A reveladora entrevista de Fernando Haddad ao Conexão Xangai

A reveladora entrevista de Fernando Haddad ao Conexão Xangai
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Por Daniel Bispo e Dilhermando Ferreira Campos – Um dia depois de se despedir do Insper, rendendo homenagens a Marcos Lisboa, o presidenciável-se-o-Lula-não-puder, Fernando Haddad, participou do programa Conexão Xangai, uma versão nacional-desenvolvimentista do seu homólogo neoliberal, Manhattan Connection.

A reveladora entrevista de Fernando Haddad ao Conexão Xangai

Conduzido pelo quarteto de economistas, Paulo Gala, André Roncaglia, Elias Jabbour e Uallace Moreira, todos desenvolvimentistas a partir de olhares distintos sobre o desenvolvimento, o programa representa um importante esforço de comunicação em um momento em que a crise estrutural do capitalismo financeirizado expõe, diariamente, as falácias do discurso liberal, o que é ocultado, diariamente, pela imprensa tradicional.

O pensamento único imposto pelos monopólios de mídia, que só permitem discordâncias em torno dos modos de se executar uma agenda austericida, cada vez mais agressiva, e de desmonte do Estado nacional, vem gerando uma busca crescente por outras fontes de informação e debate. Isso tem resultado no surgimento de uma nova rede alternativa de comunicação, que vai desde este blog onde estamos escrevendo até os debates e cursos de formação organizados por Paulo Gala, passando pelo noticiário econômico diário, sob o olhar nacional-desenvolvimentista, produzido pelo jornalista Fausto Oliveira no site Revolução Industrial Brasileira.

Nesse contexto, foi curioso ver o primeiro entrevistado do Conexão Xangai sendo um político e professor de orientação social-liberal. Esse convite representou boa propaganda ao programa, em seu antagonismo ao rival, pois na semana anterior Haddad havia sido agredido de forma baixa por Diogo Mainardi em entrevista dada ao decadente Manhattan Connection, agora veiculado pela TV Cultura, emissora estatal de São Paulo.

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Mas a expectativa em torno da entrevista não era por qualquer dúvida a respeito do tratamento que receberia em Xangai, que certamente estaria à altura de seus entrevistadores – assim como esteve à altura dos de Manhattan. O que agitou as redes sociais após o anúncio foram as diferenças ideológicas de Haddad com a bancada de entrevistadores.

Já na abertura, André Roncaglia iniciou com a pergunta que movimentou as discussões na última semana sobre o projeto de autonomia do Banco Central. Em 2018, na primeira versão do plano de governo apresentado pelo candidato do PT [1], era proposto na seção “Nova Política Macroecômica e Reforma Tributária” que, além do controle da inflação, o Banco Central teria como um dos focos os níveis de emprego.

A reveladora entrevista de Fernando Haddad ao Conexão Xangai
Plano de Governo – 2019-2022 – Coligação O Povo Feliz de Novo (PT-PCdoB-PROS), Brasília, 11 de setembro de 2018. p.41

A polêmica se deu no segundo turno, pois o candidato registrou um novo plano de governo com algumas mudanças [2]. No mesmo tópico, foi alterada a redação do parágrafo acima, afirmando que o Banco Central manteria “sua autonomia e seu mandato de controlar a inflação”, substituindo o registro do mandato dual da versão anterior por uma indicação de que o BC deveria ficar atento ao nível de emprego e estabilidade do sistema financeiro.

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Plano de Governo – 2019-2022 – Coligação O Povo Feliz de Novo (PT-PCdoB-PROS), Brasília, 18 de outubro de 2018. p.41

O motivo da mudança, interpretada à época como um aceno ao mercado financeiro na esperança de atrair para sua candidatura esses setores que apoiaram majoritariamente os governos do PT, foi negado por Haddad no Conexão Xangai. Habilmente, o ex-prefeito tentou se blindar das críticas, que partiam em grande volume de militantes trabalhistas, reforçando que na última semana o PT votou em bloco contra o projeto e o PDT “teve defecções” (na realidade, de 3 parlamentares, em 26, que estão em litígio judicial para sair do partido levando o mandato). Além disso, também citou um tweet do presidente do PDT, Carlos Lupi, postado um dia antes da votação do projeto na Câmara, como um possível respaldo da garantia de autonomia operacional do Banco Central que estava no plano de governo apresentado por Haddad em 2018.

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Contudo, na sequência da resposta, Haddad reafirmou sua visão a respeito do tema, dizendo que era favorável à manutenção do regime de metas de inflação, mas com uma atuação mais presente do Banco Central na regulação do mercado de crédito e combate aos altos spreads bancários. Quanto aos outros dois pés macroeconômicos, do tripé criado pelo governo FHC e seguido à risca pelos do PT, a saber, câmbio flutuante e manutenção de um constante superávit primário, não foram mencionados pelo ex-candidato a presidente durante a entrevista, a não ser quando reafirmou o compromisso de “responsabilidade fiscal”, dizendo que “quem reduziu dívida pública, fez superávit foi o governo de esquerda, não foram os governos de direita.”

Por fim, Haddad disse que, em sua opinião, a atual lei que estabelece a autonomia do Banco Central, aprovada na última semana, seria uma resposta ao programa apresentado pelo PT, com o objetivo de impedir uma reforma bancária que ele pretende fazer se eleito em 2022. O entrevistado não detalhou qual seria essa reforma, que teria como meta o estímulo ao aumento da concorrência bancária.

Em entrevista ao SBT, em 2018, o então candidato a presidente explicou melhor a ideia, relatando uma conversa com o presidente do Banco Central do governo Temer, Ilan Goldfajn, com quem teria boa relação pessoal. Segundo Fernando Haddad, Goldfajn havia considerado a potencialidade de expansão das cooperativas de crédito e regulação das fintechs e Haddad o teria sondado sobre a possibilidade de estimular a redução dos juros por incentivos tributários, mas assegurando que isso não representaria nenhum aumento da carga tributária sobre o sistema bancário. Em suma, a despeito da propaganda que fazem para sua própria militância, de que o Partido dos Trabalhadores tinha guinado à esquerda na sua lógica econômica, propondo um novo pacto de revolução macroestrutural, ao menos pelas falas de Fernando Haddad, não há nenhuma indicação de que estão dispostos a tal.

As críticas de esquerda às metas de inflação defendidas pelo pré-candidato do PT são direcionadas à sua característica estranguladora da economia real. As metas de inflação são objetivos futuros que devem ser alcançados pela taxa de inflação com uma pequena margem de tolerância. O problema é que, no modelo que temos, o Banco Central pode ignorar aquilo que acontece com os empregos, salários, níveis de produção etc.. Assim, o Banco Central pode definir, por exemplo, as taxas de juros somente com o objetivo de perseguir a meta estipulada, ignorando até mesmo o fato de o país estar com recorde de desempregados.

Esse modelo míope ignora elementos básicos da economia brasileira relacionados às nossas crises inflacionárias. Mesmo as recentes altas de inflação do final do mandato de Dilma Rousseff nada tinham a ver com o aumento da demanda, já que naquele período cada vez mais brasileiros ficaram sem emprego e tinham seu poder de consumo destruído. Essa, como tantas outras crises inflacionárias na nossa história, foram provocadas pela pressão cambial sobre os produtos importados, somada à baixa nos preços de commodities. Um Banco Central que não consegue compreender o Brasil, como esse de FHC e de FHsemC, ignora esses fatos e produzem políticas econômicas totalmente avessas aos interesses concretos do país. Talvez por isso estejamos nessa crise há tanto tempo.

Outra fala da entrevista que chamou a atenção foi a avaliação de Haddad sobre o governo Joe Biden, que estaria “surpreendendo positivamente, em todas as frentes”. Segundo o entrevistado, “Biden está fazendo uma política progressista em várias frentes: em relação a costumes, em relação à liberdade individual das pessoas, em todos os planos, religioso, sexual, de gênero, racial.”

Esses destaques soaram curiosos vindos de um quadro do PT, visto que Biden, notório apoiador de intervenções dos EUA pelo mundo, era o vice-presidente de Obama durante a destituição de Dilma e legitimou tanto a deposição da ex-presidenta quanto as relações entre os órgãos de Estado do seu país e a Lava Jato. Talvez essa fala de Haddad seja uma forma dele reafirmar a avaliação que fez em 2016, quando disse que “golpe é uma palavra um pouco dura” para definir o processo sofrido por Dilma.

Quando tratou das questões orçamentárias e dos problemas do Estado brasileiro, Haddad deixou muito claro quais são suas referências teóricas e ideológicas em relação a esses temas, o que foi muito bem abordado por Arthur Silva aqui. Depois da cômica acusação do padrinho da Kroton Educacional de que no “período getulista” teria havido “subfinanciamento em educação” – aquele período iniciado pelo criador do Ministério da Educação, Getúlio Vargas, e continuado pelo revolucionário governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que implementou o maior programa de escolarização de seu estado, ainda nos anos 50, e seguiu no Rio de Janeiro, junto a Darcy Ribeiro, seu projeto educacional com os CIEPs – o pré-candidato do PT apontou o que seria o problema central do orçamento brasileiro. Segundo ele, “tem muita gente ‘chupinhando’ o orçamento público e não sobra espaço orçamentário para fazer a grande política que os países asiáticos fizeram”.

Haddad fala do Estado como se ele pudesse ser um ente distanciado dos interesses particulares e é devido aos grupos privados que “chupinham” o Estado que não conseguimos fazer as políticas de desenvolvimento econômico dos países asiáticos. O interessante é que essa compreensão vai contra a realidade do que aconteceu justamente no próprio exemplo citado por ele, que são os países asiáticos.

Todos os grandes Chaebols sul-coreanos, como Hyundai e Samsung, ou os Zaibatsus japoneses, como Mitsubishi e Yamaha, são corporações familiares que, ao longo do tempo, foram privilegiadas pelos seus respectivos Estados-nação para promover o desenvolvimento interno desses países. Em verdade, até os grandes últimos campeões nacionais brasileiros, como a Odebrecht e a JBS, são empresas familiares que conseguiram projeção internacional se apoiando no Estado brasileiro.

Desse modo, vemos que a crítica de Haddad se aproxima da que um típico liberal faria. Obviamente, esse processo deve ser criticado para que sua utilização seja acelerada em prol do desenvolvimento nacional, mas não demonizado, já que o entrosamento do Estado com braços particulares de projeção da nação para o mundo é o que é feito por todas as grandes economias, a despeito da propaganda oficial ornada de belos liberalismos.

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Outra crítica que deve ser feita nessa mesma fala é em relação ao orçamento público e a noção de “responsabilidade fiscal”. O Brasil é um país de moeda soberana e deve ter o direito de usar sua política monetária para impulsionar o desenvolvimento. Desse modo, não há mal algum no déficit do Estado se esse déficit foi provocado para realizar investimentos calculados que dinamizem a economia e melhorem a qualidade de vida dos brasileiros.

Em outro trecho da entrevista, Uallace Moreira pergunta sobre a possibilidade de se revogar a reforma trabalhista e Haddad se esquiva, dizendo que é necessário estabelecer metas de longo prazo, mas, ao fim, não respondendo se essa será uma meta de um eventual governo seu. Na sequência, questionado sobre a importância que daria à industrialização, Haddad conta orgulhoso que, quando Ministro da Educação, estimulou a indústria de carrocerias de ônibus escolares, relatando ainda uma experiência de quando era prefeito, sobre um projeto de iluminação de vias públicas. Segundo ele, se o Brasil tivesse um plano para trocar todas as lâmpadas dos postes por LED, talvez conseguíssemos até trazer uma fábrica desse ramo ao país, “quem sabe em parceria com uma grande produtora chinesa ou americana” – completou.

Apesar da boa intenção de Haddad ao falar isso, ele prova que não tem muita ciência das cadeias complexas de geração de valor. Ele fala em fazer parceria com o estrangeiro para trocar as lâmpadas dos postes, mas será que a quinta maior nação do planeta não consegue fazer isso sozinha? Parceria com o estrangeiro deve servir para transferências tecnológicas de bens industriais de alta complexidade, como, por exemplo, motores de aviões – que no passado já fomos capazes de fazer com a CELMA, empresa brasileira que nos anos 90 foi adquirida pela General Electric.

Ainda no debate sobre Industrialização, André Roncaglia questionou Fernando Haddad sobre a real importância da indústria em seu projeto de país. Haddad se disse preocupado com o tema, mas mostrou uma visão distinta daquela que apresentava em suas colunas na Folha de São Paulo, onde escrevia há até bem pouco tempo.

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Fernando Haddad, Indústria, Folha de São Paulo, 4 de janeiro de 2020.

A real chaga do Brasil é o subdesenvolvimento econômico ao qual somos condicionados enquanto país da periferia que, até os dias atuais, reproduz a lógica colônia-metrópole na produção capitalista. A partir dessa realidade, se originam todos os outros problemas da vida nacional, como as duras desigualdades e a falta de acesso aos meios materiais sofisticados. A receita para virar esse jogo passa por compreender a experiência sul-coreana e chinesa, não pela propaganda que fazem de si, ou pela visão de seus competidores, mas pelo que eles de fato fizeram para avançar suas forças produtivas nacionais, levando o Estado-nação ao pleno desenvolvimento de suas competências civilizatórias.

Antes de se despedir da entrevista, se desculpando com os liberais que o ouviram pelos deboches que julgava ter feito para “desanuviar um pouco o ambiente”, o semipresidenciável ainda respondeu à pergunta de Uallace Moreira sobre a possibilidade de unidade da esquerda. Haddad lembrou que “em 2018, faltando uma hora para inscrição de chapa, tinham quatro candidatos de esquerda: o Lula, a Manuela, o Boulos e o Ciro. E nós passamos para o segundo turno, com nenhum dos quatro [risos]. O Lula não pode ser candidato, eu entrei no lugar dele e fui eu.”

Recado claro para aqueles que se lembram como foram as articulações em 2018 e como o PT conseguiu impor ao PCdoB a retirada da candidatura de Manuela d’Ávila – o que quase extinguiu o partido por causa da cláusula de barreira, salvo por uma fusão às pressas com o PPL. Pela fala de Haddad, a unidade só se dará se o PT conseguir impor outro Domingo Sangrento, evento muito bem relatado nas últimas eleições por Ricardo Cappelli:

“O dia 5 de agosto de 2018 poderá ficar marcado na história da esquerda brasileira. Entretanto, se alguma força do campo eleger o próximo presidente da República, o dia ficará no passado. Vitórias têm o poder de confortar os corações. Se vier a derrota, as relações na esquerda nunca mais serão as mesmas. (…)
Lula dobrou a esquerda. Terá que provar que, com uma aliança esquálida, preso em Curitiba, consegue repetir a ‘fórmula Dilma’ e levar o ex-prefeito de São Paulo ao Palácio do Planalto. Se obtiver êxito sairá de vez da vida, vivo, para virar uma lenda, um mito. Se falhar, as gotas de sangue do ‘domingo sangrento’ continuarão a pingar, infelizmente, por um longo tempo.”

Por Daniel Bispo e Dilhermando Ferreira Campos

[1] https://docs.google.com/viewerng/viewer?url=https://multimidia.gazetadopovo.com.br/painel/../media/docs/1539881248_plano-de-governo-haddad.pdf?1613437390

[2] https://docs.google.com/viewerng/viewer?url=https://multimidia.gazetadopovo.com.br/painel/../media/docs/1539879351_plano-de-governo-haddad-13.pdf.pdf?1613437390