Luiz Gama: Pensador social brasileiro

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Por Thais Prado Ribeiro – Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), foi um ilustre cidadão, numa época de súditos. Ao ser pioneiro, ecoa sua voz em múltiplos campos e nos mostra a magnitude de sua identidade, bem como intelectual e ativista negro do século XIX, sendo o único, dentre os pensadores brasileiros, a viver a escravidão na própria pele. Gama também tomou a dianteira na literatura brasileira ao dar voz ao negro “autor”, com seu livro “Primeiras Trovas Burlescas” (1859) em uma época em que dificilmente era feita a menção de negros em obras.

Na política, foi o primeiro ativista em prol de um abolicionismo imediato, irrestrito e republicano e do que hoje seriam os direitos humanos. No pensamento jurídico, tem uma perspectiva diferenciada e de tecnologia refinada, fundada em sua vivência como um homem negro, de mãe africana e ex-escravizado. Na imprensa, sua vanguarda se dá ao ter fundado um jornal, juntamente com Rui Barbosa: o Jornal Radical Paulistano (1869) e o Diabo Coxo (1864), primeiro folhetim com ilustrações. Gama mobiliza a imprensa com um método único em prol das “causas da liberdade”.

Gama era de uma inteligência e perspicácia de tal monta que foi autodidata na profissão de advogado. Após ter o básico das letras, conseguiu provar sua condição de escravização ilegal (pois nasceu livre), conquistou sua liberdade, frequentou a biblioteca do Largo São Francisco, e logo enveredou por tal campo. Em posse de uma provisão concedida pelo Poder Judiciário àqueles que não eram formados em Direito, mas possuíam conhecimento notório da matéria, Gama tornou-se um advogado provisionado. Com isso, é o primeiro advogado e abolicionista ex-escravizado, além de ter criado estratégia única, com base nas leis que versavam sobre a matéria de escravidão, para libertar pessoas ilegalmente escravizadas.

Luiz Gama é o narrador de sua própria história e a principal fonte de dados sobre sua personalidade são seus escritos. Em uma época em que a posse de terceiros sobre o corpo e voz da população negra era algo comum, Gama transcende tais condições quase que intransponíveis, impostas pela estrutura social aos indivíduos de sua cor e origem.

O escrito que Gama dá o tom sobre sua origem, é uma carta enviada a Lucio de Mendonça (autor do primeiro ensaio biográfico sobre o precursor do abolicionismo), a qual escreve que nasce livre, em 21 de junho de 1830, em Salvador, filho de uma africana livre – a qual Gama denomina Luiza Mahin – e de um descendente de portugueses, fidalgo, não denominado, tendo este a responsabilidade na escravização de Gama aos 10 anos, para pagar dívidas.

Após isso, Gama relata que é levado ao Rio de Janeiro e então para Santos, portanto, vive de fato estar a bordo de um navio negreiro, o marcando fortemente. De Santos é levado ao interior do estado e menciona que fez o trajeto a pé (cerca de 175 km). É rejeitado, devido a fama de escravizados baianos serem insurgentes. Finalmente, é levado para São Paulo, onde se fixa na condição de escravo, sendo seu pretenso senhor, um comerciante, alferes Cardoso.

Aos 17 anos, inicia-se na leitura e escrita, dada a “transgressão” de um estudante de Direito, Antônio Rodrigues do Prado Junior, pensionista do alferes Cardoso. Porém, o aprendizado completo se deu de modo autodidata. Alguns autores apoiam a ideia de que Luiz Gama foi, além de tudo, um “superdotado”.

Após um ano de seu letramento, foge da casa do alferes Cardoso e recupera sua liberdade após conseguir “provas inconcussas de sua liberdade”. Alista-se na Guarda Municipal e torna-se anos depois, funcionário do gabinete de uma das maiores autoridades de São Paulo, o Conselheiro Furtado de Mendonça, o qual o “apadrinha” garantindo a Gama o acesso a biblioteca do Largo São Francisco, onde Furtado de Mendonça era também catedrático.

Contudo, em 1854, Gama é julgado por suposta insubordinação e é condenado a prisão, abandonando a carreira militar. Gama relata que tal condenação se deu pelo incomodo de pessoas influentes, devido seu interesse e argúcia em debater as “causas da liberdade”.
Em 1859, torna-se autor, ao publicar as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, em São Paulo. Uma coletânea de sátiras políticas, sociais e raciais, sendo esta a obra em que se autointitula e se identifica como um homem negro, ex-escravizado. Também nasce seu filho, com Claudina Fortunata Sampaio, Benedito Graco Pinto da Gama.

A partir da década de 1860, Luiz Gama dá início a suas atividades na imprensa, sendo eloquente ativista da abolição imediata e sem pagamento de indenização aos proprietários (a qual era um dos principais eixo da discussão em sua época, acerca da propriedade privada), aliada ao discurso republicano. Tal como publicaria no futuro, Luiz Gama tinha “um sonho sublime […]: o Brasil americano e as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos!”

Em 1864, em companhia do caricaturista Ângelo Agostini, Gama funda o “Diabo Coxo”, um semanário “informativo, crítico e humorístico”, sendo o primeiro jornal ilustrado de uma São Paulo provinciana, quase inexpressiva, com aproximadamente 10 mil habitantes. Neste jornal, publicado até 1865, sua voz pioneira novamente ecoou, ao publicar o primeiro poema da literatura brasileira que exalta a beleza da mulher negra. Sob o pseudônimo de Getulino, Luiz Gama nos presenteia com “Meus amores”. Também, neste mesmo período, Gama é iniciado na maçonaria paulista, provavelmente por indicação de docentes da Faculdade de Direito ou correlatos a José Bonifácio, personalidade a qual Gama teria grande amizade e afinidade política até o fim da vida.

Após este jornal, Gama é colaborador em “O Cabrião” um dos periódicos humorísticos mais célebres da capital paulista, sob o pseudônimo de “Barrabrás” (pois residia no bairro do Brás). De tom liberal, tal jornal denunciava repercussões da Guerra do Paraguai. Posteriormente, Gama atua na folha Ipiranga, torna-se membro-fundador do Clube Radical Paulistano (o qual futuramente se tornaria o Partido Republicano Paulista) e funda a Loja América (sob sua faceta de maçom), com Rui Barbosa, Américo e Bernardino de Campos, Ferreira de Meneses dentre outros personagens célebres da época.

Em 1869, já sendo Luiz Gama uma das figuras mais populares e influentes da cidade, é cofundador de uma escola gratuita para crianças e um curso primário noturno para adultos. Ao lado de Rui Barbosa, funda e torna-se o redator do Radical Paulistano, jornal do Partido Liberal Radical paulista.

Há registros que Gama liberta 42 escravizados de uma fazenda de Jundiaí. Nesta altura, conquista fama de libertador de escravos, ganhando o apelido de “terror dos fazendeiros”. É ameaçado constantemente de morte, tendo escrito, inclusive, uma carta a seu filho dando instruções caso sua vida fosse interrompida pela violência. Vai a julgamento no Tribunal do Júri e, advogando em causa própria é absolvido.
Entre 1871 e 1874, Gama se vira para o seu prisma político: em 1871, ano da Comuna de Paris, é acusado de ser um “agente da Internacional”. Lança-se a base do Partido Republicano Paulista. Contestador e leal a seus ideais, Gama ausenta-se da primeira Convenção Republicana do Brasil, ocorrida em Itu, ao ver com maus olhos a participação de fazendeiros. Em uma outra convenção, Gama comparece, porém expõe suas divergências com o partido. Luiz Gama, versa sobre abolição imediata e deixa a sessão recusando a apoiar uma proposta de emancipação lenta e gradual, com indenização aos senhores. Após tal divergência, se mantem no partido contudo com um distanciamento crítico.
No mesmo período, colabora no jornal “O Coaracy” e é proprietário e redator d’O Polichinelo. Já em 1877, estabelece-se em banca de advogados com outros parceiros, onde atuará até o fim de sua vida.

Em 1881, Lúcio de Mendonça publica um artigo autobiográfico de Gama, já prestando homenagem a este “bom republicano”, o qual já possuía saúde debilitada pela diabetes. Neste momento, Luiz Gama é referência como republicano e abolicionista, ainda milita ferozmente na imprensa, inclusive expõe figuras importantes estadistas que proclamavam sobre a abolição, contudo eram relacionados a reescravização ilegal de africanos.

No ano seguinte, Luiz Gama funda o Centro Abolicionista de São Paulo com apoio de colegas maçons dentre outros sócios como Alberto Torres e Antônio Bento. Morre Luiz Gama em 24 de agosto de 1882. Raul Pompéia, colega e admirador de Gama, relata que o Gama morre pobre, como “benemérito cidadão”. Segundo registros da imprensa da época, o funeral de Gama, leva seu corpo de sua casa, no Brás até o Cemitério da Consolação, transferindo o invólucro de mão em mão, prestando, assim, a última homenagem ao “amigo de todos”.

Este é Luiz Gama: um menino que nasceu livre e foi escravizado pelo pai, que rompeu barreiras e crenças de seu tempo e logrou a própria liberdade. E para além disso: tornou-se um dos maiores intelectuais brasileiros, um dos maiores advogados que este país já conheceu, quase como um personagem mitológico.

Ao combater veemente e incansavelmente as injustiças de seu tempo, ao desmascarar os interesses de pretensas elites que legitimavam a escravidão, ao conquistar a liberdade de mais de 500 vidas, o “Orfeu de Carapinha”, torna-se também, um dos maiores símbolos da força e da luta que todos nós, brasileiros, precisamos ter ao percorrermos – ainda que seja árduo – o caminho contra as injustiças que ainda são presentes em nosso tempo, dentro de nosso próprio país, contra nossos próprios irmãos; assim como o “amigo de todos” denominava aqueles que libertava.

Por: Thais Prado Ribeiro.
Pós-graduada em Liderança e Desenvolvimento Humano (Mackenzie). Graduada em Comércio Exterior (PUC-SP). Graduanda em Direito (Mackenzie). Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro, vinculado ao PPGDPE/UPM. Pesquisadora e iniciação científica com bolsa MackPesquisa.

Referências:
AZEVEDO, A. Orfeu De Carapinha. A Trajetória De Luiz Gama Na Imperial Cidade De São Paulo. São Paulo: Editora UNICAMP, 1999.
FERREIRA, L. F. (Org. apres. Notas) Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
FERREIRA, L. F. (Org) Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. São Paulo: Edições SESC, 2020.
FERREIRA, L. F. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa, [S. l.], n. 8-9, p. 300-321, 2008. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116741.
GAMA, L. Trovas burlescas. São Paulo: Editora SESI-SP. 2017.
GAMA, L. Diabo Coxo: São Paulo, 1864-1865. São Paulo: Edusp. 2005.