Anacronismos na polêmica sobre a sexualidade do Alexandre, o Grande, da Netflix

Anacronismos na polemica sobre a sexualidade do Alexandre o Grande da Netflix
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Nova série da Netflix retrata Alexandre o Grande como gay, o que vem gerando certo debate nas redes. Lembro que o péssimo filme de 2004, de Oliver Stone — um dos poucos na vida em que tive de me contar para não ir embora do cinema –, e estrelado por Colin Farrell, tomou esse caminho e enfatizou o que entendia como bissexualidade de Alexandre. Bissexualidade, mas na obra a preferência é por homens.

Por que é tão importante para Hollywood e para a sociedade ocidental retratar Alexandre, o Grande, como homossexual? Todo o nosso entendimento histórico sobre a Grécia Clássica aponta a inexistência de uma ”identidade gay” no período.

As noções de sexualidade daquela civilização eram bastante diferentes das nossas, e em muitas circunstâncias era permissível e naturalizado que pessoas do mesmo sexo tivessem relações. Segundo Foucault, o sexo expressava certa subordinação pessoal, de modo que aquele que era penetrado se colocava em posição ”feminina”, ou seja, de menor virilidade e independência diante daquele que penetrava.

Apesar disso, os gregos e macedônios esperavam que um homem casasse e formasse família. E como não existia ”casamento gay”, já que não existia identidade gay, o casamento era sempre homem e mulher.

Nada nas fontes sobre Alexandre indica que ele era gay, homossexual etc. Os contemporâneos ficavam surpresos é com a capacidade que ele tinha de controlar os próprios impulsos sexuais, o poder de não agir por impulso do desejo. O que, na mentalidade grega, era considerado uma virtude, e portanto sinal de virilidade e masculinidade [a virtude, naquela civilização, estava associada, principalmente, à macheza].

Não há dúvida que Alexandre teve relações com pessoas do mesmo sexo, provavelmente sempre como o ”macho da relação”, caso contrário ele comprometeria sua posição e seu status de masculinidade, virtude, virilidade, sua figura ”solar”. Era a cultura de seu tempo. Mas menos dúvidas ainda existem que Alexandre casou três vezes, que teve filho legítimo, e outros tantos ilegítimos com suas diversas concubinas.

Ou seja, a ideia de que ele ”preferia homens” é só fantasia. Um Alexandre gay é, no máximo, um anacronismo.

Mas por que é importante para Hollywood retratá-lo dessa maneira? Lembro que o Rei da Macedônia é praticamente o fundador da civilização helenista. Em muitos aspectos, essa civilização é um desdobramento do Mediterrâneo, mas as conquistas de Alexandre difundiram de tal modo a cultura, a religião, a arte, os costumes e a mentalidade grega, que transformaram as regiões ao redor daquele grande mar. A cultura urbana de todas aquelas regiões, que uniam três continentes distintos, foi helenizada.

Esta herança nos une, em muitos aspectos, até hoje, seja através de instituições, da literatura, métodos de conhecimento, ou elementos religiosos. A Europa, o Oriente Médio, a África do Norte formam núcleos civilizacionais que se relacionam diretamente com o cosmopolitismo concretizado pela habilidade militar e pelos horizontes de Alexandre, o Grande.

Talvez esteja aí o ímpeto de representar um guerreiro e estrategista, um dos ‘filhos dos deuses’ do mundo antigo, e um governante de uma cultura fortemente patriarcal como um gay. O desejo, aparentemente incontrolável, de mentir sobre algumas de nossas origens com o intuito de retirar do engano alguma forma de bem. Mas que bem pode sair disso?