Godard: os maoístas franceses se converteram ao budismo pós-moderno

Godard os maoistas franceses se converteram ao budismo pos-moderno
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“Vous montrez la détresse des gens mais pas leur lutte, et si vous ne montrez pas leur lutte, vous leur refusez les moyens de lutter. Votre cinéma, vos images, et vos sons sont ceux de la télévision bourgeoise et ses allies révisionnistes.”

“Você mostra a angústia das pessoas, mas não a luta delas, e se você não mostra a luta delas, você lhes nega os meios para lutar. Seu cinema, suas imagens e seus sons são os da televisão burguesa e seus aliados revisionistas.”

Vento do Leste (1970) do grupo Dziga Vertov, do qual Godard era um dos principais membros, é desses filmes que por si só mereceria um livro inteiro só para comentá-lo. A citação acima é falada por um narrador durante o filme, denunciando o revisionismo das lideranças marxistas, principalmente do PCF, que seguiram a linha do PC Soviético após o Relatório de Khruschev no XXº Congresso do Partido.

O curioso do Vento do Leste é que a própria estrutura narrativa do filme implode. Os cineastas realizam uma Assembléia bem ao gosto do Movimento Estudantil para debater a respeito de quais líderes revolucionários poderiam ser retratados no filme, debate que é permeado pela ruptura sino-soviética. O filme é incapaz de retomar o fio da meada de sua história, que começou por uma crítica ao grande cinema comercial seguida pela autocrítica das lideranças comunistas, e a própria imagem na tela é violentada por efeitos surreais.

A parte mais importante do filme é um resíduo de planos em que Glauber Rocha como representante do Terceiro Mundo aparece perdido. A própria montagem da cena, talvez inconscientemente, reforça essa sensação de perda: Glauber, numa estrada deserta, é interpelado por uma personagem sem direção.

Vento do Leste é a imagem-síntese do marxismo ocidental. Ao colapso da narrativa do filme em si mesma por camadas e mais camadas metanarrativas corresponde o colapso da própria vanguarda da esquerda nos países centrais, presa em uma perpétua auto-referência.

O corolário desse colapso em si mesmo da esquerda foi o fetichismo das barricadas, que ocupou o lugar da reflexão a respeito da Prática. Foi essa fixação taticista que criou a zona de conforto tão cara a boa parte da esquerda mundial que fica à reboque de suas contrapartes da Europa Ocidental, principalmente na América Latina e em parte do Oriente Médio (veja nossa sequência de artigos sobre a esquerda armada iraniana). Quem frequentou qualquer boteco para os acalorados debates após manifestações sabe muito bem do que estamos falando – é essa zona de conforto.

No Vento do Leste, a tal autocrítica contra as lideranças soviéticas ou nelas inspiradas assume a forma de uma idealização do processo revolucionário chinês. Este, para os estudantes franceses, era uma bela novidade, que retomava a autenticidade perdida no processo soviético, já demasiadamente imbuído de concretude para seu gosto. Suas reflexões guardavam quase nenhuma correspondência com a realidade efetiva do que se passava na China, mergulhada no atoleiro do Grande Salto e fazendo a “acumulação primitiva socialista”, cuja violência inclusive contra o campesinato em nada lembrava as idealizações que os jovens franceses de classe média. Mas isso pouco importava. Era tempo de atitude, de subversão e da belíssima Françoise Hardy.

O mais interessante de todo filme é que Glauber Rocha está lá, perdido. Enquanto a esquerda francesa corria atrás do próprio rabo em uma eterna discussão simbólica em uma Assembleia Geral, o ser do capitalismo brotava quase que por revolta a despeito da montagem frenética dos planos. Lá estava a economia política mundial com seu elemento central, a expansão no espaço da Acumulação, o Imperialismo. No entanto, em meio a cacofonia dos esquerdistas europeus, o Terceiro Mundo não encontrava nenhuma direção.

Sabemos o que aconteceu com a tal esquerda ocidental. Com a crise do socialismo após o Choque do Petróleo, essa esquerda, que já era presa fácil da propaganda imperialista da CIA, fez uma “autocrítica” e se entregou inteiramente aos braços de ideologias irracionalistas e hiperindividualistas.

À farsa francesa corresponde a tragédia brasileira. Sem buscar conhecer a si mesma, a esquerda brasileira, como mera importadora de ideologias, tornou-se sombra desse colapso. Foucault chegou ao ponto de aloprar a USP, referindo-se a ela como “departamento ultramarino francês”, o que foi retomado mais timidamente por Paulo Arantes, orientando do russo branco e conservador Alexandre Kojève exilado na terra de DeGaulle. O maior orgulho da vida política de Marilena Chauí foi ter “testemunhado o Maio de 1968”, ao que se seguiu o espetáculo tragicômico do autoexílio de Márcia Tiburi, para quem qualquer tentativa, ainda que hesitante, de se reestruturar o Partido leninista é “turbotecnomachismo”.

Se realmente queremos mostrar a luta das pessoas e não meramente retratar sua angústia, como diz o narrador do Vento do Leste, temos de resgatar o fio da história: o nacionalismo terceiro-mundismo e o Partido leninista.

Que Godard descanse em paz. Foi um herói a seu modo, revolucionando a linguagem cinematográfica. No entanto, não faríamos jus a seu legado se não perguntássemos provocativamente:

Não foram os maoístas franceses que se converteram ao budismo pós-moderno?

Godard os maoistas franceses se converteram ao budismo pos-moderno