O medo dos herdeiros-governantes (ou governantes-herdeiros)

Busto de Luiz Gama - O medo dos herdeiros-governantes (ou governantes-herdeiros)
Foto: Veja SP
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Por Thais Prado Ribeiro – Luiz Gama, nascido em 21 de junho de 1830, teria feito 192 anos. Ainda assim, tentam abafar sua presença e memória, tal como tentaram censurá-lo enquanto bradava em vida, denunciando as mazelas e violência do sistema econômico parasitário ainda existente no Brasil oitocentista.

Tais tentativas ultrapassam os muros da educação, visto que dificilmente se ouve falar nos bancos do ensino básico ou superior, na história do Homem que se libertou da escravidão e libertou mais de uma centena de pessoas do jugo de pretensos senhores. Este apagamento também é escancaradamente político. O cinismo daqueles poderosos que atacavam Gama no império, constituíram herdeiros (sejam eles verdadeiramente, de sangue ou de ideais).

Em 2021, o mandato da recurso não foi liberado pela prefeitura a tempo de ser colocado no orçamento de 2021 (seguindo regra da Câmara Municipal). Então, o recurso retornou aos cofres públicos.

Entretanto, em mais uma tentativa, no dia 25 de janeiro de 2022, a parlamentar pediu um orçamento da prefeitura para formular uma nova emenda para a restauração das estátuas. Até a data do presente texto, não havia sinalização por parte da Prefeitura para inclusão destes custos no orçamento de 2022.

O cinismo, talvez até silencioso aos ouvidos menos atentos, atua novamente tal qual atuavam contra Luiz Gama. Ninguém se posiciona abertamente contra tal restauração, são apenas “entraves burocráticos” que “impossibilitam”. Observa-se o evidente ataque e tentativa de apagamento, não só a pessoa Luiz Gama, mas tudo que seu legado representa. Apagamentos não ocorrem apenas derrubando imagens e estátuas daqueles que não se querem mais lembrar, ou que não querem que sejam exemplos. Apagamentos também ocorrem pela omissão paulatina dos detentores do poder, até que aqueles símbolos sejam relegados a um local secundário, e por fim, esquecidos.

Sobre este caso, deve-se observar os símbolos contidos nestas movimentações. É importante evidenciá-los com olhar mais atento.

Ao se observar a origem da requerente da verba, vemos uma vereadora, “negra e transvestigênere, foi a mulher mais bem votada em 2020 em todo o país, a mais votada do PSOL e é a primeira trans eleita para a Câmara Municipal paulistana, com mais de 50 mil votos”, que é “ativista dos Direitos Humanos, na luta por equidade para a população negra, no combate à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ e pela valorização das iniciativas culturais jovens e periféricas”, como descrito em sua página da Câmara.

O pedido vem da voz de uma representante daquelas e daqueles que, historicamente são alvos do apagamento de seu legado e da morte do corpo físico (não apenas da bala, mas da fome, do racismo, da violência psicológica), daqueles que dificilmente são ouvidos, tal qual aqueles que Luiz Gama defendia, por todos os meios possíveis.

Porém, este foi o ataque mais recente. Ainda sobre o busto de Luiz Gama, inaugurado em 1931 (no centenário de seu nascimento), vem desde sua origem sendo alvo de tentativas de apagamento à memória do maior abolicionista brasileiro. Todo o processo (desde sua concepção até efetivação), ocorrido entre 1929 e 1931, somente foi levado a cabo pela luta incansável da imprensa negra paulista e de movimentos negros, de forma independente.

Em 2020, o Estado também mostrou seu posicionamento quando se trata do Maior Advogado do Brasil. Houve duas proposições de autoria da deputada Monica, da Bancada Ativista (PSOL): o Projeto de Lei 422/2020, propunha substituir o monumento de Anhanguera, localizado na avenida Paulista, cartão postal da cidade, por uma obra em homenagem a Luiz Gama. O outro Projeto de Lei, 423/2020, alteraria o nome da rodovia Anhanguera para Luiz Gama. Mas, estamos em 2022 e a rodovia e a estátua do “Diabo Velho” não deram lugar para o “Amigo de Todos”.

Visto que a figura e imagem de Luiz Gama deveria ser a de herói nacional, dada que não há pessoas honradas que não reconheçam sua incrível história, torna-se, para os mais desatentos, incompreensível o porquê tentam, há mais de cem anos, relegar ao ostracismo uma entidade de tamanho brio.

Tal escolha demonstra de forma cristalina quem e o que deve ser admirado no Brasil (mais especificamente em São Paulo), bem como qual o modelo de sujeito que devemos aspirar ser, para dar forma a um determinado projeto de país. Nos resta meditar sobre qual será o futuro e “frutos” deste projeto de país pautado nesta identidade brasileira de “Anhangueras”, que tenta paulatinamente apagar os “Gamas”.

Dado isto, urge levantar alguns questionamentos: Para quem interessa o apagamento e ataque à memória de Luiz Gama e de seu legado? Por que a figura combativa de Luiz Gama, altamente revolucionária e questionadora, não é digna de ser mantida, ainda que não seja em nenhum cartão postal? O que teme aqueles que desprezam Luiz Gama e elevam Anhanguera?

Um dos motivos pode ser o resultado da elevação de Luiz Gama para o seu lugar de direito. Isto poderia ser inspiração emancipatória para o brasileiro tão cansado e vilipendiado repensar os meios para a libertação do modelo de sociedade atual, bem como suas estruturas de poder que viabilizaram o precoce e evitável fim de 670 mil vidas brasileiras por conta da pandemia (até a data da elaboração deste texto). Ou ao menos, ser um modelo de cidadão que revida e luta, com toda sua força e voz, de forma efetiva e sagaz contra as injustiças e omissões contra aqueles que ainda tem o pensamento muito próximo a dos pretensos senhores que Gama tanto criticava.

Porém, nobres mestres jamais são esquecidos. Aqueles de espírito apequenado podem ter nada mais que a pretensão de relegar ao esquecimento um homem que, tendo sido escravizado, libertou mais de 500 daqueles que passaram pelo mesmo pesadelo que ele.

Para os ignominiosos que ainda, após 140 anos de sua morte intentam seu esquecimento e o enterro de seu legado, uma má notícia: não conseguiram no século passado e não conseguirão no futuro. Afinal, “A alma existe no corpo como a luz em um círio: ambas se gastam, ambas se apagam e ambas se refundem pela transformação”. Luiz Gama já se transformou em legado e este habita no coração e mente de muitos de nós.

Por Thais Prado Ribeiro, pós-graduada em Liderança e Desenvolvimento Humano (Mackenzie). Graduada em Comércio Exterior (PUC-SP). Graduanda em Direito (Mackenzie). Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro, vinculado ao PPGDPE/UPM. Pesquisadora e iniciação científica “Luiz Gama e a Construção da Cidadania Brasileira” com bolsa MackPesquisa.

Referências:

FERREIRA, L. F. (Org. apres. Notas) Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. P. 293

SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Ato solene em ambiente virtual presta homenagem à Beth Beli e Luiz Gama na Alesp. Disponível em: Acesso em: 10 jun. 2022.

  1. ” O que teme aqueles que desprezam Luiz Gama e elevam Anhanguera?”

    Eu devolveria essa pergunta com outro questionamento: porq Anhanguera não merece ser exaltado? O que ainda se ganha com esse denuncismo anacrônico e infantil das figuras que edificaram a nação? O que se ganha nessa campanha contra as figuras que estão elevadas (e muitas com toda a justiça, como o próprio Anhanguera) a condição de ícones da história nacional?

    Que a História mereça ser revisitada, reavaliada e que se faça justiça a essa ou aquela figura esquecida é coisa que até concordo com a autora do texto. O que não consigo concordar é o que a elevação de figuras periféricas e segmentadas da vida nacional, colocadas a um patamar de importância graças aos nichos identitários que dela se utilizam para fazer proselitismos, e isso esteja acima de figuras que em seu tempo dizem mto mais do processo civilizatório brasileiro que outras.

    Querer enaltecer Luiz Gama como um advogado corajoso, um ativista social e denuncista das mazelas de seu tempo é coisa preciosa que devemos respeitar, mas será mesmo que existiria um Brasil tal como entendemos e temos em nossos corações se não existissem um Anhanguera, Domingos Jorge Velho, Fernão Dias Paes, etc? Seríamos o quinto país do mundo se as bandeiras não tivessem desbravado nossa nação e ter nos deixado as bases para o Tratado de Madrid? Existiria o fim da escravidão sem a Princesa Isabel ou Joaquim Nabuco? Certamente que a resposta a essas perguntas é não.

    Precisamos de uma análise mais madura e razoável das questões de nosso país. E um pouco mais de amor a nação também não faria mal.

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