As elites que existem e as que precisam existir

As elites que existem e as que precisam existir
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No mundo contemporâneo, uma elite não é mais o seleto grupo de atores sociais de desempenho exemplar em uma dada área. Elite é simplesmente o conjunto dos que influenciam ou determinam o curso das coisas.

No Brasil, como em muitas sociedades, é possível distinguir três tipos de elite: a do dinheiro, a do poder e a da cultura.

A elite do dinheiro ou econômica atua principalmente no setor privado. Ela é composta por grandes empresários e por especuladores que vivem do preço do dinheiro no tempo. Esse grande empresariado é dividido entre os empresários que atuam no segmento do agronegócio e parcialmente os raros graúdos da indústria ligados à FIESP e das corporações que atuam nos serviços. Os especuladores são os que se concentram na Faria Lima e os que compõem a periferia imediata desse núcleo de afortunados. Caracteriza a atuação da elite econômica a determinação dos bens e serviços que abastecem a sociedade.

A elite do poder atua principalmente no setor público. Ela está dividida entre políticos profissionais, juízes e procuradores do MP. São essas as pessoas que determinam, diretamente ou não, as regras do jogo social: quem é premiado e quem é punido, quem pode e quem não pode, quais os meios de ação legítimos, o que é ilícito, quem sofre e quem é poupado do peso da Justiça e da lei. Vivem do serviço público, sendo remunerados pelos tributos arrecadados pelo Estado.

Há ainda a elite da cultura, que é a mais heterogênea e plural das três. É composta por um grande número de atores entre os quais intelectuais, religiosos, artistas e esportistas de relevo, mas também certos influenciadores digitais e profissionais da comunicação. Ela determina o que tem valor, o que é apreciável, que juízo emitir sobre fenômenos complexos, como estetizar a vida, como educar os filhos etc. Determina o vocabulário e os símbolos que regem a consciência média da sociedade.

Embora distintas na origem e na atuação, essas elites compartilham uma mesma mentalidade geral. O imaginário que as domina é o que pode ser chamado um tanto pejorativamente (mas não sem verdade) de pacote da mediocridade. É uma combinação que envolve: (a) a complacência com o primarismo econômico: aceitar o baixo nível de sofisticação do aparato produtivo e o baixo nível de instrução pública; (b) o pobrismo: a distribuição de migalhas do orçamento público via programas de transferência combinada com o enaltecimento da pobreza; (c) o identitarismo: a mensagem de que as minorias constituem identidades oprimidas cuja autenticidade precisa ser reconhecida no empenho de resistência às estruturas opressoras – é uma mensagem carregada de ressentimento; (d) o liberalismo: a crença de que o Estado é ou cruel ou ineficiente, sendo em qualquer caso arbitrário e indigesto: mais um mal necessário do que um reparador de injustiças.

Não é que todos os integrantes das elites defendam com igual convicção cada um dos elementos desse repertório. Mas esses elementos dão conteúdo ao vocabulário básico de quem determina o curso das coisas no Brasil hoje. Se uma parte da elite cultural, como os mega-pastores, por exemplo, não aceita algum dos itens do pacote, como o identitarismo, é apenas uma dissidência que serve ao próprio identitarismo como elemento do pacote, vez que seus porta-vozes constituem uma elite que não se considera elite e que é excitada pelas críticas que recebe. Assim, cada vez que um ator da elite cultural, como Silas Malafaia, pragueja contra o que chama “ideologia de gênero”, os identitários dos centros metropolitanos insinuam que os evangélicos compõem um conluio com as estruturas de poder machistas, estruturas das quais, em tese, eles não participam. Contudo, logo aparecem as propagandas do Santander e do Itaú por paridade de gênero e a crítica às estruturas fica um tanto relativizada, afinal, se é para ter representatividade, o conluio com as estruturas opressoras pode ser tolerável.

Com elites orientadas por esse pacote não é de assustar que a sociedade esteja inteiramente desorganizada, que ostente uma posição entre os últimos lugares no Pisa e entre os primeiros em taxa de homicídio. Sim, a mediocridade tem nos feito um dos países mais ignorantes e o mais assassino.

As elites que temos não podem ser trocadas da noite para o dia. Teremos que conviver com elas. Mas o imaginário que as anima pode ao menos sofrer a pressão de um outro, um imaginário concorrente. Essa me parece ser a tarefa de uma contra-elite intelectual: forjar os termos de um imaginário capaz de absorver a atenção e o ativismo das elites dominantes do dinheiro, do poder e da cultura pela reconstrução do país. Mas que não nos iludamos: esse é um trabalho cujos frutos só poderão ser colhidos pelas próximas gerações.

Esse imaginário precisa apostar no produtivismo: a sofisticação do produto nacional e a diversificação dos produtores. Trata-se de democratizar a condição de agente produtor. O pequeno e médio negócio, a agricultura de pequeno e médio porte, a indústria de baixa escala. Diversificar e sofisticar o produto nacional é um empreendimento de cidadania. Nesse caso, a cidadania precisa ser pensada de forma a incluir um quarto direito à lista que contém direitos civis, políticos e sociais, a saber, o direito econômico: o indivíduo não quer apenas participar da riqueza como consumidor e beneficiário. As famílias precisam ser vistas como a também querer integrar o quadro dos que põem na realidade nacional os bens e serviços que ela própria gostaria de usufruir.

Um segundo item é a instrumentalização dos agentes sociais. As pessoas querem estar equipadas para a vida num mundo complexo e denso. Isso é um anti-pobrismo, porque não basta incluir o pobre no orçamento. É preciso enfrentar a pobreza com a capacitação e com a criação de oportunidades para se empreender e prosperar.

Os dois itens, o produtivismo e a instrumentalização, são decorrentes de uma reforma educacional substantiva.

Um terceiro item está na mensagem da cidadania propriamente dita. O movimento constituinte de 88 estava animado por essa mensagem, mas ela esmoreceu diante da incapacidade do Estado brasileiro em cumprir as inúmeras promessas inscritas no texto constitucional nos anos posteriores à promulgação da carta. A frustração deu lugar ao cinismo. E o vácuo de ideias foi preenchido pela corrente de opinião identitária. A tarefa agora é defenestrar o identitarismo com a mensagem da união nacional contra a sub-cidadania que sobrevive na indigência, na miséria, na fome, mas também na violência, na exorbitância da taxa de juros, no desemprego, na precarização, no racismo praticado por meio das instituições e em tantas outras chagas contra as quais a cidadania nos une, apesar de, excitados pelos cacoetes identitários, performarmos por nossa própria desagregação.

Por último, não precisamos fazer eco ao antagonismo ideológico do século XX, optando por liberalismo, socialismo ou socialdemocracia. As tarefas sempre são mais importantes do que os rótulos. É preciso que nossa elite tenha compromisso nacional: que pense o Estado como um coordenador, o mercado como a matriz da riqueza e a sociedade civil independente como responsável por si. Essa chave nacionalista não quer dizer ser repulsiva à integração internacional – ao consumo do RAP norte-americano ou dos doramas do leste asiático. É apenas um compromisso com a construção simbólica e prática da nação brasileira no século XXI, por reconhecer que esse desafio não foi encarado e que seu adiamento é insustentável.

A elite que nos falta é a que se oriente por um construtivismo institucional nacionalmente comprometido. Só que essa orientação não cairá do céu no colo de nossos endinheirados, mandatários e porta-vozes. Precisamos elaborar a mensagem construtivista da cidadania plena agora, verbalizá-la até à exaustão e torcer para que ela conquiste os corações de quem pode influenciar o rumo do país. Quiçá com ela as próximas gerações possam conceder a si mesmas um país decente, digno e próspero.