A primeira montadora a produzir automóveis no Brasil, quando em 1919 iniciou a produção do Modelo T, a Ford anunciou que vai fechar suas três fábricas no país, encerrando por completo toda a produção. As atividades em Camaçari (BA) e Taubaté (SP) vão ser interrompidas nos próximos dias e a planta da Troller, que fica em Horizonte (CE), será desativada ao longo do ano. Isto é, a Ford em 2019 fechou também a sua planta fabril de São Bernardo do Campo-SP, dando fim à linha Fiesta e parando também de fabricar caminhões, pela linha Ford Caminhões que já operava no Brasil há 52 anos.
Ao todo, diretamente, serão quase cinco mil brasileiros que trabalhavam nas plantas fabris da Ford que vão perder seus empregos e engrossar nossas péssimas estatísticas de desemprego e miséria. A Ford deixa quase cinco mil brasileiros sem qualquer perspectiva de horizonte concreto após receber 20 bilhões de reais em incentivos fiscais desde 1999. Por ano, o Brasil deixa de arrecadar da Ford cerca de um bilhão de reais para que essa multinacional continue a produzir no país e remeter os lucros ao estrangeiro. Após tudo isso ela sai sem deixar qualquer ganho tecnológico e quase cinco mil famílias brasileiras sem
sustento.
Os debates sobre essa saída da Ford do país reacendem outros debates que devem ser imediatamente enfrentados, principalmente na esquerda brasileira. O campo progressista tem feito uma ode aos subsídios e incentivos fiscais como se fossem grandes políticas de desenvolvimento, que na verdade só são mais facetas do neoliberalismo que transfere recursos das economias frágeis terceiro-mundistas para as grandes multinacionais. Obviamente não quero propor aqui um debate irracional sobre esse tema, que o demonize por completo. Os subsídios podem cumprir tarefas importantes ao desenvolvimento nacional, como ajudar que mais empresas adentrem ao interior do país com suas plantas fabris, no entanto não garantem transferência tecnológica e complexidade produtiva, que realmente importa.
Um exemplo esplendoroso do quão danosa pode ser essa política ao real desenvolvimento é o caso da Troller, quem lembra do belo Jipe Nacional? (FIGURA 1)
A Troller foi uma empresa brasileira – cearense – que existiu de 1995 até 2007, quando foi comprada pela Ford. A Ford continuou a produzir o popular Jipe brasileiro acrescentando-o de algumas poucas inovações. Na época de sua venda, o argumento utilizado foi de que a Troller não tinha competência para sobreviver e reinvestir.
No entanto, a participação da Troller em seu segmento diminuiu e é menor do que era antes de ser adquirida pela Ford. De acordo com Mário Araripe, antigo proprietário da Troller, os milhares de reais que a multinacional pagou pela Troller se transformaram em milhões. Isso porque a real intenção da Ford pela compra foram os incentivos fiscais que a isentava de pagar impostos na linha de montagem, pois a isenção fiscal passou a valer para qualquer de suas fábricas instaladas no nordeste, como o complexo de Camaçari.
Parte desse exposto escrevi em Março de 2020 com o professor Paulo Gala e menos de um ano depois a Ford decidiu encerrar a produção dos T4 em Horizontina, no Ceará. Em síntese, o Brasil perdeu uma montadora nacional, que provou ser eficiente e boa de trabalho para uma multinacional que agora deixa tudo isso para trás. Essa é a crítica feita aos incentivos fiscais. Os 20 bilhões que o Brasil deu ou não recebeu da Ford poderiam ser usados para reerguer a Troller, mesmo que parte da empresa fosse estatizada. O importante continuaria em solo nacional, o desenvolvimento de tecnologias próprias e matrizes industriais de alto valor agregado. Isto é, com uma geração de empregos ainda maior, pois mais componentes do carro seriam fabricados em solo nacional e não como hoje funcionam as maquiladoras, onde somente uma função na cadeia de valor de um automóvel é reservada ao Brasil, montar o lego.
Interessante também notar que a Ford vai abandonar o Brasil, mas até agora não disse sobre abandonar a Argentina. Em Dezembro de 2020, o presidente da Ford na América do Sul anunciou um novo programa de investimentos em cerca de US $580 milhões para desenvolver a próxima geração da picape Ranger na planta fabril da empresa na Grande Buenos Aires. Isso reabre um outro debate, dessa vez sobre oque realmente atrai capital estrangeiro. Os manuais ortodoxos nos recomendam o fim dos direitos trabalhistas e uma compressão dos salários, pois assim o custo para se produzir ficaria muito baixo. Isso de fato tem sua lógica, no entanto sua fragilidade esbarra frontalmente com a realidade das condições objetivas de cada país.
A Argentina hoje tem uma população que é somente 21% em relação à brasileira, então na lógica ortodoxa os argentinos teriam que diminuir muito seus salários e direitos trabalhistas, pois saem perdendo no quesito mercado consumidor. Entretanto, hoje o salário industrial de um trabalhador argentino é maior que o de um trabalhador brasileiro, isso comparando em dólares, que é oque interessa para uma multinacional. Sendo assim, um cidadão argentino tem mais possibilidade de comprar um carro que um brasileiro, pois ganha melhor e em geral tem um emprego com carteira assinada, oque lhe dá mais garantia para poder comprar um bem de alto valor, como um carro. O desemprego no Brasil está em 14,3% (FIGURA 2) e na Argentina de 11,7%, apresentando tendência de queda (FIGURA 3). Devido aos acordos do Mercosul, a Ford agora vai poder continuar fabricando na Argentina, se apoderando de seu mercado consumidor em melhores condições que o brasileiro e ainda vai poder exportar oque foi produzido lá pra cá. Em síntese, uma vergonha nacional.
Ou seja, o Brasil teima em ir pelo lado errado, da precarização do trabalho e de uma maior exploração dos trabalhadores. Ao invés de reforçarmos uma segurança maior aos trabalhadores, dando-lhes mais segurança trabalhista para que até mesmo possam consumir mais produtos de alto valor, como os carros fabricados até mesmo pelo Ford, estamos deixando a massa consumidora cada vez mais sem recursos para girar a economia e de sobrevivência em termos materiais.
A Oportunidade Baiana
Assim que saiu a nota da Ford sobre o desligamento das fábricas, o estado da Bahia procurou a Embaixada da China em busca de investidores que se interessem em substituir o negócio no estado. Infelizmente esse pode ser o prenúncio de mais um erro, como foi com a Ford. Mas também pode ser o início de uma parceria estratégica que de fato desenvolva uma indústria de automóveis na Bahia. O Governador Rui Costa tem em suas mãos a oportunidade de colocar o Governo do Estado Baiano como ator principal nessa jogada. Uma sugestão seria que Rui Costa fizesse como JK ao abrir o Brasil para as montadoras, atrelando-as a uma fábrica nacional para repasse de tecnologia e posterior desenvolvimento nacional de automóveis próprios.
Não sei a que pé anda a capacidade de investimento do Estado Baiano, mas se caso não pudesse arcar com o investimento de fazer uma planta semi-estatal para fabricação de automóveis em parceria com a China, tentasse construir uma parceria estratégica com o Consórcio Nordeste, que também tem um outro grande interessado em trazer de volta uma fábrica de automóveis, Camilo Santana.
Enfim, oque não dá é para repetir o mesmo erro. A Bahia e o Ceará agora tem milhares de técnicos, metalúrgicos e engenheiros que entendem do assunto e precisam trabalhar, é hora de fazer diferente e tentar renascer uma indústria nacional de automóveis, como foi a Troller.
REFERÊNCIAS
- https://canaltech.com.br/carros/fim-de-uma-era-ford-fecha-ultimas-fabricas-do-brasileso-vendera-importados-177245/#:~:text=A%20companhia%20j%C3%A1%20havia
%20fechado,produz%20os%20jipes%20da%20Troller. - https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2021/01/11/internas_economia,122804
3/ford-vai-fechar-suas-tres-fabricas-e-encerrar-producao-no-brasil.shtml - https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/ford-recebeu-r-20-bi-em-incentivos-f
iscais.html - https://www.paulogala.com.br/troller-mais-uma-interessante-empresa-brasileira-com
prada-por-multinacional/ - https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/01/11/analise-ford-confirmou-opcao-p
ela-argentina-para-produzir-na-america-do-sul.ghtml - https://br.investing.com/
- https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/01/11/governo-da-bahiaprocuraembaixada-da-china-para-ter-substituto-para-ford.htm