O governo deve ter medo do mercado financeiro?

O governo deve ter medo do mercado financeiro
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Em entrevista ao Estadão em 26 de novembro de 22, José Roberto Afonso, renomado economista ortodoxo e especialista em contas públicas de viés fiscalista, além de ser considerado o pai da Lei de Responsabilidade Fiscal, alerta que governo tem caixa de R$ 2 trilhões para combater especulação. A lembrança nos motivou a aprofundar um pouco mais a ideia e questionar: estaria o governo brasileiro nas mãos do “Mercado” (codinome para banca financeira)?

Vejamos…

1- O governo tem reservas cambiais no montante aproximado de US$325 bi. Esse é o valor que pode ser usado para crises cambiais, ou seja, falta de dólares por problemas nas contas externas brasileiras.

Para ser mais exato, há outras formas de fazer a gestão do câmbio como os swaps cambiais, que impactam o mercado futuro de câmbio usando R$, ou seja, sem a necessidade de gastar os US$ das reservas. Nesse sentido as reservas podem ser usadas apenas para interferência no mercado cambial à vista, deixando os swaps (que tem custos em reais) para atuar no mercado futuro.

Portanto, hoje o Br tem armas de sobra para administrar a volatilidade de nossa moeda e possíveis ataques especulativos contra ela. No entanto, bom lembrar que esse arsenal está nas mãos do BC “independente” e não do governo eleito.

2- Pouco comentadas mas também bastante importantes são outras reservas, as de liquidez em Reais do Tesouro Nacional. O chamado Colchão de Liquidez do Tesouro compõe a principal subconta da Conta Única do Tesouro (CUT). Hoje, segundo o relatório mensal da dívida pública federal (RMD) de outubro, esse colchão conta com R$ 1 tri em estoque, para ser usado exatamente na gestão liquidez do governo federal.

Por exemplo, se ele passa por alguma dificuldade de vender títulos da dívida em mercado, pode usar esse recurso para honrar suas obrigações, sem precisar vender dívida naquele momento.

O volume é gigante e daria conta de quase um ano inteiro de gasto federal sem precisar vender título algum em mercado, num hipotético cenário hostil.

3- Interessante notar que o colchão de liquidez do TN serve para gestão das contas públicas internas (gastos, tributação..) enquanto as reservas cambiais servem para gestão das contas externas (exportações, importações). Mas as duas guardam forte (cor)relação.

No caso de uma grande entrada de dólares no país (boom de commodities, por exemplo), as reservas cambiais aumentam. Isso se dá via venda de dólar pelos exportadores para o BC, ou seja, os exportadores têm dólares mas querem reais, então fazem essa troca com o Banco Central.

Portanto um aumento das reservas cambiais leva necessariamente ao aumento do estoque de reais da economia (concentrado nas mãos dos exportadores, ou melhor, em suas contas bancárias). Então o BC é obrigado a fazer uma segunda rodada de intervenção, enxugando esse novo excesso de reais.

Ele controla o novo excesso de reais para controlar a taxa de juros básica (selic). Lembrando que um aumento de reais na economia empurra a selic (que aqui pode ser compreendida como preço do dinheiro) para baixo, mas como o BC se compromete a mantê-la na meta, precisa retirar o excesso de reais trocando-os por títulos de dívida pública.

Então num primeiro momento a entrada de dólares eleva o estoque de reais nas contas bancárias internas e, após intervenção do BC, esse excesso é trocado por dívida pública do TN.

A resultante final desse influxo de dólares é uma reserva maior de câmbio nas mãos do BC; um estoque maior de dívida nas mãos do setor privado e; por fim, a Conta Única do Tesouro cheia de reais (advindos daquela troca por dívida operada pelo BC com títulos do TN para enxugar a liquidez adicional).

Essa é portanto a (cor)relação entre reservas cambiais e colchão de liquidez e também com a dívida pública (mormente com as chamadas compromissadas e atualmente com a conta de depósitos remunerados do BC).

Aumento de Dólares leva a aumento da dívida (compromissadas) que leva a aumento do Colchão (caixa do Tesouro).

Não à toa, os montantes dessas três variáveis são similares.

Destaque-se que, além das finalidades estritamente operacionais citadas acima, tanto a reserva de dólares quanto a de reais do governo brasileiro, servem como uma espécie de seguro ou como uma bomba atômica que mesmo sem ser disparada, dissuade o inimigo.

Afinal, qual é a chance de um ataque especulativo da banca contra um governo que possui 350 bilhões de dólares e um trilhão de reais em caixa?

Eis a questão: precisamos de fato nos ajoelharmos no macabro altar do Deus Mercado ou temos força para domá-lo?

Após olharmos os números aqui demonstrados a pergunta se torna retórica. Obviamente o governo federal conta com as armas necessárias para não ser subjugado pelo Mercado e seus ataques especulativos, tanto cambiais quanto no mercado de dívida pública.

Deriva-se então outra conclusão: as restrições para o crescimento brasileiro não são econômicas (pelo ponto de vista estritamente econômico, seria possível o governo adotar política fiscal expansionista) mas sim puramente políticas e auto-impostas.

Obs. Ao invés de tratar apenas da subconta “colchão de liquidez”, José Roberto Afonso quando fala em R$ 2 tri, deve estar se referindo ao saldo total da Conta Única do Tesouro Nacional (as outras subcontas que compõem a CUT são de dinheiro carimbado, mas são caixa do TN de fato).

O governo deve ter medo do mercado financeiro