Marighella e os Fadai iranianos – Parte 1 de 3

Marighella e os Fadai iranianos
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O Terceiro Mundo é vasto e complexo, mas isso não impede que vejamos as imensas convergências em suas diferenças. Mais do que um paralelo, há um verdadeiro vínculo entre as guerrilhas latino-americanas e suas contrapartes no Oriente Médio, nas abundantes tragédias e erros, mas também nos acertos. É assim que podemos ver a influência das ações e do pensamento de Marighella no Irã.

A chamada Fadaiyan-e-Khalq [1] foi um grupo heterogêneo, mas mais ou mais coeso, que compôs uma organização guerrilheira inspirada no marxismo-leninismo e no paradigma da ação direta dos anos 60 e 70, emergida no período mais autoritário e repressivo da história do Irã.

Nessa série, faremos uma recapitulação da história iraniana, procurando pontuar alguns paralelos e os vínculos entre a experiência guerrilheira no nosso continente e a Fadaiyan-e-Khalq, principal organização influenciada pelo foquismo e ação direta latino-americana no Irã..

Na primeira parte, vamos discutir os antecedentes daquela organização, principalmente no golpe contra o governo nacionalista de Mossadegh em 1953. Na parte 2 vamos contar a história propriamente da Fadaiyan-e-Khalq durante o regime repressivo do Xá Mohammed Reza Pahlevi. Finalmente, na parte 3, comentaremos sobre a guerrilha no Irã pós-revolucionário e empreenderemos um esboço de balanço comparativo de ambas as experiências.

Parte 1: Operação Ajax e o golpe contra os nacionalistas em 1953

O petróleo iraniano era então monopólio de uma empresa britânica, a Anglo-Persian Oil Company (APOC, depois de 1935: AIOC), fundada em 1909 em meio à tempestade dos levantes constitucionalistas que abalaram a nação asiática no início do século XX. O Irã se via dividido em zonas de influência britânica e russa, parte do chamado “Grande Jogo” no qual as duas potências disputavam o controle sobre a Ásia Central. Havia, porém, clara vantagem para os ingleses, que mantiveram firme controle sobre a então Pérsia, um controle indireto de um país formalmente independente, bem conhecido de nós latino-americanos: o neocolonialismo do qual fala Kwame Nkrumah [2].

No início dos anos 50, o primeiro-ministro Mossadegh cometeu a “ousadia” de reclamar para seu país as riquezas do petróleo que lhe pertenciam. Isso foi suficiente para desencadear uma forte reação imperialista, inicialmente sob liderança britânica. Em 1951, logo na nacionalização dos ativos da AIOC, tropas inglesas ocuparam a refinaria de Abadan, uma das maiores plantas desse tipo do mundo na época, perto da fronteira com o Iraque. Temendo uma guerra de grande escala e considerando a clara fragilidade do império britânico no pós-guerra, o primeiro-ministro Clement Atlee ordenou a retirada dos militares e optou por uma estratégia de desestabilização por meio de sanções econômicas.

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Mas o alto grau de consciência nacional que agitava o Irã logo mostrou a insuficiência das sanções. O recém empossado Winston Churchill – que voltou ao governo no final de 1951 – optou por uma estratégia de intervenção através de aparelhos de inteligência, que encontrou eco na administração republicana de Eisenhower dois anos depois. O acordo entre os dois impérios contemplava o fim do monopólio da AIOC, cujos campos seriam divididos com transnacionais petroleiras de outros países imperialistas. Estava montado o palco da Operação Ajax, que eclodiu em 1953.

A CIA e o MI-6 (mas principalmente a primeira agência) passaram a subornar oficiais do Exército Iraniano com a maior arma dos aparelhos de inteligência imperialistas: malas de dinheiro. Não só isso, os espiões estadunidenses também recrutaram mafiosos e criminosos para procurar desestabilizar o governo democraticamente eleito. São famosas as imagens do criminoso Shaban Jafari, conhecido pela alcunha “o Desmiolado”, que teria ganho um Cadillac em troca de seus serviços contra seu próprio país, sempre ao lado de uma foto do Xá Mohammed Reza Pahlevi.

Os comunistas do Tudeh desempenharam um papel duplo nesse processo. Os nacionalistas tinham uma tensa relação com o Tudeh, embora houvesse uma frágil aliança entre as forças durante o governo de Mossadegh. Não só a Rússia czarista havia compartilhado o Irã com a Inglaterra, como durante o processo revolucionário pedaços do Irã formaram um soviete [3] que quase se juntou à URSS. Para piorar, durante a Segunda Guerra Mundial o Irã foi invadido e novamente dividido entre esferas de influência entre os dois países (ainda que os soviéticos tenham perdido sua zona de influência logo após o fim da Guerra). A extensa faixa de fronteira entre o Irã e os sovietes do Turcomenistão e Azerbaijão só agravava as mútuas desconfianças.

Durante a agitação disseminada pela estratégia do caos dos países imperialistas, essa ambiguidade veio à tona. Num primeiro momento, logo no momento da nacionalização do petróleo, o Tudeh foi central em organizar greves em apoio aos nacionalistas. O aparelho militar do Partido – herdeiro da invasão anglo-soviética durante a Segunda Guerra Mundial – também foi bem sucedido em ajudar a proteger o primeiro-ministro Mossadegh de uma tentativa de golpe em 1952.

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Mas a relação voltou a se estremecer quando o Tudeh entendeu ser o momento de pressionar o governo nacionalista por reformas democráticas e populares. O governo nacionalista de Mossadegh não foi capaz de realizar a reforma agrária (o que atacaria sua base de apoio junto a elite feudal do Irã profundo) e nem melhorar a terrível situação dos trabalhadores petroleiros e outros operários urbanos. As mútuas desconfianças com o aparelho militar do Tudeh, herdeiro da invasão soviética, também impediram que primeiro-ministro aceitasse a proposta de dar mais armas para os comunistas. Tal como o caminho para o inferno, a história é pavimentada de boas intenções que saem pela culatra. A crescente instabilidade foi central para que o recém-empossado Eisenhower desse sinal verde para a eclosão da Operação Ajax. O Xá Mohammed Reza Pahlevi, então exilado, retornou para o Irã e baixou decretos imperiais ordenando a dissolução do governo de Mossadegh e sua prisão, executadas por altos oficiais do Exército ligados às forças imperialistas e o monarca passou a governo com poderes absolutos, similar ao que acontece na Arábia Saudita.

Ao longo dos anos 1950, tanto o Tudeh como o Frente Nacionalista foram duramente reprimidos, quase ao ponto da extinção. Fundada em 1957, a infame SAVAK, a polícia secreta do Xá que em fases posteriores contou com o apoio da Mossad israelense, foi instrumental para a quase dissolução de ambos os partidos. Mossadegh foi inicialmente preso em uma solitária e então amargou anos de prisão domiciliar, morrendo em 1967 sem que o regime do Xá permitisse uma funeral público. Membros da Frente Nacionalista foram mortos, presos, exilados ou cooptados. O Tudeh e seu aparato militar foram massacrados, com poucos quadros desorganizados sobrevivendo à dura repressão.

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Nesse ínterim, o espólio da intervenção imperialista foi dividido entre as potências imperiais. Os ativos da Anglo-Iranian foram divididos com outras petroleiras imperialistas e o monopólio britânico passou a se chamar British Petroleum, nome que tem até hoje.

O regime empreendeu uma curta abertura entre 1960 e 63, momento em que houve renovação de lideranças na esquerda. Os nacionalistas – reorganizados na Segunda Frente Nacionalista – buscaram uma estratégia de conciliação junto ao Xá, com a nomeação de um primeiro-ministro alinhado com os Estados Unidos. No entanto, o levante do Aiatolá Khomeini em 1963 põe em cheque essa tática e evidencia o crescente descontentamento do Irã profundo, marcadamente rural, com a monarquia. Khomeini vai para o exílio para retornar somente na Revolução de 1979.

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Após essa pequena e frágil abertura, o regime do Xá voltou a se fechar, até mais duramente do que antes. O regime lançou um pacote de reformas que ficou conhecido como “Revolução Branca” (Enqelāb-e safid) numa tentativa de modernizar o atrasado país de características feudais. Entre elas, uma reforma agrária bastante agressiva e medidas laicizantes que desagradaram o clero xiita do Irã, desestabilizando o mundo rural da nação asiática. Uma tímida industrialização via transnacionais imperialistas também foi empreendida, à moda de um Plano Marshall para o Terceiro Mundo, o que agravou a dissolução do mundo rural iraniano.

É nesse contexto de abertura e novo fechamento que ocorrem importantes levantes estudantis de quadros de classe média nas grandes cidades iranianas como Teerão e Tabriz. Os nacionalistas voltam a se organizar numa terceira e última Frente, que opta por uma tática de desobediência civil calcada em protestos e manifestações de rua – duramente reprimidas pela SAVAK e outras forças do regime. O movimento estudantil e sindical desempenharam papel central nos enfrentamentos contra o Xá no cenário urbano, enquanto forças mais profundas se moviam um tanto invisíveis no Irã rural e religioso.

São esses estudantes e dissidentes que formaram dezenas de organizações guerrilheiras islâmicas, marxistas e, algumas vezes, uma combinação de ambas. Entre elas, a Fadaiyan-e-Khalq, ou Organização Popular dos Guerrilheiros Fadaiyan Iranianos (pronunciada como algo próximo de “feda-ím”, com ênfase na última sílaba). Seu processo de estruturação é marcado por rachas e recomposições – não tão estranhas à nossa experiência latino-americana. Foram constituídas principalmente por jovens dissidentes do Tudeh em contato com as obras de Debray, Guevara, dos Tupamaros e mais tarde do Mini Manual do Guerrilheiro Urbano de Marighella.

Continua na parte 2.

Marighella e os Fadai iranianos

[1] https://iranicaonline.org/articles/fadaian-e-khalq

[2] https://www.marxists.org/subject/africa/nkrumah/neo-colonialism/neo-colonialism.pdf

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Persian_Socialist_Soviet_Republic