Grupo teatral faz sucesso com peça anticomunista

Grupo teatral faz sucesso com peca anticomunista
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Por Maria Gonçalves de Almeida – Uma peça que retrata um grupo de revolucionários como idiotas alienados, isolados e perdidos no tempo. Que usa o nome de um grande poeta comunista só pra dizer que se deve esquecê-lo. Onde um comunista histórico reaparece retratado como um selvagem truculento. Tudo isso com uma vaga intenção de esquerda, com direito a pedido de voto em Lula no final do espetáculo. A peça sobre Maiakovski do Grupo Pano terminou agora sua primeira temporada no teatro Folias e é um pequeno sucesso, com ingressos esgotados e sala cheia.

“Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakovski que tive uma epifania sobre a revolução”, do Grupo Pano, abre com uma discussão sobre o tempo: um número musical indaga “o tempo, o tempo, o tempo” e suas qualidades, “o materialismo do tempo” e diz “chega de ficar atrás do tempo”. De um modo benjaminiano, os atores pedem que se atire contra o vidro dos relógios. Esse número emoldura a situação em que se transcorre a maior parte da peça: quatro integrantes da “Celula Revolucionária da Centésima quinta internacional”, uma de muitas piadas de gosto duvidoso, estão trancados em seu quartel general.

Esses 4 revolucionários planejam, com grande incompetência, a tomada do poder, para a qual não dispõem de meios. Uma maquete ridícula do Congresso Nacional é usada para evocar um ataque que, segundo eles, na ausência de armas, será feito usando peixe congelado, oferecido por Eusébio, “um membro do povo” que não aparece em cena. Seria cansativo descrever em detalhe a peça. É importante guardar o seguinte: os atores, que são cômicos muito bons, ganham risadas fáceis a partir de cada sinal e símbolo reconhecível de uma tradição revolucionária. É assim que, a cada uma das vezes que um dos atores grita “Camaradas”, o público já entende que é um sinal para o riso. É assim também com o Hino da Internacional, que é usado várias vezes, sempre como motivo para risadas, assim como a bandeira soviética e mesmo a palavra “povo”.

Brincando em seu plano de tomada do poder, as personagens evocam as agruras passadas pelos guerrilheiros que “acamparam em praias distantes”. A distância entre essa imagem heróica e a condição patética das personagens é a alavanca constante do riso no espetáculo. O grupo decide então que precisa de inspiração e faz a encomenda online, presumivelmente pela Amazon, de um livro de Maiakovski. Quando seu nome é dito, dois atores chegam carregando um estandarte, que faz do poeta uma figura de culto, meio religioso. Boa parte se passa à espera da chegada desse livro. Durante esse tempo, a inépcia e estupidez dos revolucionários seguem sendo comprovadas: chega um carteiro, a quem chamam de “querido companheiro trabalhador”, que entrega o livro errado. Uma pessoa ao telefone decide se juntar ao grupo, causando surpresa (“então alguém finalmente escutou nossas ideias”) e eles, por medo, não a deixam entrar.

A cena mais chocante talvez seja a da chegada de um revolucionário soviético do passado. Ele entra carregando a bandeira vermelha da União Soviética e para ele é cantada uma canção que o apresenta como “Dimitri, Dimitri guisadinho, ele vai fazer você de picadinho”. O referido Dimitri, vestido como um soldado soviético, não fala, exceto grunhidos, e usa uma máscara em que uma expressão raivosa é permanente.

Finalmente, quando é chegado o livro, os revolucionários lêem uma nota que diz ser “preciso ter plena consciência de que Maiakovski é totalmente intraduzível”, e por isso desistem de ler o livro. Aqui abro um parentêsis: na tradução feita por Boris Schnaiderman e os irmão Campos, Schnaiderman começa a apresentação enfrentando esse mesmo problema: “já se afirmou muitas vezes ser Maiakovski intraduzível, pois o emprego que ele faz do coloquial é tão específico, que seria vão qualquer esforço de reproduzir sua obra em outra língua (…) No entanto, justamente essa dificuldade representa um desafio que deve ser enfrentado”.

A consciência dos desafios que devem ser enfrentados é justamente aquilo de que carecem as personagens da peça, mas também o diretor e os atores. É assim que, diante de uma vaga mensagem sobre a intradutibilidade do poeta, eles desistem de lê-lo. É assim também que, retratando um grupo organizado de revolucionários como idiotas, eles desistem do planejamento, da organização e do trabalho político de grupo.

A peça tem o mérito de expor claramente sua visão política, por exemplo num breve monólogo em que se diz: “pensem que a Revolução parte de si, unicamente de si para si mesmo, (…) apenas a pulsão individual coletiva produz utopias”. É com essa ilusão individualista que os atores fazem comunhão com a platéia, garantindo muitos aplausos. Mais para o final, quando precisam, para encerrar a peça, justificar toda a encenação, eles reforçam seu espontaneísmo sem futuro: “planos não sacodem bandeiras, não carregam faixas”.

O antintelectualismo, componente tão importante da ascensão da extrema direita no Brasil, também faz uma participação especial, na fala final em que o poeta Vladimir Maiakovski, redivivo em cena, diz: “consegue-se mais energia para a Revolução comendo carne acebolada do que lendo livros” e arremata, desdenhando a geografia e a história: “nesse país de flechas, quilombos e favelas, a gente ainda precisa de Rússia? Da antiga Rússia?”. Fica claro que para o Grupo Pano, não.

É de se perguntar porque os atores e o diretor acharam conveniente criar uma peça anticomunista no Brasil de 2022. Devo dizer que são um grupo de artistas muito capazes, com domínio técnico invejável. Justamente por isso, estranha que tenham posto suas capacidades a serviço da veiculação de um conteúdo político tão desnecessário no momento. Com tantas personalidades risíveis no poder, porque ridicularizar a União Soviética? Não sei se os artistas do grupo sabem onde estão. Não sei se sabem que o anticomunismo é ferramenta de mobilização de um movimento neofascista que arrisca reeleger Bolsonaro. Me pareceu que eles fizeram uma peça sobre coisas das quais conhecem muito pouco. Mas é preciso também dizer: se o Movimento Brasil Livre, o famigerado MBL, tivesse capacidade de fazer uma peça de teatro, poderia usar pelo menos 70% da peça do Grupo Pano como sua. A correspondência objetiva entre uma mentalidade artística rasa e a nova direita ainda me surpreende.

É preciso falar sobre o anticomunismo espontâneo, e também o anti-intelectualismo, que grassam na classe artística. Como dissemos, a peça do Grupo Pano tem o mérito de, atacando diretamente a memória histórica da Revolução Russa, mas também das guerrilhas e dos revolucionários brasileiros – muitos dos quais pereceram ou foram torturados para que estes atores tivessem o direito de fazer esse tipo de peça – expor claramente sua posição. Mas sabemos que a influência pós-moderna mal digerida faz de um certo individualismo delirante, em que “A Revolução sou Eu”, a língua franca de uma massa de trabalhadores culturais que vive o transe de não se reconhecerem como tais. O anti-intelectualismo dessa posição é confortável, pois, se a revolução está dentro de nós, não precisamos ler nem aprender. Esse revolucionarismo para consumo privado não é senão a contraparte de um conformismo muito ativo, que se compraz em vilificar quem tenta ou tentou fazer alguma coisa. Afinal, retratar revolucionários como idiotas alienados só pode servir para que os alienados se sintam mais confortáveis. Nesse ponto, palco e platéia concordam.

Por Maria Gonçalves de Almeida