Milhões de brasileiros vão assistir – e comemorar – a eliminação de Karol Conká no Big Brother Brasil 21 (BBB 21), da TV Globo, hoje à noite. Pode parecer apenas uma etapa de um jogo qualquer na TV, mas avalio que a coisa é bem mais profunda do que se pensa. Para quem não acompanha BBB, Karol Conká é uma rapper de Curitiba que fez e faz grande sucesso em seu ramo musical, possuindo alcance nacional.
No reality global, a artista formou um grupo com os brothers Nego Di, um humorista que possui tudo menos graça; Lumena, uma psicóloga que muitas vezes parece estar desorientada e que responde agressivamente quando fica contrariada com algum colega da casa; e Projota, outro artista famoso, mas que está ficando ainda mais famoso, negativamente, pelo comportamento dentro do programa.
Esse grupo ficou famoso por atacar os outros integrantes com humilhações, ofensas e acusações graves, incluindo de discriminação racial. Primeiro foi Lucas, jovem que após cometer alguns erros no jogo, um deles mais grave: teve um comportamento considerado assediador com uma mulher na casa, Kerline, na primeira festa. Kerline saiu no primeiro paredão do BBB 21.
Mesmo arrependido, foi crucificado, humilhado e escanteado pelo grupo. Foi “cancelado”, como foi dito no jogo. Na véspera do paredão que iria agora enfrentar, Lucas beijou Gilberto – no primeiro beijo gay da história do BBB no Brasil –, assumindo sua bissexualidade. E como Karol, Lumena, Projota e Nego Di agiram? Duvidaram de Lucas, insinuando que o beijo teria sido “forçado”, uma atitude falsa de quem estaria “jogando”.
Ora, um jovem brasileiro de cerca de 20 anos, negro, pobre e periférico, se tornaria o primeiro homem a beijar outro homem na história do BBB Brasil parar “jogar”? Tem que estar muito fora da realidade nacional para pensar uma coisa dessas. Lucas sabia e sabe que vai pagar caro por assumir a bissexualidade para um país extremamente homofóbico e campeão mundial em mortes causadas por transfobia. Em prantos e em choque por ter sua bissexualidade questionada pelos próprios auto conclamados bastiões dos direitos das minorias, Lucas pediu para sair da casa e abandonou o programa na manhã seguinte.
Daí em diante, a irresponsabilidade e a crueldade dos participantes foi piorando e irritando cada vez mais o público. A primeira vítima foi Nego Di, eliminado na semana passada batendo recorde de rejeição, com 98% dos votos. Considerada a líder do grupo, Karol Conká possui nas pesquisas mais de 90% dos votos para ser eliminada hoje à noite. Nessa semana, outra participante foi alvo da eliminada de logo mais. Camilla respondeu com firmeza e encarou Conká, que então a humilhou dizendo que a moça não era ninguém e ainda disse, covardemente, que Camilla não gostava de ver outra preta vencendo, apelando e levando para o campo racial uma discussão que era de mérito.
Como homem branco antirracista, fico muito triste – e preocupado – quando vejo qualquer pessoa se utilizar de uma questão tão séria de uma forma tão superficial, banalizando uma realidade e luta seculares. Assim me sinto também com a questão machista e homofóbica. Essas três lutas justas, honradas e que desde muito novo dou a cara para bater ao lado dos meus irmãos e irmãs que sofrem todos os dias nesse país violento e ignorante, não podem ser usadas de forma leviana, que tem como consequência um processo de descrédito da própria luta, alimentando o preconceito ao invés de combatê-lo.
Isso somado ao processo cruel do “cancelamento”, que hoje é moda vil nas redes sociais, afasta o povão dessas questões que são fundamentais para o Brasil poder avançar como sociedade. E o discurso carregado de ódio e amargura, que a participante Lumena sabe bem como fazer, assusta o cidadão desinformado e até propenso a ver tais lutas como justas. Justiça não é vingança. Todos – quer dizer, nem todos – clamamos por justiça, mas jamais contem comigo para uma vingança que nos tornará – através do ódio – iguais àqueles que nos causam desprezo e nojo.
O que fica claro nesse BBB é que o discurso identitário, justo e correto, quando usado de forma leviana e irresponsável e por pessoas que querem humilhar e condenar “ad eternum” os outros, pode causar danos irreparáveis à sociedade, destruindo vidas inteiras em um recorte de um erro viralizado, além de causar ainda mais ódio, estimular e desinformação e a polarização doentia no país, o que vale dizer que é tão grave quanto a primeira.
O Brasil – e uma parte da esquerda nacional – não aguenta mais isso. Cada vez mais, os brasileiros e brasileiras não toleram mais as crueldades e injustiças cometidas por essa gente covarde, inimigos da verdadeira luta contra o racismo, o machismo e a homofobia.