Uma crônica do identitarismo no carnaval: Cida, Janja e Davi

Uma cronica do identitarismo no carnaval Cida Janja e Davi
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Por Carlos Sávio G. Teixeira – A animada política brasileira não deu folga nem no carnaval. A operação da Polícia Federal na semana anterior à festa de Momo acabou gerando infindáveis matérias jornalísticas e incontáveis análises sobre o significado e o alcance dos episódios, os passados e, agora, os futuros. E tudo isso acabou invadindo as redes sociais e concorrendo com notícias acerca de blocos, desfiles e as deliciosas marchinhas carnavalescas – estas últimas que já foram vítimas da sanha censora do identitarismo.

Em alguns grupos de WhatsApp o clima noticioso rapidamente se viu capturado por manifestações identitárias. Num deles, um artigo do jornalista Elio Gaspari, intitulado O Golpinho de Bolsonaro, gerou discussão por causa da referência à esposa do General Vilas-Boas, que ficou famoso na cena política ao twittar sobre uma deliberação do STF acerca do então ex-presidente Lula, em 2018. Gaspari revela diálogo do também General Braga Neto, candidato à Vice-Presidente da República na chapa encabeçada por Bolsonaro no último pleito, no qual Dona Cida, mulher do General twitteiro, participou de uma reunião com o então Comandante do Exército Brasileiro e teria se aborrecido com o desfecho do bate-papo. Citações à Dona Cida, mesmo ela estando do lado dos “golpistas”, geraram “gatilhos” de sororidade nos identitários.

Em outro grupo de WhatsApp, uma outra notícia, indiretamente ligada à atual esposa de outra figura pública, Lula, também chamou a atenção. A matéria dava conta de que um dos filhos de Lula reclamou da subtração da referência feita pelo pai à ex-esposa, Dona Marisa, numa publicação no twitter do Presidente. O método “stalinista” de sumir com personagem fora atribuído à atual esposa de Lula, Janja. Foi o suficiente para o identitarismo dar as caras. Misoginia para lá, machismo para cá, até chegarmos no mal falado “patriarcalismo” (exalando no ar o déficit sociológico ao se considerar essa forma de dominação num regime claramente capitalista!).

A primeira dama, que já fora apelidada pelas más línguas de primeira ministra, por causa de sua constante aparição ao lado de Lula em atividades do governo, foi objeto de um curioso comentário de uma caixa do mercadinho que frequento toda semana. Ela é eleitora de Lula, mas evangélica “assembleiana”, como se identifica (referindo-se à denominação Assembleia de Deus). Ao ouvir um cliente na fila criticar Lula, que aparecera numa reportagem na TV ao lado de sua esposa Janja, a caixa sussurrou baixo, numa tentativa desajeitada de defender o presidente: “essa mulher atrapalha Lula”. Pouco tempo depois, eu havia sido procurado por um amigo jornalista pedindo indicação de colegas acadêmicos que poderiam ser entrevistados para uma matéria que faria sobre política e religião. Indiquei os sociólogos Brand Arenari e Christina Vital da Cunha, dois grandes especialistas no tema. Mas me permiti uma boutade, diante da informação de que uma das questões a ser abordada na matéria, seria o que Lula poderia fazer para se aproximar dos evangélicos, ao que brinquei: “se separar de Janja”.

Os dois episódios não permitem passar desapercebida a desenvoltura com que mulheres atuam politicamente hoje no Brasil e, nos dois exemplos aqui examinados, atualizando uma das principais relíquias da sociedade tradicional brasileira, a mistura das dimensões privada e pública. No caso de Dona Cida, causa estranheza que ela participe de reuniões da cúpula do Exército Brasileiro. Mesmo se sabendo que o encontro não era para tratar de problemas “técnicos” ou “profissionais” que, em tese, deveriam ocupar os militares. No caso de Janja, a circunstância também envolveu a dimensão privada por referir-se a outros membros da família de Lula, embora a censura supostamente “feita por ela” à Dona Marisa, fosse relativa a uma manifestação política. Seja como for, as duas situações revelam algo que, se o identitarismo não fosse tisnado pelo negativismo avinagrado, em tudo enxergando veneno e aleivosias, o “matriarcalismo” à brasileira poderia ser um fecundo objeto de tematização.

Aqueles que pensam, entretanto, que somente a política perturbou os festejos momescos estão enganados. O reality show BBB, transmitido pela TV Globo, também desviou a atenção da folia carnavalesca. Na atual edição, a 24ª., não temos aquilo que o filósofo Wilson Gomes descreveu como sendo “a carnificina da guerra identitária da nova esquerda tribal”, referindo-se à versão do programa de três anos atrás – um verdadeiro laboratório das práticas bizarras do militantismo aloprado. Agora, ao contrário, a principal figura até este momento é Davi, um motorista de Uber de Salvador. As quatro subcelebridades que participam do programa atual, a modelo Yasmim Brunet e os cantores Wanessa Camargo, Rodriguinho e Mc Bin Laden, elegeram o jovem pobre e negro baiano “para cristo”. E a visão deles sobre Davi influenciou a maioria dos membros do jogo (inclusive os outros pobres, pretos e mestiços) que iniciaram um boicote sistemático ao baiano.

Davi é um retrato sociológico característico do que Jessé Souza analisou no livro Os Batalhadores Brasileiros. Ele tem uma formação sociocultural precária e rude para os padrões da classe média formalmente escolarizada (fala alto, às vezes se excede, faz comentários “politicamente incorretos” e tem personalidade forte). Não faz o tipo de “negro descolado”, típico do ativismo identitário. Mesmo sofrendo assédios constantes, jamais se colocou na posição de vítima. Embora seja uma pessoa urbana, está mais para o feitio do sertanejo, descrito por Euclides da Cunha, em seu brilhante livro Os Sertões. E como tal, Davi tem recebido, aparentemente, o apoio da maioria dos brasileiros que acompanham o programa. Sintomaticamente, os identitários não se identificaram com Davi (embora acusações de que sofrera racismo da modelo Yasmin Brunet e da cantora Wanessa Camargo tenham sido feitas por ativistas anti-racistas). Ele é um sujeito com origem e “habitus” de dominado, termo usado e abusado pelo jargão militante, mas cuja personalidade e comportamento é de batalhador.

Os batalhadores, talvez o tipo sociológico predominante na sociedade brasileira contemporânea, geralmente encaram os bloqueios e as humilhações que a vida dura destina a pessoas na condição de Davi, como elementos metabolizadores dos desafios a serem superados com vigor e força – física e mental. A sensibilidade, a energia e as experiências destes batalhadores contrastam radicalmente com as dos grupos identitários – e a de seus imaginários representados. E este contraste tem sido mobilizado de maneira insidiosa nas guerras culturais que tem orientado as nossas disputas eleitorais. Em outro texto, sem os gracejos que o período carnavalesco permite, escrito em parceria com o filósofo Tiago Medeiros, intitulado “Contra a mediocridade, contra o identitarismo”, analisamos os altos custos intelectuais e políticos da agenda identitária no Brasil. E propomos uma alternativa, seja na forma de entender os problemas nacionais, seja nos meios de enfrentá-los.

Por Carlos Sávio G. Teixeira

Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).