Flávio Dino alvejado por bolsonaristas e identitários

Flavio Dino alvejado por bolsonaristas e identitarios
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Desde que os jornais começaram a anunciar a indicação de Flávio Dino ao STF, fiquei imaginando a situação inusitada de sua sabatina no Senado, justamente agora em que a casa está em tensão com a suprema corte.

Pense comigo: alguém pergunta: o que o senhor pensa da PEC das decisões monocráticas? e o atual ministro da Justiça teria de improvisar uma saída engenhosa, para não adentrar os corredores da elite do judiciário nacional com a pecha de quem julga a PEC bem-vinda, por limitar as ações de um judiciário viciosamente ativista, sem também contrariar um colegiado de senadores cuja maioria expressiva votou pela proposta, alegando qualquer coisa que atribua inconstitucionalidade ao texto.

Ora, se a proposta é inconstitucional, então 54 senadores, incluindo o petista Jaques Wagner, promoveram explicitamente uma inconstitucionalidade. Por outro lado, se o STF está cometendo abusos por meio de decisões monocráticas, então a iniciativa do Senado é alvissareira, dado que não há outro órgão de poder capaz de inibir seus eventuais exageros.

A decisão está com Dino, juiz de carreira que não mais julga e senador eleito que não chegou a legislar. Claro que o jurista, hábil orador, pode bolar uma saída política, dizendo qualquer coisa como: a PEC não é inconstitucional, mas também não é oportuna. Fato é que terá que se preparar para a incômoda pergunta.

O que não deixa de intrigar é a reação política ao anúncio. Conquanto sempre odiado por bolsonaristas, Dino tem sido casualmente idolatrado pelas esquerdas. Porém, impulsionada pela sanha da representatividade, a esquerda identitária alimentou a expectativa de que Lula indicasse ao STF uma mulher negra. Isso fez que o nome de Dino fosse recebido com rancor pelos porta-vozes do identitarismo – sobrando até para o ex-unanimidade Silvio Almeida, que cometeu o pecado de felicitar o indicado em uma postagem em rede social.

Desde então, tem havido de tudo, até gente que, explodindo de fúria, diga que o STF, com Dino, apenas consagrará a heteronormatividade branca no poder. Sim, em contraste com uma mulher negra imaginária, o mestiço ministro da Justiça é integrante do cânone dos beneficiários do privilégio branco.

E não pára por aí. Sem esconder o misto de ódio e temor, o clã Bolsonaro também se expressou a respeito da indicação, sinalizando a intenção de boicotar o jurista, sob a hipótese da suspeição quanto aos casos que haverão de chegar às mãos do personagem uma vez empossado. Mas essa alegação é apenas uma pseudo-tecnicidade. O pânico da extrema direita, que não deixa de ser compreensível, é de ordem política, não jurídica. “Imbecil que se acha Deus” foram as palavras mais recentes com que o ex-presidente Bolsonaro celebrou a indicação de Dino ao STF, deixando entrever a real preocupação – afinal, Deus tudo pode.

A indicação de Dino é uma oportunidade para vermos o óbvio: o extremismo de direita e a esquerda identitária são forças complementares na tarefa de impor ao país confusão e paralisia.

Lula encontrará chance de atenuar esse calundu dos identitários, como já encontrou outras vezes. Basta qualquer sinal de afago para que voltem a se comover com a imagem idílica da subida da rampa na posse.

Mas a sede por representatividade, que é o que os impulsiona, não tem saciedade longeva. Se todo o STF fosse composto por mulheres negras, logo haveria alguém para dizer que falta uma negra lésbica. Se esta fosse indicada, questionariam a ausência de nordestinas ou nortistas que também fossem negras e lésbicas. Se essas houvessem, inventariam, para haver justiça é necessário o ingresso de uma mulher negra nordestina que tivesse ascendência quilombola… ou qualquer outro critério derivado da interseccionalidade. É isso o que entendem por progresso moral e justiça social.

Os identitários não entendem que políticas de premiação de identidades fragmentadas não produzem mudança social nem participação no poder, apenas uma vaidade nos corações dos porta-vozes e letrados identitários, que pode ser – mas não necessariamente será – corroborada por medidas pontuais. A grande massa dos supostamente contemplados pelo discurso identitário permanecerá alheia ao poder e indiferente a essa vaidade.

Não há mudança real nem empoderamento possível que dispense o atendimento à nossa situação elementar de cidadãos brasileiros. E isso requer um discurso e uma prática política voltada para a construção da cidadania, não para o antagonismo barulhento. É preciso querer realizar a cidadania, não meramente respaldar a sociedade a se sensibilizar contra manifestantes – não contra manifestações – de vícios, preconceitos, crueldades e injustiças que todo mundo sabe que assolam país adentro.

Se Dino será ou não um bom ministro do STF, caso o Senado o aprove, não é possível prever. Mas o incômodo que ele suscita em bolsonaristas, que temem sua posição de poder, e em identitários, que desejavam outra representatividade, revela a qualidade do debate nacional. Temos sido incapazes de orientar o povo a pensar, no momento da indicação de um agente encarregado de guardar a Constituição, como uma pequena oportunidade de pactuar a coesão nacional e a cidadania. Ao contrário, e novamente, o que temos é um outro catalisador de baixarias e confusões, da mediocridade que permanece conferindo conteúdo ao debate público no Brasil.