Incêndio na Cinemateca Brasileira é consequência do apagão da política cultural

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A noite desta quinta-feira (29) foi marcada por uma profunda tristeza já anunciada: um novo incêndio se alastrou no depósito da Cinemateca Brasileira, localizada em São Paulo e criada em 1946 por figuras como Paulo Emílio Sales Gomes.

O local abrigava parte do histórico e emblemático acervo da instituição, como filmes de 35 mm e 16 mm, feitos de material altamente inflamável. Eram cópias para exibição e, felizmente, não os rolos originais, mas ainda assim integravam um relevante acervo de filmes e curtas-metragens. O depósito incendiado também abrigava o acervo da Programadora Brasil, um projeto do extinto Ministério da Cultura para exibição de conteúdo em circuitos não comerciais, englobando documentos e equipamentos museológicos, como projetores antigos.

O incêndio é evidentemente consequência direta de um permanente abandono do Governo Federal e suscita um debate profundo sobre o processo de apagão da política cultural brasileira. Embora seja amplamente difundido nas diversas áreas do conhecimento humano que, quando um país derroga sua própria identidade cultural, relega sua potencialidade e seu destino para serem ocupados por países e grupos hegemônicos, ainda assim a política cultural brasileira padece de problemas históricos, destacados em quatro principais tradições que permeiam a política cultural brasileira: ausência, autoritarismo, descontinuidade e redução orçamentária.

Mediante o distanciamento do programa constitucional da cultura, verifica-se na última década o esvaziamento da própria razão de ser das políticas culturais no Brasil, evidenciadas por uma série de deteriorações no âmbito da estrutura administrativa da cultura. Soma-se a tal cenário uma intensificada anomia das políticas culturais, em grande parte causada pela histórica problemática do contingenciamento de gastos e falhas da estrutura administrativa.

O esvaziamento das políticas culturais em prol do patrimônio histórico-cultural e a negação dos direitos relacionados não se deve propriamente à ausência de comandos normativos, mas deriva do fato de a gestão pública não executar o programa constitucional e sua política descritiva, seja por razões ideológicas, ou mesmo por deliberada redução orçamentária.

O fúnebre episódio do dia 29 de julho de 2021 nos lembra o incêndio de outro de nossos mais valiosos acervos históricos, culturais e educacionais: o incêndio do Museu Nacional, em 2018. Mas o descompasso da execução das políticas culturais não se restringe à tais episódios. Nos últimos anos, o país teve parte de seu patrimônio histórico queimado em pelo menos 9 grandes incêndios, que consumiram prédios que guardavam acervo com valor artístico, histórico e científico: o Teatro Cultura Artística (2008); Instituto Butantã (2010); Memorial da América Latina (2013); Museu de Ciências Naturais da PUC de Minas Gerais (2013); Centro Cultural Liceu de Artes e Ofícios (2014); Museu da Língua Portuguesa (2015); Cinemateca Brasileira (2016), o Museu Nacional (2018) e agora, novamente, a tragédia anunciada da Cinemateca, que ano passado viu parte de seu acervo ser perdido por uma enchente.

Anunciada porque, de forma similar ao Museu Nacional, que sofreu sucessivos cortes orçamentários e falhas estruturais no âmbito administrativo de repasse de verbas e administração do museu, a instituição enfrentava uma demora na retomada de sua administração, após uma série de mudanças realizadas pelo governo de Jair Bolsonaro, e estava institucionalmente abandonada. Portanto, era ao menos de se esperar que tal política planejada de esvaziamento cultural culminaria em uma perda dessa natureza.

Na ocasião do incêndio do Museu Nacional em 2018, seu então diretor Alexander Kellner chegou a afirmar serem necessários R$ 300 milhões, investidos ao longo de pelo menos uma década, para executar o Plano Diretor do museu. Sob a lembrança de que o último presidente a visitar o museu foi Juscelino Kubitschek (1956-1961), entoou que o Brasil desconhece a grandeza e riqueza do museu. Caso contrário, não deixaria que o Museu Nacional chegasse neste estado. Essa origem central do problema novamente protagoniza um alarmante risco ao patrimônio histórico-cultural e a identidade brasileira.

Trata-se do novo incêndio e da própria manutenção do funcionamento da Cinemateca Brasileira, que ano passado estava ameaçada de ter suas atividades encerradas e já indicava um grave risco de um novo incêndio, desta vez em seu acervo. E assim foi.

A partir do Clube de Cinema de São Paulo, a Cinemateca Brasileira foi criada em 1940 por uma série de nomes renomados na cultura brasileira, dentre eles Paulo Emílio Sales Gomes. Até ano passado, era gerida pela Fundação Roquete Pinto (ACERP), mediante contrato celebrado e renovado, com prazo de duração de mais de duas décadas e que envolvia a operação da Cinemateca e da TV Escola, emissora que também é mantida pela Fundação.

Por esta razão e com o objetivo de assumir a programação da TV e recompor seu quadro diretivo, o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, que acreditava ser a emissora pública e concessionária do Governo Federal, rescindiu o contrato em dezembro de 2019. A decisão afetou a Cinemateca, um dos maiores órgãos de acervo de cinema e audiovisual da América Latina, posto que incluída no aditivo do contrato, cogitando-se antecipar a rescisão do contrato de gestão que vigoraria até 2021. A rescisão isentaria o Governo de arcar com os ônus contratuais, o que implicaria na necessidade de a ACERP demitir um quadro de funcionários com ampla experiência de décadas de serviço prestado em prol da Cinemateca e da cultura do País, responsáveis pela manutenção do acervo e patrimônio do audiovisual brasileiro.

O governo federal devia, até abril de 2020, cerca de R$ 11 milhões à cinemateca referentes aos anos de 2019 e 2020. Em 2019, foi efetivamente pago à ACERP R$ 7,5 milhões dos R$ 13 milhões devidos. Somente naquele ano, somadas as pendências de períodos anteriores, a dívida totalizava o montante de R$ 9 milhões. Em paralelo à indefinição do pagamento devido e como reflexo da rescisão contratual, o Governo Federal buscou, até o primeiro semestre de 2020, executar a decisão arbitrária de fechamento das atividades da Cinemateca Brasileira. A medida se estenderia até o final de 2020, período em que as atividades seriam definitivamente absorvidas pela Secretaria Especial de Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo.

Em flagrante paralização formal das atividades, a ACERP manteve um quadro de funcionários mínimos para a manutenção do local, ainda que sem recursos e contratualmente destituída da administração da instituição. Finalmente, em dezembro de 2020, as atividades de administração provisória e em caráter emergencial da Cinemateca foram absorvidas pela Secult, que perduraria até março de 2021, prometendo anunciar o nome da nova entidade que administraria a Cinemateca. A promessa era que a nova gestão recontrataria os cerca de 40 funcionários especializados em preservação, documentação, pesquisa e tecnologia da informação, que auxiliavam há anos na Cinemateca através da ACERP.

Importante sublinhar que a paralização das atividades e a indefinição do pagamento e da transição de órgão que administra a Cinemateca ocorreram em meio à profunda crise sanitária e econômica da COVID-19.

Ainda que finalmente em agosto de 2020 a União tenha retomado parcialmente a administração do espaço, com a celebração de contratos de manutenção de alguns serviços (higiene, segurança e climatização do acervo), e quitou a dívida de energia elétrica, essencial para a preservação dos rolos e acervos, a cinemateca ficou por mais de um ano sem repasses e com sua paralização das atividades. Na época, já havia um alto risco de incêndio no local, uma vez que corria-se o risco de corte de energia, implicando na interrupção da refrigeração da Cinemateca, que funciona 24 horas, e o material fílmico dos rolos no local é altamente inflamável por autocombustão, quando incidido em temperatura não adequada. Na ocasião, era ainda iminente o risco de perda do corpo de bombeiros civis no local, ante a falta de pagamento e até a própria segurança do local.

A ALERP já tinha manifestado tal alerta em comunicados, carta aberta e ofícios, ressaltando que a questão não era restrita apenas à energia elétrica para manter a refrigeração, sendo imprescindível que se mantivesse uma análise técnica permanente para garantir a segurança do acervo.

Não se sabem ainda as razões desse novo incêndio, que ao que indica não foi causado pela autocombustão derivada má manutenção no local. Ainda assim, é cristalino o abandono recorrente da instituição por parte do órgão público, que segue na demora de indicação de Organização Social (OS) para administrar a instituição com a devida atenção e recursos satisfatórios e compatíveis ao maior acervo cinematográfico da América do Sul.

O descompasse gerado pela má administração do governo federal para a pasta acarretava não só uma ameaça de incêndio como também criava entraves ao mercado cinematográfico e desenvolvimento do setor, segmentos nos quais a Cinemateca cumpre funções essenciais. Prova disso era que, até o ano passado, em reunião realizada com o Subsecretário do Audiovisual (SAV), a Fundação enfatizou que havia mais de 150 pedidos de empresas, cineastas, pesquisadores, emissoras de TV, proprietários de filmes, entre outras solicitações, para serem atendidos pela Cinemateca.

A ameaça e a tendência do fechamento da Cinemateca até o final de 2020 era – e permanece sendo, ante a suspensão de uma efetiva administração e operação da instituição –, de minguar o anêmico setor audiovisual brasileiro, que agoniza sobretudo neste período de crise gerada pela pandemia do novo coronavírus, mas que continua trabalhando e conta com a Cinemateca para fornecer o material necessário para edição e finalização das produções. Tal entendimento, do qual compartilhamos, é ancorado pelo setor audiovisual, que alerta o preenchimento da lacuna de produções nacionais pelas produções estrangeiras. Na declaração do diretor brasileiro Daniel Rezende: “A Cinemateca sempre teve uma enorme importância para a produção audiovisual do país. Se essa indústria não for incentivada, nós vamos acabar consumindo apenas os produtos de fora”.

A freada abrupta ainda ocorre no contexto em que, antes da pandemia, a atividade ensaiava uma retomada. Após dois anos de quedas consecutivas, o número de ingressos vendidos em cinemas do país tinha voltado a subir em 2019. Chegou a 174,6 milhões, alta de 6,8% em relação à 2018. O embalo, entretanto, é em grande parte originado dos filmes estrangeiros, que ampliaram a audiência em 8,3%. As produções nacionais — que são auxiliadas de diferentes maneiras pela atividade da Cinemateca — amargaram queda de 1,6%. Em 2019, foram 211 lançamentos, ante 253 em 2018, segundo dados da Ancine. A razão pode ser, sobretudo a escassez dos patrocínios de estatais e políticas de fomento público para o setor.

A Cinemateca abriga e preserva um patrimônio audiovisual imprescindível para a compreensão da cultura e história brasileira dos últimos 120 anos, sobrevivendo para a sociedade brasileira e para o mundo graças a um já reduzido quadro de trabalhadores, com inquestionável expertise voltada para a própria instituição.

Seu acervo é responsável pela preservação de mais de um milhão de documentos e obras do cinema nacional, da televisão brasileira (como TV Tupi), futebol (Canal 100), Mazaroppi, filmes das expedições do Marechal Rondon e da FEB (Força Expedicionária Brasileira), além de roteiros originais de escritores brasileiros como Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Jose Louzeiro. O acervo conta com filmes das companhias ferroviárias do começo do Século XX; registros da história do Brasil e diversos materiais do Estado Novo, como os cinejornais com Getúlio Vargas e registros domésticos do início do Século XX, desde quando chegaram as primeiras câmeras no Brasil e filmes relativos à revolução industrial brasileira.

Há um total de cerca de 300 mil rolos, incluindo de diretores renomados no cinema brasileiro e no mundo, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Alberto Cavalcanti, Humberto Mauro. Há ainda a preservação de filmes de grandes e históricos estúdios cinematográficos brasileiros, como a Vera Cruz e a Atlântida, além de filmes mais recentes, que mostram a transformação do espaço urbano em São Paulo, a construção de Brasília e tantos outros momentos importantes da história do Brasil. A lista é infinita e faz com que se persista o direcionar da atenção às possíveis intenções por trás de decisões políticas que afetem a cultura atualmente, em um momento em que ela sofre tantos ataques e é impactada profundamente pela crise econômica e sanitária.

Indo além e fazendo um balanço da recente política cultural brasileira, temos que a problemática central não é circunscrita ao financiamento da produção cultural e a preservação de acervos do patrimônio. É, em suma, contaminada por relevantes falhas na democratização e popularização do acesso ao patrimônio, seja pela formação de público, promoção de atividades ou pela própria descoordenação das políticas e programas culturais, dentre tantas outras razões inesgotáveis à análise crítica suficiente ao desafio.

Mais do que nunca, o aniquilamento das políticas culturais, aprofundado pela crise da COVID-19 e da desastrosa e neoliberal gestão do governo Bolsonaro, evidenciam que a preservação e o acesso ao patrimônio cultural deveria ser uma questão de primeira ordem do Estados brasileiro. A questão cultural não é uma questão de governos, que podem, pelo bel prazer, desintegrar as políticas culturais e nossas instituições, museus e acervos históricos, artísticos e culturais, mediante cortes e impensadas decisões administrativas. A questão cultural é, constitucionalmente, uma questão de Estado, incumbido do dever de desenvolver e executar programas de proteção, apoio e fomento à cultura para atingir a efetivação dos direitos culturais e do desenvolvimento, sem privar seu povo de sua memória.

O cenário apocalítico da Cinemateca Brasileira e da cultura brasileira como um todo não resulta simplesmente de uma inconsequente omissão do Estado, mas de um esvaziamento das políticas culturais que deve ser visto do prisma de uma escolha política de relegar a cultura a uma posição secundária na vida humana, sobretudo mediante o aniquilamento das riquezas da cultura nacional, da potencialidade criativa dos indivíduos e da identidade cultural brasileira. Nos privam de produzir cultura, de preservar nossa memória e de nos nutrimos das artes e obras cinematográficas que tivemos a honra de um dia produzir. Fazem com que sejamos menos do que poderíamos ser. Quem ganha e a quem interessa o apequenar do povo brasileiro, que não pode reconhecer-se e valorizar-se à altura do que realmente é?

Em momento de enfraquecidas expectativas é que recordamos a indignação de gênios da cultura brasileira, cujo acervo ainda está presente, com sorte, na Cinemateca: Glauber Rocha. Este que, nas palavras do inventivo pensador da cultura Darcy Ribeiro, nos deixou a herança da indignação: indignado com um mundo tal qual é. Indignado porque, mais do que nós, podia ver o mundo que vai ser, que há de ser. Ou ainda neste enfumaçar da criatividade humana, que não pode germinar e expandir, retomemos a formação daquele povo brasileiro. Aquele que João Gilberto dizia não ter a consciência de si mesmo. Mas que há de ter. Terá, quando deste breu utilizarmos a capacidade criativa que temos, para enfim transformarmos a realidade brasileira, e pela política retomarmos às rédeas de nosso Brasil de primeira.