Em Xangai, FHC já está à esquerda de Fernando Haddad

FHC já está à esquerda de Fernando Haddad conexão xangai
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FHC já está à esquerda de Fernando Haddad conexão xangai

Fernando Haddad foi entrevistado no Conexão Xangai por um grupo de renomados economistas desenvolvimentistas. Nessa ocasião, discutindo as razões pela qual o Estado brasileiro é incapaz de assumir a dianteira de um projeto de desenvolvimento nacional, o intelectual paulista mais uma vez colocou a culpa na captura do Estado Nacional pelos “interesses particulares”. Ao fazê-lo, Haddad segue na linha dos intelectuais conservadores que não enxergam o Brasil inserido na totalidade da economia mundial e veem a história do Brasil como imutável.

Fernando Haddad se mostra a cópia mal feita de outro Fernando, o Henrique Cardoso. Para ambos os FHs, o problema do Brasil se resume na incompletude da aplicação do modelo ocidental de um Estado “neutro”, capaz de superar os particularismos dos interesses privados de alguns agentes – termo bem ao gosto da teoria social anglo-saxônica, que o poste faz questão de elogiar. Esses agentes sequestrariam a ação estatal para seus fins, incapacitando o Estado até mesmo para conduzir o programa para classe burguesa e com isso o desenvolvimento nacional. A prevalência destes particularismos tem origem histórica e é por nunca termos feito uma revolução “tal como a inglesa” que essa inércia histórica se mantém. O único reparo que Haddad faz a Faoro, intelectual conservador cotado para vice de Lula em 1989, é que este via esse particularismo somente na esfera estatal. Para Haddad, essa “essência particularista” seria tão difundida pelo espírito Macunaíma destas terras pecaminosas que contaminaria até mesmo a esfera privada. Na entrevista, o uspiano para pouco antes de citar Sérgio Buarque de Holanda e colocar a culpa desta mácula original do Brasil em nossa herança cultural ibérica. A solução? Políticas compensatórias, sobretudo na educação e de preferência com carácter identitário. É a versão mais sofisticada e academicista do senso-comum, vomitado todos os dias pelo Jornal Nacional, de que o problema do Brasil é a corrupção e a imoralidade embutidas em nossa cultura, cujo remédio seria uma educação “inclusiva” capaz de rasgar tudo que há de brasileiro em nós – afinal, em última instância, este é o problema para os FHs.

A história não se repete e uma tragédia aparece novamente somente como farsa. FHC tinha o “mérito” de buscar radicalizar o projeto de Golbery de desenvolvimento associado; um jeito mais chique de dizer que o caminho para o Brasil era permanecer como nação dependente dos Estados Unidos. Ao menos o imperialismo surgia em sua crítica, ainda que na forma de um destino inescapável que cabia a nós tirar o melhor proveito. Haddad sequer faz isso. Como farsa da tragédia tucana, o petista se restringe a dizer que o problema do Brasil é o orçamento federal capturado por inúmeros interesses particulares que impediriam o planejamento do desenvolvimento nacional. Na tal teoria da captura do Estado não aparecem personagens como os aparelhos de inteligência das potências imperialistas, o lobby das transnacionais, a onipresente embaixada estadunidense e etc. Pior, em nenhum momento os “interesses particularistas” têm seu conteúdo discutido. Afinal, num país dependente eles têm um sentido claro: a manutenção da dependência. Até mesmo FHC em sua obra clássica “Dependência e Desenvolvimento na América Latina” abordou esse problema do conteúdo dos interesses “particulares”, tirando dele sua conclusão canhestra de que o Brasil deveria covardemente se manter subalterno aos Estados Unidos. O outro FH fica somente na educação inclusiva.

O que une os dois FHs é seu ódio indisfarçável ao Estado Novo. Haddad cita explicitamente esse período da história brasileira do modo como usualmente encontramos na literatura reacionária ou no senso-comum midiático: numa longa lista de fases da história do Brasil para concluir “brilhantemente” que nada jamais mudou, que a história do Brasil nunca caminhou e que, por isso, ainda estamos capturados pelos “interesses particulares”. O que falta para os FHs é ver que o Brasil conseguiu sim uma ruptura. Com certeza, incompleta. Mas a vitória da reação na URSS, o caráter heroico da resistência cubana ou o longo caminho trilhado pela China mostram que a norma para o terceiro mundo é a luta contínua e que – com as óbvias diferenças de todas essas experiências, inclusive no grau e, sobretudo, na qualidade – todas essas rupturas são incompletas. A não ser que se mantenha preso à visão de uma revolução idealizada em última instância reacionária, enxergar a luta do terceiro mundo em sua concretude é ver os hibridismos e formas intermediárias que essa luta assume – o que basicamente corresponde ao conceito real de socialismo.

A visão desses teóricos é obscurecida pelo véu fragmentário que é incapaz de enxergar o capitalismo como uma totalidade mundial. É por isso que os FHs da vida veem no Estado Novo somente um conjunto de “interesses particulares” que mais uma vez, na imutável história do Brasil, capturaram o Estado para seus fins privados. Por isso não conseguem entender que o fenômeno do caudilhismo e do populismo significa a formação de um sujeito coletivo da classe trabalhadora – com certeza incompleto, mas a forma burocrática do partido chinês ou soviético também não o seriam, com óbvias diferenças de grau e de qualidade? E que é esse sujeito coletivo que consegue impor e negociar junto a burguesia e demais classes um projeto anti-imperialista que, ao mudar a posição de uma nação com o peso do Brasil, reconfigura parcialmente a totalidade do capitalismo mundial. Não seria possível o desenvolvimento da Argentina, por exemplo, sem o fenômeno varguista no Brasil e o próprio Perón o reconheceu ao defender a iniciativa ABC para o desenvolvimento regional.

Haddad abdica completamente do marxismo que supostamente defendeu, se algum dia o fez. Pois abre mão da formação da classe para ela mesma como sujeito coletivo em lugar de um programa individualista de um Estado “neutro”, pois “na Inglaterra foi assim que surgiu o capitalismo”. O erro aqui é, no mínimo, triplo. Primeiro porque já desde o Capital de Marx, e quiçá antes, é verdade ululante que o capitalismo inglês se desenvolveu ao longo do processo de conquista do subcontinente indiano. Diga-se de passagem, o tal Estado “neutro” anglo-saxão se formou muito mais para atender as necessidades do imperialismo do que a luta para a afirmação de uma individualidade oriunda da reforma protestante. Perguntem para os irlandeses.

Segundo, porque o maior interessado em manter o Brasil no subdesenvolvimento é o imperialismo que conscientemente aplica um projeto de implosão do Estado Nacional nestas terras tupiniquins. Haddad, como parte da cúpula diretiva nacional vítima do golpe de 2016, deveria ser o primeiro a dizê-lo. Toda corrupção no Brasil tem um “sócio oculto” sempre protegido: transnacionais, fundos offshore, bancos das potências imperialistas manifestas na onipresente figura do doleiro. Mas a mesma mão que afaga é a que bate. O lava-jatismo apenas deixou claro que os órgãos de Estado imperialista, principalmente dos Estados Unidos, usam o combate a corrupção como instrumento para submeter e coagir tanto o Estado no terceiro mundo como a burguesia que ousa se associar a qualquer projeto desenvolvimentista. Daí a violência contra a família Odebrecht e o Almirante Othon, quem sabe até muito piores do que a sofrida por Lula e injustamente esquecida.

Mas é o terceiro erro o pior. Defendendo um projeto individualista de “direitos”, Haddad se filia com fidelidade ao projeto cutista e onguista dos anos 1980 da interseccionalidade da luta de diferentes “grupos”, cuja soma em paralelo supostamente formaria o “interesse de classe”. Lenin combateu virulentamente essa visão no seu panfleto direcionado contra aqueles que viam na luta sindical o meio e o fim do socialismo. O que o caudilho eurasiático argumentava era que a classe deveria se constituir como sujeito para ela mesma, superando, mas mantendo como momento dessa superação, esses “interesses particulares” das diferentes frações da classe trabalhadora. Ou seja, a luta por direitos deveria ser o meio pelo qual a classe se educa para a formação desse sujeito coletivo – não é dando as mãos e ajudando as outras lutas que formaremos a classe, mas encarando a contradição central do capitalismo, que é o imperialismo. Ao não ver o capitalismo como uma totalidade mundial, os FHs da vida não conseguem ver a contradição progressista que é o desenvolvimento capitalista no terceiro mundo, coisa que Lenin brilhantemente percebeu quando advogou pela conquista de uma forma iminentemente burguesa como o Estado pela classe trabalhadora. É por isso que para eles o Estado Novo é somente “mais um” episódio na imutável história brasileira.