclusive em assuntos complexos como política externa, a entrevista ao jornalista Jamil Chade foi um importante espaço para Ciro Gomes deixar mais claro seus posicionamentos, inclusive em relação ao atual conflito entre Rússia e Ucrânia.

Ciro iniciou a entrevista manifestando sua total concordância com os princípios que historicamente balizam a diplomacia brasileira, com a afirmação do direito internacional, baseado numa ordem multilateral assentada no respeito à autodeterminação dos povos e na solução pacífica dos conflitos. Lançados assim ao ar, esses princípios soam como um idealismo inerte num mundo conflagrado pelo conflito e pela violência. Por isso, é necessário conteúdo concreto para sabermos o que significam de fato no mundo real. E Ciro foi generoso em concretudes nessa entrevista.

Segundo ele, “esse é o conjunto de valores mais graves, onde nós devemos nos refugiar sempre que houver essas contradições em que a guerra tem como primeira vítima a verdade. A propaganda em tempos de internet distorce completamente… então é hora de nós termos clareza daquilo que foi sistematizado pelo Barão do Rio Branco, afirmado em momentos graves da vida brasileira, com San Tiago Dantas, por exemplo – que permanece dramaticamente vivo. Porém, na medida em que um projeto nacional de desenvolvimento brasileiro nos abrirá determinados antagonismos e agravará outros tantos, o Brasil tem que ter algumas clarezas.”

Inicialmente, Ciro ressaltou a necessidade de o Brasil dar uma resposta à questão ambiental tanto para o seu próprio povo, quanto para os agentes estrangeiros que podem usar os problemas ambientais para barrarem pretensões brasileiras. Para recuperar os estragos que a diplomacia do governo Bolsonaro causou nessa área, Ciro sugere alguns caminhos:

“Eu acho que alguns gestos exemplares poderão recuperar, não sem grave inconfiabilidade. (…) A primeira grande questão é o anúncio de que o Brasil vai tomar posse do seu território amazônico, vai fazer ali um exercício de se assenhorear do território, e isso significa coisas bastante concretas: zoneamento econômico e ecológico, com grande qualidade técnica e grande legitimação pelas populações locais. Porque repressão pura e simplesmente não tem condição de resolver o problema de 40 milhões de pessoas que foram levadas a acreditar que desmatar era uma atividade essencial para a integração da Amazônia ao Brasil, há menos de 30 anos atrás… enfim, mas esse é um gesto que o Brasil pode praticar com intensa repercussão internacional, subtraindo do neoprotecionismo o argumento, que é pouco sério de proteção do meio ambiente, mas que tem relevância na medida em que nós, brasileiros, estamos dando sequenciados exemplos de incapacidade de manusear o nosso próprio território.”

A outra missão urgente da diplomacia brasileira, para Ciro, seria a busca por regimes de preferências industriais no comércio exterior e em transferências tecnológicas, nos setores em que o Brasil tem algum protagonismo, para viabilizar o desenvolvimento de complexos industriais nas áreas de energia, saúde, agronegócio e defesa, tentando encontrar formas de “financiamento rebeldes às interdições de Bretton Woods” – nas palavras dele.

Mas Ciro Gomes mostra ter consciência de que um projeto desses vai encontrar barreiras, como ficou claro quando citou o exemplo da pressão feita pelo governo estadunidense para que o governo ucraniano interrompesse a cooperação no setor aeroespacial conosco, “vedando de forma absolutamente grosseira e despudorada o Brasil de ter autonomia em matéria de lançamento de satélites e foguetes, mesmo que seja exclusivamente para fins pacíficos, como é a tradição brasileira”.

Em outro momento, Ciro fala sobre a irresponsabilidade do governo Bolsonaro em tentar retirar o Brasil da OMC para que o país pleiteie se integrar à OCDE:

“Outras questões que o Brasil também pode fazer concretamente é basicamente isso: começar a evoluir na direção de arrostar conflitos inerentes à reestruturação do nosso parque industrial. Coisas práticas, por exemplo: o Brasil importa hoje 86% da sua química fina. Por regra, mais de 80% disso são de princípios ativos com patente vencida, ou que estão sendo inovadas de forma fraudulenta, e o Brasil pode e deve entrar numa dinâmica de substituição de importações, com a compra governamental que nos é garantida pelo nosso status de nação em desenvolvimento na OMC. Não por acaso, o Bolsonaro tem se apalavrado com os norte-americanos para o Brasil abrir mão desse status na OMC, o que significa fechar a porta de ferramentas de desenvolvimento, de integração nacional, de desenvolvimento regional, de superação de hiatos tecnológicos em patente vencida e de compras governamentais como ferramenta de promoção do desenvolvimento que são legítimos à luz do estatuto que nós temos na OMC. (…) É concreto: o que o Brasil vai ganhar na OCDE? O que o Brasil vai fazer na OTAN? O que nosso povo leva nisso, Jamil?!”

Em relação aos conflitos entre as potências, Ciro ressalta que o Brasil não deveria se alinhar automaticamente a nenhuma nação, dizendo que a própria questão democrática precisa ser avaliada com cuidado nas relações internacionais:

“A gente precisa compreender. A Rússia saiu do tsarismo para a ditadura do Partido Comunista. E saiu da ditadura do Partido Comunista para, praticamente, depois daquela transição do Boris Yeltsin, para o mandarinato do Putin. Então… será que nós vamos ter autoridade moral para ensinar para essa grande nação do mundo as nossas instituições? Isso está errado!”

Em outro trecho, Ciro fala sobre a queixa dos chineses nesse mesmo tema:

“A China reclama que o mundo tem que reconhecer outros formatos de democracia. Ora, convenhamos: os chineses não conhecem a democracia tal como a formulamos no desenho de Tocqueville ou na fundação dos intelectuais franceses que embalaram a Revolução Francesa, de 1789. A China nunca conheceu isso. A Rússia nunca conheceu isso. Portanto, é de se pensar se não há de fato outras formas de democracia, de maneira a não nos intrometermos nesse desenho. Isso está naquele campo dos grandes valores, para que nós não coloquemos uma condicional em que os norte-americanos se sentem moralmente superiores e autorizados a exportar suas instituições e a exportá-las manu militare. Na verdade, quando nós vemos essas instituições sendo exportadas, no bastidor estará sempre o interesse sensível de base econômica, ou do complexo do petróleo – Mossadegh no Irã, ou mais recentemente Iraque, Síria e a desestabilização do Oriente Médio, a própria diversificação das preocupações pela provável instabilidade da dinastia saudita, o que faz a Venezuela e o Brasil tomarem grande relevo na nova geopolítica do petróleo, do ponto de vista dos norte-americanos. E nisso não cabe ingenuidade.”

Para Ciro Gomes, há muitas décadas o Brasil tem caminhado no sentido contrário do que seria recomendado em matéria de relações exteriores. Sobre a política externa implementada nos governos do PT, segundo Ciro, ela teria sido apenas uma compensação retórica às bases de esquerda do partido “para sustentar uma política cripto-reacionária aqui dentro, um neoliberalismo com essa característica de caridade. Por isso, nos governos do PT, o interesse nacional e os compromissos do Brasil teriam ficado em segundo plano em troca de uma política externa retoricamente terceiro-mundista. Segundo Ciro, “o Lula manipula o câmbio e o juro, faz uma farra nacional-consumista e destrói a indústria nacional brasileira, enquanto passeia no mundo como um grande estadista, porque é um grande entreguista. O Lula hoje reclama da política de preço da Petrobrás, mas foi o cara que fez a maior entrega do capital estatal da Petrobrás a acionistas privados, que agora têm o justo direito de pedir da Petrobrás a otimização dos seus lucros no curto prazo.”

Em outro trecho, Ciro afirma que “o Brasil precisa finalmente achar uma política que seja guiada por isso: princípios estáveis que permitam a continuidade, a perseverança ao redor desses valores que estão longe de serem alcançados, mas que nos dão autoridade moral nos aforamentos internacionais para, por exemplo, repudiar qualquer tipo de intervenção estrangeira na Venezuela, na vizinhança do nosso território.”

Não sendo admissível uma intervenção na Venezuela,  Jamil Chade pergunta se Ciro aceitaria então a ideia de sansões unilaterais contra o país e ele responde: “Veja bem: existe coisa mais anacrônica e injurídica, sob o ponto de vista da ordem internacional pretendida, e que está na retórica prevalente, embora muito distante da prática, do que o embargo a Cuba? Eu digo a você com muita clareza, eu conheço Cuba, eu conheço o que tem acontecido lá: a coesão da população ao redor do regime, por um inimigo externo absolutamente incompreensível em tempos de século XXI. O embargo fosse removido, imediatamente o outro valor, que seria a institucionalização de um regime mais aberto em Cuba, aconteceria com naturalidade. E não tenho a menor dúvida de que hoje, por exemplo, consultores militares e até artefatos chineses e russos estão na Venezuela, porque a asfixia norte-americana ao regime venezuelano também dá coesão interna de uma fração da população da Venezuela. E o que eu defendo é que nós tenhamos autodeterminação dos povos e que o papel do Brasil é mediar esses conflitos. Jamais se alinhar com qualquer potência estrangeira nessas tensões regionais ou, especialmente, nas tensões globais.”

Quanto à política externa dos demais governos que passaram pelo Brasil, antes e depois do PT, segundo Ciro, “temos circulado de uma vassalagem absolutamente descuidada. O Projeto SIVAM foi entregue à Raytheon por uma pressão absolutamente espúria e lobista da família Clinton sobre o Fernando Henrique [Cardoso] (…) ou, mais recentemente, as loucuras que o Bolsonaro praticou numa retórica hostil à China para servir à política de Big Stick do governo Trump e para, no dia seguinte, aparecer aliado da política indefensável da agressão que o Putin faz na Ucrânia. Isso tudo tem que ser redesenhado.”

Em relação ao atual conflito na Ucrânia, Ciro apresenta uma perspectiva baseada nas contradições que os países latino-americanos precisam considerar ao se posicionarem diante desse tipo de questão, para não correrem o risco de contrariarem seus próprios interesses no futuro: “O Brasil, num primeiro momento, não tem que ter dubiedade e nem dourar a pílula. Nós temos que censurar essa invasão. Nós temos que condenar a violência como mecanismo – do que nós chamamos no direito internacional de exercício arbitrário das próprias razões. Isto dito, ponto: essa violação da carta das Nações Unidas, da soberania nacional de um povo, da ofensa unilateral de uma potência intermediária sobre uma potência mais frágil, é ilegal e o Brasil não pode ter dubiedade em relação a isso, muito menos fazer o que o Bolsonaro está fazendo, dando sinais trocados que nos cobrem de vergonha. Porque há até alguma honradez, numa posição errada, que tome um lado, como Cuba fez, Venezuela fez, Nicarágua fez. Fizeram, né? Apoiaram o Putin com clareza. Há uma certa honra nessa contradição. Mas isso viola completamente… porque se amanhã os americanos se sentirem ameaçados pela iminência de um regime hostil na Nicarágua, poderão justificar, como o Putin justifica, a necessidade de fazer uma guerra de prevenção, porque a Ucrânia estaria na iminência de sediar mísseis da OTAN. E, evidentemente, a OTAN é uma instituição anacrônica à luz dessa ordem internacional assentada no direito e na não-violência… porque, vamos lembrar para quem está nos acompanhado: a OTAN nasce como uma espécie força multinacional de contenção, liderada pelos norte-americanos, lá como hoje, coesionando a Europa do Ocidente, bastante enfraquecida na origem, na partida, com uma Alemanha desarmada, para fazer frente a uma possibilidade que era o Pacto de Varsóvia, a aliança militar soviética, que dividiu Berlim em duas cidades e dividiu o mundo pela cortina de ferro. Ora, com a dissolução da União Soviética, o Pacto de Varsóvia morreu. Se o Pacto de Varsóvia morreu e não há nenhuma indicação razoável de que a Rússia deseje voltar ao teatro militar de domínio imperial de qualquer fração da Europa. Qual é o sentido da OTAN estar crescendo, inchando e indo para a iminência de comunidades que têm uma tradição histórica de convivência com a Rússia, não é?”

Sobre as formas de se atuar nesse ambiente de conflito estimulado pela OTAN, Ciro cita a China como um exemplo de diplomacia e comedimento, mas que estaria sendo tirada de sua posição histórica pela ação da Rússia:

“Vamos imaginar a Finlândia entrando na OTAN: pra que isso? Vamos imaginar a Suécia entrando na OTAN: qual é a razão pra isso? Qual é a razão pra isso?! Então, se há razões morais, históricas, relevantes é importante que nós ponderemos que essas razões não podem ser exercitadas unilateralmente pela linguagem da guerra. Mais ou menos como fazem os chineses. Qual é a dúvida histórica de que a que nação pertence Taiwan? Houve algum momento na história em que Taiwan não fosse China? Mas a China tem o seu tempo. A China sabe dos riscos e a China está adotando uma estratégia que aceita o tempo, a maturação desses princípios, e o Putin agora está precipitando, obrigando a China a uma dança na beira do abismo. Mas a China vai cumprir um papel muito importante de contenção, mas ela vai ter que dizer, como já disseram:  ‘olha, a Ucrânia não é Taiwan! Nós não vamos admitir que mecanismos de guerra híbrida façam sedição em Hong Kong, depois de décadas de colonização britânica.’ A Caxemira opõe, por razões territoriais, duas potências intermediárias, ambas nucleares: a Índia e o Paquistão. Ora, para qual mundo nós estamos encaminhando? Por isso, o Brasil tem que ter uma voz altiva, honesta, honrada, que diga que ações de forma unilateral não têm nenhum pretexto que justifique, o que, por exemplo, nos daria clareza quando perguntados sobre o que os americanos foram fazer no Iraque. Que nos daria razão para perguntar o que os americanos estão fazendo na Síria. E isso tudo é aquilo por onde o Brasil deve caminhar. E isso é um mundo muito arriscado, que não permite nem covardias nem dubiedades.”

Voltando a entrevista para a questão econômica, Jamil Chade pergunta se Ciro ainda via sentido na manutenção do Mercosul. Ciro começa contando que sua assinatura está no tratado de Ouro Preto, que criou o Mercosul, firmado quando era ele Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco:

“No Tratado de Ouro Preto (…), nós tínhamos instruções políticas para acelerar o Mercosul, fazendo de conta que não víamos as gravíssimas contradições que estavam ali, ainda por serem superadas, antes de assiná-lo. Por quê? Porque naquela data, a pressão absolutamente asfixiante dos norte-americanos era para impor ao Brasil, com data certa, 2005, a ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas. (…) Por que o Mercosul era importante? Porque nós precisávamos ganhar escala, especialmente Brasil e Argentina, mas ali estava a ideia de uma comunidade sul-americana de nações, porque [havia] os norte-americanos com a ALCA por um lado e por acordos bilaterais, absolutamente constrangedores para nossa percepção estratégica do mundo. Nosso e do futuro da humanidade, a partir da nossa região, com uma presença militar ostensiva na Colômbia, uma presença ostensiva militar, inclusive com bases, não confessadas, que estão ali no Paraguai, com relações absolutamente promíscuas com o Chile – e nós temos todas as notícias do que aconteceu por trás do assassinato do Allende e da história de intromissão em assuntos domésticos que os americanos praticam entre nós. (…) Lamentavelmente, isso ainda pede que o Brasil faça um esforço [se referindo à consolidação do Mercosul], mas é preciso que agora não seja mais só uma área de livre comércio, como infelizmente acabou se transformando, mas que nós avancemos para uma coordenação de todas as nossas grandes questões: controle fitossanitário, infraestrutura, regime previdenciário, regime tributário, que são tão díspares que fazer uma área de mais profundidade e que seja capaz de nos colocar em bloco, negociando com o mundo, é uma necessidade, mas vai dar um imenso trabalho ainda.”

No fim da entrevista, quando o jornalista já havia agradecido e se encaminhava para encerrar, Ciro pediu para poder falar mais um pouco sobre um assunto que não havia sido abordado e que ele julgava de suma importância: a relação do Brasil com a África.

“Nós somos o maior país de população negra do mundo fora da África. Eu estive em Luanda conversando com autoridades de Angola e é impressionante como eles se sentem desrespeitados, desprezados, em relação a uma natural postulação que têm de uma relação preferencial com o Brasil. E hoje essa lacuna, essa omissão do Brasil, está fazendo com que a China esteja ensinando os angolanos a plantar soja, esteja ocupando todo o mercado de petróleo de Angola e esteja simplesmente estabelecendo o que era um natural posicionamento do Brasil. Porque [ali] é a África portuguesa, é a África de língua portuguesa, assim como Moçambique. A África do Sul está conosco no BRICS e o Brasil, com Bolsonaro, simplesmente bota tudo de lado. E aqui são negócios. É projeção de valores. (…) E eles estão se sentido completamente abandonados, desprezados porque a arrogância e o alinhamento automático dos governantes brasileiros faz com que não se compreenda a necessidade de uma relação fundamental com a África.”