Complexo de vira-lata e amor-próprio: o problema dos nacionalistas

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Por Uriel Araujo – Em 1958, o brilhante Nelson Rodrigues, que conhecia como poucos a alma brasileira, escreveu, em uma crônica, que o Brasil sofria de um “complexo de vira-lata”. O contexto era o da viagem da Seleção Brasileira à Suécia, por ocasião da Copa do Mundo. Ali, Rodrigues descreveu como o sentimento brasileiro oscilava entre a esperança e o pessimismo. Entre nós, frequentemente, os dois andam de fato juntos, por contraditório que pareça.

No livro “Já Raiou a Liberdade”, publicado pela Frente Sol da Pátria (com prefácio de Aldo Rebelo), em comemoração ao Centenário da Independência Brasileira, o professor Alexandre Franco de Sá, da Universidade de Coimbra e da PUC-Paraná (um português que ama e conhece bem o Brasil) escreveu, no capítulo “Um ideal por cumprir”, considerações interessantes. Ele afirma que, enquanto em Portugal existe, no dizer de Eduardo Lourenço, a ideia de que o país é “uma pequena nação incapaz de se aceitar como pequena, mas sem conseguir conceber-se como grande”, no Brasil, aconteceria o contrário: reina a ideia de que que o país é “gigante pela própria natureza”, mas, ao mesmo tempo, ele “se recusa a sê-lo” – sem querer se “pensar ou comportar como uma nação pequena”; impera a sensação de que estamos destinados a sermos grandiosos e, ao mesmo tempo, uma “recusa de ser grande”.

É aí que entra em cena o “complexo de vira-latas” de Nelson Rodrigues: frequentemente, os poetas, cronistas e escritores, com sua intuição e sensibilidade mimética, conseguem nos mostrar a realidade em um quadro melhor do que os sociólogos e cientistas políticos, com suas teorias e modelos. Mas o que seria esse complexo?

Na Psicologia, explicando de forma muito resumida e simplificada, um “complexo” é um amontoado de sentimentos, impressões, percepções ou desejos que se acumulam no inconsciente da pessoa ao redor de alguma ideia ou tema geral, mesmo que a pessoa não assuma ou não tenha consciência de que aquela ideia está concentrando energias dentro dela. Existem, afinal, vira-latas enrustidos.

Assim, “complexo de vira-lata” seria a ideia que muitos brasileiros têm, mesmo que não saibam ou não admitam, de que o Brasil, no fundo, é uma coisa meio fuleira, como cigarro falsificado contrabandeado do Paraguai ou como os cachorros “vira-lata” de rua, sem pedigree, sem eira nem beira. Seria um complexo de inferioridade, uma baixa autoestima, uma sina de derrotado. E, para complicar, misturada com a ideia de ser grande: um destino ou vocação que nunca se realiza… Em suma, um misto de esperança e desespero, de sonhar grande e apatia, de mania de grandeza e puxa-saquismo – tudo junto e misturado.

Essa síndrome é um vício que corrói a alma do brasileiro. E ela também está presente no meio nacionalista. Mas como pode ser? Não são justamente os nacionalistas que sonham com um Brasil soberano, com o país do progresso, dos grandes projetos, do desenvolvimento nacional, das rodovias e ferrovias, do submarino nuclear, da reforma da educação e da cultura?…

Ora, o Brasil é um país de dimensões continentais, riquíssimo em recursos naturais e sem conflitos étnicos, territoriais ou separatistas. É, então, um sonho predestinado a ser real – já é! E, no entanto, na boca mesma de quem afirma essa verdade, já está ali, entalado na goela com seu gosto amargo, ele – o complexo.

Quando falamos em nacionalismo no Brasil hoje, precisamos distinguir os pseudopatriotas dos nacionalistas com projeto. No caso dos primeiros, não está muito claro o que eles querem dizer quando falam em “Brasil acima de tudo” e nem quais seriam suas propostas para a soberania econômica, cultural, política e tecnológica. O que está claro é que seu grande modelo e inspiração são os Estados Unidos da América, um país estranho no hemisfério Norte, que eles não conhecem muito bem. Nada sabem de seu idioma, sua história, seu sistema de saúde caótico, seu modelo federalista, seu racismo e sua regra de “uma gota de sangue”, suas características exóticas. Conhecem, quando muito, o Mickey, o Pato Donald, a Estátua da Liberdade de Nova Iorque (reproduzida nas lojas Havan), a Disneylândia e as propagandas de pacotes turísticos para Miami. Mas, seja como for, para eles, os Estados Unidos são o ideal, a perfeição, tudo de bom – e é diante da bandeira daquele país que prestam continência, emocionados.

O segundo grupo é o dos nacionalistas que possuem um projeto – ou que, pelo menos, acreditam que é necessário haver um projeto nacional. Defendem a soberania do território, da Amazônia, a indústria nacional etc etc, às vezes com grande entusiasmo patriótico e até com atrevimento. Nesse grupo, no qual a Frente Sol da Pátria também se insere e para o qual também deseja dar sua modesta contribuição, o espírito de vira-lata não foi exorcizado. Ela ainda paira, como espectro, assombra. Onde e como este espírito sarnento se manifesta?

Ele se manifesta toda vez que os nacionalistas brasileiros afirmam, sem pensar e sem maiores evidências, que, se algo ruim aconteceu, foi porque a CIA, a agência de espionagem do governo americano, está por trás. Toda vez que afirmam que a CIA ou os Estados Unidos controlam o STF, o Judiciário todo e as Forças Armadas do Brasil. Toda vez que afirmam que todos os candidatos à Presidência da República no Brasil são literalmente “agentes da CIA”, controlados e teleguiados. Quando afirmam que os Estados Unidos controlam todo o narcotráfico na América Latina – sem tirar nem pôr. Quando acreditam que toda e qualquer onda de protestos que comece em qualquer país do mundo, necessariamente foi tramada e criada pela CIA, pela Victoria Nuland, pelos serviços secretos norte-americanos.

A crença ou o “complexo” por trás disso é a ideia de que sociedades “vira-latas” – como nós! – não possuem atores políticos e empresariais nem elites poderosas com interesses próprios e conflitos internos; não possuem complexidade, contradições inerentes, disputas políticas, capacidade de agir. É tudo apenas interferência americana e nada mais. Tudo “milimetricamente calculado”. Se os Estados Unidos desaparecessem amanhã, segundo esse raciocínio não assumido, os nossos problemas desapareceriam. É claro que os Estados Unidos da América atuam como polícia do mundo, espionam e interferem em vários países e causam inúmeros problemas, além das guerras que levam a cabo. Porém, nossos problemas estruturais, históricos e atuais não sumiriam todos se aquele grande país desaparecesse amanhã. Muitos deles continuariam: inúmeros aliás.

Tanto os pseudopatriotas (que prestam continência à bandeira de listas vermelhas e azuis) quanto os nacionalistas que veem uma conspiração norte-americana por trás de tudo acreditam que os EUA são uma central de comando do sistema do mundo, seja no papel de salvadores da humanidade ou no papel de Grande Satã. Os dois grupos, embora opostos em quase tudo, possuem uma característica em comum: o vira-latismo, que é mais visível e óbvio no primeiro caso e mais sutil no segundo.

Parafraseando a canção, ora “tigrão”, ora “tchutchuca”. O indivíduo colonizado pode ter sonhos de grandeza e, às vezes, até espezinhar quem é pequeno – porém, diante de um grande (do Norte), abaixa a cabeça e coloca o rabo entre as pernas. O cachorro vira-latas, em sua inclinação natural canina e servil, busca sempre um dono que venha coçar sua barriga, dar afagos e ordens. É esse traço puxa-saco e masoquista de personalidade (e aqui voltamos a Nelson Rodrigues) que se manifesta quando vemos, nos meios nacionalistas do Brasil, uma adoração maníaca e exagerada à figura do presidente russo Vladimir Putin. O russo reveste-se da aura de um salvador viril, que irá construir a multipolaridade, derrotar os Estados Unidos e salvar a Amazônia – nosso herói másculo montado em um cavalo branco.

Esqueceram de combinar com o resto do Sul global e esqueceram de atentar que a Rússia, no gélido Norte, não faz parte do Sul global; esqueceram que é uma superpotência agressiva com seus próprios interesses, que não necessariamente são os mesmos nossos – por mais que seja do nosso interesse manter boas relações de amizade com aquele país.

Se os nacionalistas que possuem um projeto de nação também possuem um projeto de poder, antes de conseguirem o poder, eles precisam abandonar essa russomania ridícula e colonizada. Mas não basta denunciar a russofilia, defender a política externa independente, o pragmatismo diplomático e tudo isso que nós, da Frente Sol da Pátria, temos defendido. Por trás desse posicionamento específico (que veio à tona com tudo após a campanha militar russa na Ucrânia em fevereiro de 2022), existe algo mais profundo: ele mesmo, o complexo de vira-lata.

Complexos não se extirpam simplesmente, como quem espreme o pus de um furúnculo ou corta fora um dedo podre. Eles estão emaranhados com a trama e o drama de uma vida inteira: eles se resolvem pela síntese, pela conciliação das contradições (esperança e pessimismo, cordialidade e violência, ordem e progresso, humildade e orgulho, malandragem e honestidade – “astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas”). Como no teatro de Nelson Rodrigues, somente trazendo os vícios à tona, em uma espécie de strip-tease ou raio-X da alma – ou confissão – é possível atingir a catarse. E a salvação. Já que alguns dos vira-latistas gostam tanto da Rússia, fariam bem em ler Dostoievski e em entender como o amor daquele escritor russo à pátria dele não está em choque com os vícios da alma russa: pelo contrário, de forma muito cristã, ele ama o povo russo mesmo naquilo que ele tem de mesquinho, de até desprezível – porque sua nação é grande e tem uma história e seus vícios e injustiças fazem parte daquilo que a formou e podem ser matéria-prima para sua reforma, sem importação de modelos estrangeiros.

Mas não precisamos de Dostoievski: temos Nelson Rodrigues – e temos o samba, a MPB e toda a nossa literatura. E o Grande Sertão, que é tudo.

O primeiro passo, imperioso, para superar o complexo de vira-latas é admitir que ele existe. É olhar, com franqueza (e também com compaixão) para o pequeno vira-latas, pulguento e sujo de lama, que existe em cada um de nós, nas entranhas do ser – sem vergonha. Essa é uma jornada espiritual e, como toda viagem, também tem seus riscos. O risco é se apaixonar pela lama e querer chafurdar nela, gostosamente – para sempre. Não se trata, no fundo, de amar a lama, mas de amar a si mesmo – ou seja, amar o povo brasileiro. Não há Pátria sem Povo, afinal. Sem amor próprio não existe amor ao próximo – e é o Amor que deve guiar nossa luta pela causa nacional e também nossas relações internacionais – sob o signo do Cruzeiro do Sul e da Estrela d’Alva.

Viva o Povo Brasileiro!

Nem Washington nem Pequim nem Moscou!

Pão, Terra e Tradição!

Por Uriel Araujo

Publicado pela Frente Sol da Pátria

Complexo de vira-lata e amor-proprio o problema dos nacionalistas