O modus operandi identitário quanto à temática racial

O modus operandi identitario quanto a tematica racial
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Tenho dito que os dois meios de propagação da corrente de opinião identitária no país são a academia e a imprensa. Nesse texto, foco no modus operandi da parceira entre ambas as elites identitárias no que diz respeito a uma temática sensível: a racial. Vejamos.

Numa mesma semana do mês de novembro de 2022, os cabeçalhos de um importante portal de notícias registraram: (a) “Policiais militares que agrediram homem negro no DF são afastados”; (b) “Injúria racial: homem recusa abordagem de policial negro no DF, diz PM”. Notem que a especificidade da cor pesa apenas no caso referente à condição de vítima dos eventos anunciados. A polícia da mesma unidade, o DF, aparece implicitamente como racista em uma matéria, ao passo que, de forma explícita, um policial é racialmente injuriado em outra. O destaque não é incidental e nem se refere apenas à polícia do DF. Ainda na mesma semana, veiculou-se a notícia: (c) “Uma pessoa negra foi morta pela polícia a cada 4 horas em oito estados do país no ano passado, diz pesquisa”. São todos fatos? Sim. Mas as ênfases não são inocentes.

Na mesma semana, um caso de alta repercussão nacional é veiculado por todos os jornais e portais. Nós o conhecemos: Uma mulher negra que fez carreira como pastora evangélica e enveredou para a política como deputada federal pelo estado do Rio de Janeiro foi sentenciada como mandante de um homicídio triplamente qualificado. Destaco as palavras correspondentes ao fato: “mulher negra”, “pastora evangélica”, “condenada por mando de homicídio”. Mas o que o mesmo portal havia registrado meses antes da consumação da sentença – que foi rememorada na mesma semana em que os demais episódios acima ocorreram – foi: “Condenada por morte do marido, pastora Flordelis pede autorização para casar na cadeia”. A assassina não é retratada como uma “mulher negra”, mas como uma pastora evangélica que tem a cara de pau de querer casar após o assassinato do próprio marido. O escárnio contra o fator ser evangélico, como contra, em outros casos, integrar uma corporação policial, é inteiramente liberado e até recomendado nessas redações. Elas tratam essas instituições como componentes ou sócias de estruturas opressoras. A negritude e o paganismo são romanticamente preservados da maldade. Maus são cristãos e não-negros. Mas, se forem negros neopentecostais ou da polícia, é como se fossem também brancos.

Nenhum intelectual sério haverá de negar a existência de racismo no Brasil, inclusive nas polícias, e tampouco negará ser bem-vinda a ampliação de uma sensibilidade antirracista em nossos costumes e crenças. Uma sensibilidade assim abriria as perspectivas da brasilidade para experiências que ainda não vivemos, permitiria a descoberta de como florescer como parte de um povo que associa sua riqueza cultural à sua diversidade, intensificaria as relações entre pessoas, famílias, vizinhanças, comunidades, cidades etc. de forma horizontal, sem pressuposições de superioridade. Seria uma sensibilidade benfazeja contra um conjunto de visões e valores altamente custosos à humanidade: o racismo.

Mas parece que esse não é o objetivo e nem o que está em jogo entre os intelectuais da imprensa e da academia. É notável que com frequência a campanha dita antirracista não seja destinada a inventar um país novo, mas a consolidar uma revanche. A justiça social presumida nas falas antirracistas pelos porta-vozes mais exitosos é uma mercadoria. Esses porta-vozes gozam de grande prestígio e vivem do luxo da oferta desse produto. Em nome da luta antirracista, são criadas escolas privadas, editoras e lojas de roupa. São escritos livros infantis e didáticos, são dirigidos filmes e séries. São abertos editais para destinar verbas volumosas a produções culturais sobre a resistência da negritude. São fabricadas estatísticas em centros de pesquisa. São empoderadas bancas de heteroidentificação. A luta antirracista não é um empreendimento contra o racismo, é em favor da luta. O que fariam esses idealistas que lucram com o seu ideal, como diria o Millôr Fernandes, no dia em que o racismo acabasse? Melhor sustentar que o racismo jamais terá fim.

Nos portais de notícias que navegam na maré identitária, o que se revela é um uso arbitrário do fato do racismo para fabricar a notícia de escândalo, a chamada chocante, a linha fina “lacradora”, que é, ao mesmo tempo, alvissareira ao caixa do Portal e à autoimagem moralmente imaculada do jornalista que a publica. Ratifica-se a segregação entre grupos que a elite cultural das comunicações deveria lutar para superar. Se as notícias evidenciassem as ambiguidades de todos os envolvidos em todos os casos relatados nas matérias, em vez de produzir uma narrativa fictícia e binária de nossas contradições, encararíamos os nossos problemas de frente. Voltando ao ponto inicial, os evangélicos e policiais negros, que tiveram em sua fé e em sua corporação um ambiente de salvação contra sua origem social, inclusive repleta das chagas do próprio racismo, sentem a fissura produzida por essa romantização midiática e não é ela o que os sensibiliza a enfrentar o racismo brasileiro.

Permitam-me um comentário pessoal para articular o texto. Quase toda a minha vida escolar, eu passei numa escola pública: o Colégio da Polícia Militar da Bahia, uma instituição cujo quadro docente pertence à rede estadual de ensino, mas cujos orçamento e administração não são da Secretaria de Educação, mas da de Segurança. Como em todas as escolas públicas baianas, a massa de alunos era avassaladoramente negra e mestiça. Também o era o staff de policiais de todas as patentes que trabalhavam por lá. Eu me acostumei a ver tenentes, capitães, majores e coronéis negros, exercendo poder, ostentando suas medalhas nas fardas, emitindo ordens e sendo temidos e respeitados por todos. Entre nós, a instituição da polícia era um ambiente de ascensão social.

Com o passar do tempo, vi meus colegas negros, mestiços e pobres, como eu, darem o melhor de si para ingressar na carreira da polícia, onde teriam lugar, onde poderiam almejar a mesma condição daqueles respeitados oficiais que cumprimentávamos obrigatoriamente nos pavilhões com o sinal de respeito das corporações militares. Todos queriam galgar a estabilidade de uma remuneração fixa e uma segurança contra a comunidade hostil em que eventualmente viviam. Hoje, eu vejo com pesar alguns de meus ex-colegas, mestiços como eu e já policiais, orgulhosos ao invadir periferias em missões à caça da juventude negra e mestiça envolvida com tráfico – o tráfico do qual puderam se livrar por terem entrado na instituição que os acolheu e lhes deu dignidade, a polícia. Assimilo a contradição como o que ela é: uma torturante e perturbadora contradição.

Por outro lado, nunca tive um professor negro e quase não tive qualquer mestiço na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, instituição em que estudei da graduação ao doutorado e na qual ouvi todo tipo de discurso acusatório contra o racismo da PM. É na Universidade que se constrói a base científica e o romance fictício e preconceituoso com relação à polícia. É pela imprensa que os capítulos desse romance se espalham. É contra a Universidade e a imprensa que se forma uma consciência crítica e letal no interior corporações militares.

Não falo isso para embasar essa outra ficção em voga em nosso debate público, a dos bolsonaristas, que desconhecem inteiramente o que se passa nas salas de aula das universidades e que criam uma animosidade feroz e ignorante em relação aos esforços reais e sinceros que são envidados no ambiente acadêmico para produzir saberes variados sobre a sociedade em que vivemos. Mas vejo o itinerário das ideias identitárias de esquerda e de direita – que são meras reações à cultura progressista de vernáculo – com grande preocupação.

Jornalistas e demais profissionais da comunicação, que pensam se beneficiar desse jogo em nome da luta contra uma estrutura opressora, intensificam a sensibilidade deflagrada pelo vocabulário intelectual das universidades do Atlântico Norte requentado nas universidades brasileiras. A popularização do vocabulário identitário é consequência direta de sua adoção e divulgação pela grande mídia e chega nos lares das mais simples das pessoas confusamente, tanto como revelação de um problema real que as mortifica, quanto como modismo excêntrico. Mas, uma vez que o conluio das elites identitárias faz aquela terminologia acadêmica possuir rápida disseminação, o que se perde é a capacidade de formular coerente e pedagogicamente os nossos problemas sociais em chaves globais que transcendam o atalho simplista que opõe identidades oprimidas e estruturas opressoras, ensejando, na prática, que indivíduos enxerguem a si como vítimas constantes e a todos os outros como potenciais algozes.

Para não ficarmos apenas no plano da reflexão sociológica, convém partir para um exemplo que o leitor rapidamente reconhecerá. Uma terminologia tem sido reiterada, sobretudo nesses contextos em que a imprensa reproduz acriticamente a tese de que PMs são racistas. Trata-se da combinação dos conceitos de branquitude, racismo estrutural e privilégio branco. Reconheçamos: a equação visa atender uma só coisa, o fim do racismo. E, nesses casos, tem uma aplicação: o setor da segurança pública. O nosso drama é que, em matéria de problemas sociais, as dificuldades estão quase sempre nos meios, não nos fins.

Branquitude é um conceito que remete a intelectuais dos anos 30, mas que vingou na academia americana nos anos 90 e escorregou para a América Latina nos anos 2000 em diante. Hoje, o nome de um dos pais da noção, o humanista Franz Fannon, é festejado como maior articulador da luta antirracista, aparecendo ao lado da Black Panther Angela Davis, que figura na mesma franja de batalha do marxista Oliver Cox, criador da noção de “racismo estrutural” em livro de 1948. Apesar da imensa diferença entre os personagens e suas obras, a miscelânea chega à imprensa com sua pílula dourada pela intervenção da intelectualidade colonial identitária da academia brasileira. E o resultado é a interpretação de certos fenômenos pontuais que vale explorar.

Não bastando vaticinar a polícia como instituição racista, o empilhamento daquelas noções verbalizadas pelos identitários sugere que há um privilégio branco tácito em diversas circunstâncias sociais que, bem examinadas, revelariam que os brancos não precisam pensar que são brancos, ou seja, reconhecer sua branquitude, para viver em sociedade, e isso seria reflexo do próprio racismo que a estrutura. Um branco não precisa se preocupar com a roupa que veste ou se calçou sapatos ou sandálias ou com o corte de cabelo que adota, pois a condição de ser branco não lhe é um problema prévio que o obrigasse a um esquadrinhamento antecipado de si mesmo quanto ao que será refletido nos olhos dos outros. Um negro ou negra tem que se preocupar com o que veste, com o que usa e até se anda ou corre em certos contextos – a possibilidade de ser baleado pela polícia, só por desatar a correr, na imaginação de um negro, é sempre real, aguda e assombrosa.

Novamente, não há falsidade na formulação da tipologia de brancos e negros à luz dos fatos. É esse, sim, um quadro real do Brasil. Mas dizer que os brancos têm privilégio, o privilégio opaco à branquitude que lhes é insuspeita até a revelação por fannonófilos e fannonólogos, é dizer que eles, os brancos, escapam à regra geral da vida social em determinados domínios e contextos. Explico.

Os privilégios são privilégios porque não são direitos e são brancos porque não são usufruídos pelos não-brancos. Os que vivem no mundo real, o mundo desconhecido pela branquitude, são os que mais o conhecem. Só que admitir que há abordagens policiais inadequadas, expressamente racistas e, no limite, assassinas, contra cidadãos negros equivale a reconhecer que há um privilégio gozado por brancos que nunca passam por tais situações? É privilégio não ser assassinado por um policial que abusa de poder em uma abordagem? Se a resposta for sim, o que se está afirmando é que a própria existência da polícia é letal à vida em sociedade e não apenas a não-brancos. Se a resposta é sim, esse é o recado de que o normal, a regra, é ser assassinado pela polícia, e a exceção, a dos afortunados portadores do privilégio, é reservada aos poucos untados pelas estruturas opressoras.

O que esse esquema explicativo impede de ver é que não há privilégio dos brancos em gozar seus direitos, como não há ônus em exercer seus deveres. Se falta direitos a negros, não é porque sobra privilégios a brancos. Recuperar a noção de privilégio para designar a situação dos brancos no Brasil contemporâneo – e em qualquer democracia constitucionalizada – não é revelar a essência estrutural por trás de parte das contradições sociais que vivemos por herança da escravidão. O que o vocabulário identitário racialista propõe neste caso é puro embuste. Excita uma parte tanto quanto desorienta o todo.

Se o que se quer é uma sociedade menos desigual racialmente, não se deve começar por negar a existência do que promove, ainda que precariamente, a igualdade, a saber, o Estado de Direito: que submete tudo à lei. Mas a adesão irrefletida e irresponsável desse combo sonoro e sedutor, racismo-estrutural/branquitude/privilégio-branco, é a negação do Estado de Direito como fato e como valor.

Ao fim e ao cabo, a confusão identitária é forjada por ardil. O mesmo grupo de indivíduos cultos que sustenta a existência de privilégio branco, negando, com isso, o Estado de Direito, recorre – e corretamente – aos Direitos Humanos, em face do uso de força desproporcional pelos policiais, reconhecendo nele um refúgio. No discurso militante e na formulação teórica, o elogio à denúncia contra o tal privilégio segue promissor e fertilizado por todas as barbaridades que as polícias costumam, sim, cometer contra negros e mestiços brasileiros.

O que quero destacar é que esse embuste tem por efeito a autoelevação moral e a prosperidade remuneratória da elite identitária na academia e na imprensa, unida à desorientação do país quanto a seus problemas e rumos. Por trás desse empreendimento há uma mercadorização da justiça, entretecida ao reconhecimento de identidades de entes sociais sujeitos à opressão. Dizer que alguém tem privilégio é orientar o que se deve extrair de um grupo de indivíduos. Ao passo que dizer que alguém não está usufruindo de seus direitos é indicar que há indivíduos que têm a sua cidadania esquartejada por práticas e até por instituições. Lembra do portal mencionado no início? Em meados de 2020, ele posta uma matéria curta e sem substância, como de costume entre as assinaturas identitárias, com o título: “O que é o privilégio branco e por que todo mundo é beneficiado ou prejudicado por ele.” Dá para continuar levando essa cretinice a sério?