Cidadania, Ordem dos Advogados do Brasil e equidade racial: mudar é preciso

Zumbi dos Palmares, Cidadania, Ordem dos Advogados do Brasil e equidade racial: mudar é preciso
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Por Juliana Leme Faleiros e Sandra Cordeiro Molina – Novembro, para além de azul, é mês da consciência negra. A Lei nº 12.519[1], de 10 de novembro de 2011, instituiu o dia 20 de novembro como “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra” em razão da data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares.

Zumbi (1655-1695) foi líder de quilombo, povoado de resistência, local para receber africanos escravizados que fugiam da violência e da opressão dos senhores de terra. O Quilombo dos Palmares se situava na Bahia, hoje Alagoas, tinha, aproximadamente, o tamanho de Portugal e foi dizimado sob comando do caçador de seres humanos, índios e negros escravizados, Domingos Jorge Velho.

A Lei nº 12.519/2011, no entanto, não estabelece a data como feriado nacional e, deste então, cada Município ou Estado tem legislado a respeito, individualmente, não sem debates e objeções. As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, têm essa data no rol de dias de repouso em honra dos seus santos[2]. Em Curitiba, por seu turno, em 2012, teve aprovado projeto de lei que estabelecia feriado municipal, mas o Tribunal de Justiça, a pedido da Associação Comercial do Paraná e outras entidades, suspendeu a medida legislativa. Alguns Estados como Alagoas, Amazonas e Mato Grosso têm leis estaduais que estabelecem 20 de novembro como feriado estadual, ou seja, dia de honrar a resistência do povo negro encarnada em Zumbi dos Palmares.

Por essa data, mas não só, o mês de novembro tem sido período de intensos debates sobre a condição da população negra no Brasil; discussões que explicitam o racismo que estrutura as relações sociais brasileiras, circundando muitas temáticas como formas de violência e discriminação, as debilidades das políticas públicas existentes bem como – e principalmente – a participação deste grupo em espaços de poder e de decisão do país[3].

Pensando nesses espaços, destaca-se aqui a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autarquia federal, criada por decreto e uma das instituições que tem sido provocada para rever seus regimentos e democratizar seus órgãos diretivos, abrindo espaço para as questões de raça e gênero. Estas considerações estão atreladas aos fins desta instituição como a defesa da Constituição, “a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, [que] pugna pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”, como quer o artigo 44, da Lei nº.8.096/94[4].

Como o acima exposto, a OAB, órgão de classe dos advogados, nasceu na década de 30 do século passado, pelas mãos de Getúlio Vargas, considerado por alguns como “o pai dos pobres, a mãe dos ricos”, aquele que tem sido associado a ambiguidades, ao autoritarismo e à estruturação do Estado brasileiro. E, num exercício de retrospectiva, verifica-se que a, a Ordem foi presidida, desde sua origem até o presente, por homens brancos[5].

Imperioso lembrar que Getúlio Vargas, figura complexa da história brasileira, logo que assumiu o poder do Governo Provisório, editou o Decreto nº 19.408, em 18 de novembro de 1930, a fim de reorganizar a Corte de Apelação e dar outras providências, dentre estas, em seu art. 17, estava a criação da Ordem dos Advogados Brasileiros que vem desempenhando um papel de destaque na história brasileira, papel esse muitas vezes omisso como aquele verificado durante o regime de ditadura militar como descreve Sandra Molina[6].

Diante disso, Marly Motta diz que a entidade de classe em comento foi “filha do seu tempo, uma vez que, na qualidade de órgão corporativo, teve como objetivo principal ‘selecionar e disciplinar’ os advogados”[7]. Depois de quase um século de existência e de testemunhar inúmeros episódios da história brasileira, pergunta-se: foi ou permanece filha de seu tempo? E, essa é uma indagação que só a OAB pode responder, caso se proponha a se alinhar aos ditames democráticos e ao sistema internacional de direitos humanos.

Com efeito, o atual Presidente da entidade, Felipe Santa Cruz (2019-2022), tem sido questionado a respeito das ações para promoção da igualdade racial e de gênero que sua gestão implementará. Nesse sentido, o jornal Folha de São Paulo[8] noticiou que a realização do censo para obtenção de dados sobre cor/raça na instituição tem sido pleiteada há algum tempo e que Santa Cruz tem ciência dessa demanda, pois quando era presidente da OAB/RJ se movimentou por meio de ofícios em relação ao tema. Ademais, a “Carta Aberta de Juristas Negras”[9], na qual o recenseamento é a primeira proposta apresentada, foi recebida em agosto de 2020 pelo Conselho Federal da OAB (CFOAB).

Importante lembrar que foi elaborado parecer por comissão especial, mas, como aponta a matéria “Plano de cota racial na OAB abre brecha para que negros sigam forma das diretorias”[10], não ficou explícita a reserva de 30% das vagas em diretorias da entidade, dando margem para que a reserva de vagas seja considerada para a chapa como um todo, ou seja, não implicaria em mudanças nos cargos de decisão nem na composição do Conselho Federal. Ressalte-se que esse parecer é apenas opinativo sendo necessária a decisão dos conselheiros federais cabendo, portanto, ao Presidente Santa Cruz colocar o assunto em pauta.

Fato é que o recenseamento ainda não foi realizado e, assim, a criação de regras para composição proporcional entre brancos e negros dentro da instituição. Na eleição de 2018, apesar da existência de cotas para mulheres, o Conselho Federal da OAB decidiu, por analogia às regras da legislação eleitoral, que esta regra só seria aplicável para eleição de 2021 adiando a construção de instâncias diretivas paritárias e plurais.

Em sua posse, Felipe Santa Cruz alertou que a OAB é “escudo em defesa do interesse público, da democracia e da Constituição Federal. [Disse que] nossas armas são, tão somente, o diálogo, o respeito às divergências e às regras da lei”[11].

Dessa forma, se assim de fato é sua posição, na semana em que o Brasil celebra Zumbi dos Palmares e 90 anos da entidade, pautar as demandas contidas na “Carta Aberta de Juristas Negras” demonstra o compromisso em tirar a OAB na condição de filha de seu tempo, de redimi-la de um passado conservador[12] e recolocá-la na História do Brasil num espectro político mais progressista, democrático e, portanto, antirracista como preconizou o artigo 44 da Lei nº.8.096/94.

Certo é que a construção de um Estado democrático promotor de direitos e de consolidação da cidadania depende da inclusão de pessoas negras (pretas e pardas) nos espaços de poder e decisão, como é o caso dos quadros da diretoria da OAB e dos seus Conselhos Federais. Diante de tais considerações, dúvida não resta sobre a importância de alterar as formas de ocupação de tais espaços. Mudar é preciso!

Nota das autoras: Em Ordem dos Advogados do Brasil, no título, reproduzimos a nomenclatura utilizada pela lei nº.8096/94 que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Por Juliana Leme Faleiros, Mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie), Especialista em Direito Constitucional (ESDC), Advogada e Professora; e Sandra Cordeiro Molina, Mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie), Membro do Instituto da Advocacia Negra Brasileira, Advogada e Professora.

Referências

Referências
1 BRASIL. Lei nº 12.519/2011. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12519.htm Acesso em: 18 nov. 2020.
2 Feriado vem de féria que tem origem na palavra latina “feria” ou, no plural, “feriae”, repouso em honra dos deuses e que, também, se liga a “festum”, festa em louvor aos deuses. Disponível em: https://diariodeumlinguista.com/2017/10/11/a-origem-da-palavra-feriado/ Acesso em: 18 nov. 2020
3 Nas eleições municipais de 2020 o resultado do primeiro turno demonstra profunda desigualdade na representação nos cargos de gestão, tanto a gênero quanto à raça. Com efeito, o Brasil tem 58,8% da população preta e parda enquanto, para o Poder Executivo, 67,1% dos eleitos são brancos. No que diz respeito ao gênero, o Brasil tem 50,6% de mulheres enquanto elas ocupam 12,2% das prefeituras. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/apuracao/1turno/ Acesso em: 18 nov. 2020
4 BRASIL. Lei nº 8.096/1996. Disponível em. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm Acesso em: 18 nov. 2020.
5 Disponível em: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/honorarios Acesso em: 18 nov. 2020.
6 MOLINA, Sandra Cordeiro. Os movimentos sociais e a ditadura brasileira (1964-1985): considerações sobre a participação da ordem dos advogados do Brasil – OAB. Disponível em https://www.publicacoes.uniceub.br/universitashumanas/article/view/3190/2982. Acesso em: 18 nov. 2020.
7 MOTTA, Marly Silva da. A ordem dos advogados do Brasil: entre a corporação e a instituição. Ciência Hoje. Rio de Janeiro, v.39, p. 32-37, dez. 2006. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/themes/Mirage2/pages/pdfjs/web/viewer.html?file=http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6801/1674.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 18 nov. 2020.
8 GALF, Renata. Presidente da OAB se contradiz, e cotas raciais na entidade podem ficar só para 2024. Folha de São Paulo. [São Paulo], p. 1-1. 17 nov. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/presidente-da-oab-se-contradiz-e-cotas-raciais-na-entidade-podem-ficar-so-para-2024.shtml Acesso em: 18 nov. 2020.
9 Disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR115303 Acesso em: 18 nov. 2020.
10 GALF, Renata. Plano de cota racial na OAB abre brecha para que negros sigam forma das diretorias. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/plano-de-cota-racial-na-oab-abre-brecha-para-que-negros-sigam-fora-das-diretorias.shtml. Acesso em: 18 nov. 2020.
11 Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/298501/oab-e-escudo-em-defesa-do-interesse-publico–da-democracia-e-da-constituicao–diz-felipe-santa-cruz-em-posse Acesso em: 18 nov. 2020.
12 Marco Aurélio Vanucchi Leme de Mattos é referência em estudos sobre a instituição e suas pesquisas tem dados importantes sobre as posições conservadoras assumidas pela OAB, por exemplo, no golpe civil-militar de 1964.