Motociata e os velhos valores sobre duas rodas

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Na fila de espera para a vacinação começamos a elaborar o esboço deste texto. Fazemos então uma retrospecção de todo o caos pandêmico em que nós brasileiros estamos metidos desde o início de 2020. Dentre todas as reflexões, impossível não pensar a respeito da cena bizarra de um presidente tosco metido a motociclista, conduzindo seu séquito alucinado através do asfalto de uma rodovia paulista.

A gangue do presida é composta pelo chorume da classe média tosca que acredita ser a elite econômica do país. Uma claque sinistra, uma malta maléfica, que crê que 500 mil mortos não têm nenhum impacto no cenário social brasileiro, pois, segundo um dos muitos impropérios proferidos pelo presidente contra a nação, lembramos do “todo mundo morre um dia”. Sim, estamos falando dos velhos brancos de motoclube.

Num bingo de características infames dos “bolsominions”, o velho branco de motoclube é cartela cheia. Resgata dos esgotos do reacionarismo o que há de pior apodrecendo ali. Como todos defensores da moral e dos bons costumes que estão ao nosso redor, sua atuação ocorre naquela estupefação diante de qualquer avanço que ameace mover algum dos alicerces da gigantesca desigualdade que existe no Brasil.

Parece que o norte da extrema-direita brasileira é a incoerência. Quanto mais descolado da realidade, melhor. Estes intrépidos rebeldes de final de semana se apropriaram de trejeitos contraculturais ianques e os invertem ao sabor do conservadorismo delinquente que ostentam nos seus slogans inúteis à discussão política. Subvertem a aparência rocker e a cultura dos bikers para defenestrar não só as pautas progressistas propostas pelas minorias, mas também qualquer projeto que caminhe pela via democrática.

Enxergam no presidente um grande espelho, onde, como Narciso na margem da lagoa, se apaixonam por si mesmos. Afinal, encontram nesse reflexo as marcas de uma velhice ressentida, perdida diante da voz conquistada por parcelas oprimidas da nossa tecitura social. Também percebem aquele elitismo mugre do qual o país é vítima, um fenômeno em que nem mesmo o pobre gosta de pobre. Se veem naquela subserviência abjeta em relação aos Estados Unidos, num vira-latismo inaudito. Topam com aquela ode ao macho viril, o herói sem capa que ruge como um leão reinando na selva. Se identificam com aquela repulsa invejosa em relação aos universitários, que buscam inferiorizar com a pecha de consumidores de entorpecentes. Acadêmicos que são a esperança de dias melhores através dos avanços científicos, da pujança intelectual imprescindível para sacar o povo do buraco em que foi enfiado.

Podemos constatar os traços do elitismo destes motoclubes no tanto que discriminam os motoboys. Como abordamos noutro texto, os velhos brancos de motoclube atribuem a si mesmos a alcunha de motociclistas em rejeição ao termo motoqueiro – porque seguem as leis de trânsito e são cordiais com o entorno. Mas o sentido desta aversão é outro: basta atentar para o significado do sufixo eiro – de motoqueiro – que geralmente dá complemento para substantivos relativos ao trabalhador. Parece que todo “eiro” sofre uma diminuição de importância, uma vez que se refere aos trabalhadores braçais.

Quando dizemos que são velhos, muito mais do que uma faixa etária, nos referimos a um estado de espírito: homens de diversas idades a bordo de caras motocicletas importadas, que se creem no direito de tomar as vias públicas, num momento de restrição de circulação para a contenção de uma devastadora pandemia. Carregam a bandeira do país como um estandarte totalitário, em nome de um líder entreguista que nunca atuou em prol dos interesses nacionais. Gastam o dinheiro público num evento de campanha eleitoral privada e de alto risco sanitário em nome de valores reacionários e antipatrióticos. Defendem o barbarismo praticado nos piores momentos da História brasileira. Velhos valores em belas máquinas.