Marighella e os Fadai iranianos – Parte 2 de 3

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O Terceiro Mundo é vasto e complexo, mas isso não impede que vejamos as imensas convergências em suas diferenças. Mais do que um paralelo, há um verdadeiro vínculo entre as guerrilhas latino-americanas e suas contrapartes no Oriente Médio, nas abundantes tragédias e erros, mas também nos acertos. É assim que podemos ver a influência das ações e do pensamento de Marighella no Irã.

A chamada Fadaiyan-e-Khalq foi um grupo heterogêneo, mas mais ou mais coeso, que compôs uma organização guerrilheira inspirada no marxismo-leninismo e no paradigma da ação direta dos anos 60 e 70, emergida no período mais autoritário e repressivo da história do Irã.

Nessa série, faremos uma recapitulação da história iraniana, procurando pontuar alguns paralelos e os vínculos entre a experiência guerrilheira na América Latina e a Fadaiyan-e-Khalq, principal organização influenciada pelo foquismo e ação direta latino-americana no Irã.

Na primeira parte, discutimos os antecedentes daquela organização, principalmente no golpe contra o governo nacionalista de Mossadegh em 1953. Na parte 2, vamos contar a história propriamente da Fadaiyan-e-Khalq durante o regime repressivo do Xá Mohammed Reza Pahlevi. Finalmente, na parte 3, comentaremos sobre a guerrilha já no Irã pós-revolucionário e empreenderemos um esboço de balanço comparativo de ambas as experiências.

Parte 2: Repressão e luta contra o regime do Xá Mohammed Reza Pahlevi

A Fadaiyan-e-Khalq, ou Organização Popular dos Guerrilheiros Fadaiyan Iranianos (pronunciada como algo próximo de “feda-ím”, com ênfase na última sílaba), existiu na verdade somente na década de 1970. Tal como não nos é estranho na América Latina, foram um conjunto de organizações oriundas de rachas e justaposições que se sucederam rapidamente em uma frenética conjuntura de luta clandestina. É tentador fazer paralelos com a VPR e a COLINA se fundindo na VAR-Palmares.

Marighella e os Fadai iranianos

O primeiro grupo que compôs os Fadai é herdeiro mais ou menos direto de dissidências do Tudeh. Algumas vezes chamado de “Grupo Um”, foi estruturado em torno de duas lideranças estudantis: Bižan Jazani e Ḥasan Żiāʾ Ẓarifi.

Jazani vinha de uma família de comunistas ligada ao Azerbaijão. Foi preso no golpe de 1953 e durante esse período se desiludiu com o Tudeh. Após sua soltura, entrou para a Universidade de Teerão, cursando ciências sociais, quando montou um periódico que circulava entre os estudantes e militou no braço estudantil da Segunda Frente Nacionalista. Zarifi era bastante jovem na época do golpe de 1953 (tinha somente 14 anos), mas já militava na juventude do Tudeh. Foi preso em 1956, mas depois da soltura entrou para a Universidade de Teerão, cursando direito, quando foi líder da Organização da Frente Nacional Estudantil entre 1960 e 1963, que levou-o a ser preso várias vezes nesse período.

O grupo Jazani-Zarifi se estruturou após 1963 recrutando alguns quadros do antigo Tudeh e principalmente estudantes de classe média de Teerão. Além das tarefas de agitação estudantil – o que por si só é um grande desafio em um governo repressivo – o grupo se dedicava principalmente ao planejamento e organização. É nessa época que entram em contato com as obras e ações das guerrilhas latino-americanas, lendo Regis Debray e Che Guevara. Essa inspiração do foquismo e da perspectiva de ação direta é que inspirou teoricamente os Fadai, que foram posteriormente organizados em uma publicação clandestina de 1969 chamada “o que um revolucionário deve saber”.

O longo período de preparações levou a vários rachas e dissidências do “grupo um”. A primeira e única ação deveria ocorrer em 1968, no contexto das pomposas preparações de comemoração de aniversário de 2.500 anos do Império Persa promovidas pelo Xá Mohammed Reza Pahlevi para justificar o regime. Os militantes estruturam duas células: uma urbana, baseada em Teerão, e outra rural, chamada de “unidade montanhesa” (o interior do Irã é marcado por um relevo bastante acidentado). Três dias antes da primeira operação – um assalto a banco – parte relevante do grupo foi preso num ponto de encontro por agentes da SAVAK. Jazani estava entre os presos. Poucos membros do “grupo um” conseguiram escapar.

Marighella e os Fadai iranianos

O “grupo dois”, como é conhecido, começa a se estruturar na cidade de Mexede (Mashhad na transliteração em inglês), próxima à fronteira com o Turcomenistão. As duas lideranças que o formaram, Puyān e Aḥmadzāda eram jovens oriundos do islamismo politizado, esposando o marxismo somente quando se mudaram para Teerão para cursar a universidade, depois de 1967, onde conheceram Meftāḥi, o terceiro líder do grupo. Rapidamente cresceram para quase 50 membros nos dois anos seguintes.

Com muito mais contato com as obras latino-americanas, principalmente dos Tupamaros e notoriamente o mini-manual de Marighella, Aḥmadzāda publicou clandestinamente em 1970 o “Luta Armada”, considerada o principal documento dos guerrilheiros Fadaiyan, bastante hostil a Frente Nacionalista e ao Tudeh – este último classificado como “organização pequeno-burguesa e reformista”. Assim como o “grupo um”, o grupo liderado por Puyān, Aḥmadzāda e Meftāḥi acabaria preso pelo SAVAK antes de conseguirem lançar sua primeira ação no início de 1971.

Os dois grupos entram em contato mais intenso ao longo do ano de 1971. Os sobreviventes do grupo um se organizaram ao redor da liderança de Ašraf e entraram em contato com os sobreviventes do outro coletivo, liderado pelo mesmo triunvirato original, e lançaram em 8 de fevereiro daquele ano um ataque conjunto contra um posto policial em Siahkal na região do mar Cáspio, onde militantes do segundo grupo haviam sido detidos. A ação é bem sucedida em seu objetivo tático, mas leva a prisão e morte de 14 militantes das duas organizações – contigente considerável do seu efetivo. Apesar das baixas, a vitória marca o início do período guerrilheiro de resistência contra o regime do Xá. Em 7 de abril do mesmo ano, o Grupo Um é novamente bem sucedido no assassinato do general Żiāʾ Farsiu, promotor que conduziu os processos que levaram à pena de morte de militantes em retaliação à operação de Siakhal.

Marighella e os Fadai iranianos

A primeira reunião do “quadro central” da Organização Popular dos Guerrilheiros Fadaiyan Iranianos, já com o nome que os tornou famosos, ocorreu em maio de 1971. Nesse ano a maioria das lideranças anteriores do grupo dois acabou presa e morta, notadamente Aḥmadzāda, embora sua obra tenha permanecido como norte teórico da organização. Ao longo de 1971, os Fadai lançaram diversas operações, principalmente assaltos a bancos, mas também ações de propaganda armada sobretudo contra as comemoração dos 2.500 anos da monarquia persa – maior peça de propaganda do regime.

Ao longo dos próximos dois anos, quase toda a primeira geração de líderes dos dois grupos originais é assassinada ou presa pelo regime. A liderança permanceu com Ašraf, que estruturou os Fadai nas principais cidades iranianas ainda na primeira metade dos anos 70, fiel à linha teórica de Aḥmadzāda (isso será uma questão mais adiante). A Fadaiyan-e-Khalq passou a contar com financiamento clandestino do movimento estudantil por meio da Confederação dos Estudantes Iranianos, o que permitiu à organização parar com os assaltos a bancos e se focar em assassinatos e outras operações de propaganda armada.

Entre outras operações bem sucedidas, estão as mortes do interrogador e torturador da SAVAK major ʿAli-Naqi Niktabʿa (30 de dezembro 1974), do comandante da guarda universitária, capitão Yad-Allāh Nowruzi (3 March 1975) e de uma espécie de “Cabo Anselmo” iraniano, o agente da SAVAK ʿAbbās-ʿAli Šahriāri-nežād, que havia se infiltrado nas organizações anteriores e levado às prisões os guerrilheiros antes mesmo de serem capazes de conduzir as operações.

As ações também eram coordenadas com os sindicatos e associações iranianas – ainda que de maneira bastante débil e incipiente. É deste modo que o assassinato de Moḥammad Fāteḥ Yazdi, milionário ligado ao regime do Xá, é seguida por greves em todas suas fábricas em 1974. Os Fadai também explodem os guichês de pedágio para angariar apoio dos taxistas de Teerão.

Marighella e os Fadai iranianos

Além do movimento estudantil iraniano – sua principal base de apoio e de recrutamento – os Fadai também estabeleceram extensos contatos no Oriente Médio. Os governos da Líbia e do Iêmen Popular apoiaram a organização, que também contou com o suporte de George Habash da Frente de Libertação Palestina – o mesmo que comandou Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido como Chacal.

No entanto, apesar das operações bem sucedidas, o apoio à luta armada entre os estudantes apresentava nítidos sinais de desgaste na segunda metade dos anos 1970. A visão otimista de Aḥmadzāda de que a propaganda armada serviria como catalisador para o levante espontâneo das massas trabalhadoras não rendeu os frutos esperados. Da prisão, Jazani, um dos membros fundadores do antigo grupo “um”, recrutou outros militantes presos e voltou a advogar que os Fadai deveriam estruturar um braço político, paralelo às ações de propaganda armada, para atuar principalmente junto aos trabalhadores urbanos, organizando-os. Vale a pena ressaltar que o antigo grupo de Jazani-Zarifi defendia essa tese desde antes de Siahkal. Não deixa de chamar a atenção que esse mesmo tipo de discussão foi central nas organizações de esquerda armada latino-americana.

Esse racha teórico-político se agravou com o passar dos anos à medida que a situação da Fadaiyan-e-Khalq se tornava mais complicada. Por meio de Armaḡāni, ex-prisioneiro político e guerrilheiro que depois de solto chegou ao quadro principal, as ideias de Jazani se tornavam mais populares entre os militantes, produzindo verdadeiros debates à distância contra Ašraf, que se mantinha fiel às teses mais espontaneístas de Aḥmadzāda. A incompatibilidade das duas teses em parte reproduzia as diferentes origens da organização guerrilheira, embora Ašraf viesse do mesmo grupo que Jazani.

É importante destacar que a Fadaiyan-e-Khalq em nenhum momento durante os anos 70 foi a única organização guerrilheira no Irã e mantinha relações mais ou menos amistosas com várias delas, inclusive absorvendo quadros de outras agremiações massacradas pela SAVAK. Foi o caso principalmente da Frente Popular Democrática (Jabha-ye demokrātik-e ḵalq) e a Setāra, porém, em ambos os casos, tais fusões foram problemáticas, com intensas disputas ideológicas (sobretudo com a Setāra, que chegou a frustrar a unificação). Mais interessante é a relação com a Mojāhedin-e Ḵalq, uma organização que inicialmente esposava uma visão revolucionária do islamismo para em seguida converter-se a uma variante espontaneísta de marxismo. Essa conversão, fruto de entrismo de quadros inspirados no maoísmo, não foi bem visto pelos Fadai, que mantinha boas relações com a antiga liderança da Mojāhedin-e Ḵalq, mas mesmo assim as duas organizações mantiveram uma duradoura aliança.

A situação piorou consideravelmente em 1976. Ašraf e todo o quadro central da Fadaiyan-e-Khalq foram assassinados pela SAVAK em junho daquele ano, nos subúrbios ao sul de Teerão. Aquela altura, Ašraf tinha quase 10 anos de experiência em atividades clandestinas, e é dito que ele teria sobrevivido a 14 escaramuças contra a SAVAK e outras forças de segurança do Irã, chamando atenção do próprio Xá. A queda do quadro central da organização exacerbou as divisões políticas e ideológicas dos Fadai e desestruturou completamente a organização.

Continua na parte 3.