A Estatal CEITEC é realmente um caso incrível

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A ESTATAL CEITEC É REALMENTE UM CASO INCRÍVEL (E POR ÓTIMOS MOTIVOS)

Christian Velloso Kuhn

Após meses de estudos e análise do seu governo, o presidente Lula assinou em 06 de novembro desse ano um decreto para reversão do processo de extinção da CEITEC (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), estatal federal criada em 2008 que atua na cadeia de semicondutores junto com mais 10 empresas privadas no Brasil.

O processo de extinção da CEITEC teve início no programa de desestatização promovido pelo Governo Bolsonaro em 2020, em meio à pandemia da COVID-19. A ideia inicial foi privatizá-la, porém, na falta de interessados na compra, o governo decidiu liquidá-la. Contudo, o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu o processo de extinção, visto que a liquidação da estatal oneraria em R$ 140 milhões os cofres públicos do Estado brasileiro, sendo R$ 25 milhões para manutenção das instalações ociosas e mais R$ 112 milhões para serviços de descontaminação com gases tóxicos, além do governo não ter apresentado quaisquer estudos para justificar a extinção da empresa.

A despeito de concordar que o processo de liquidação da estatal de semicondutores foi mal conduzido pelo governo Bolsonaro, o Estadão publicou em seu editorial o artigo “O incrível caso da estatal Ceitec”, de 01/12/2023, em que condena a atitude do presidente Lula de reversão desse processo em seu governo. Com o uso de termos ofensivos e impróprios (como “inútil” e “moribunda”) para definir a empresa, o Estadão apresentou um conjunto de argumentos tendenciosos e falaciosos, com parca e falha fundamentação para defender a extinção da CEITEC. Logo, o presente artigo pretende oferecer o devido contraponto à opinião do jornal.

O primeiro contra-argumento é com relação à criação da CEITEC. Diz o Estadão que “a Ceitec nasceu com maquinário ultrapassado, oriundo de doações”. De fato, a Motorola ofereceu uma fábrica que se encontrava instalada no Texas (EUA), todavia, como bem expõe a deputada Maria do Rosário (PT-RS) em seu artigo de 03/12/2023, “eles ofereciam uma planta básica, o Brasil faria as adequações, upgrades, para que a boa e bem formada geração de engenheiros brasileiros pudesse integrar a cadeia de produção global do promissor mercado de semicondutores”.

Segundo Rosário, essa motivação parte da tradição do Brasil na indústria de microeletrônica nos anos 1970 e 1980, que pretendia completar a cadeia produtiva. A estatal nasceu com um objetivo ousado de fabricação e competição no mercado de chips mundial, mas o projeto contou com o apoio de importantes universidades gaúchas (PUCRS e UFRGS), bem como dos governos municipal de Porto Alegre (onde já existia o Porto Alegre Tecnópole) e do Estado do RS.

A respeito da situação financeira da empresa, em que pese o recebimento de subvenções do Tesouro Nacional, é importante frisar que houve uma redução de 19% no valor anual no período 2016-2020 , enquanto que o faturamento bruto quase triplicou em igual período (Figura 1). Inclusive, mesmo num ano de forte recessão (queda de -4,41% do PIB), as vendas da estatal cresceram 58% em 2020 . Além disso, a CEITEC quase triplicou seu patrimônio líquido em igual período, saindo de R$ 65,3 milhões negativos em 2016 para R$ 126,7 milhões positivos em 2020.

Outro ponto a ser rebatido do artigo do Estadão é sobre as relações comerciais com clientes da CEITEC, ao dizer que “ao longo dos anos, a empresa não conseguiu nem mesmo viabilizar a venda de chips para passaportes, cuja caderneta é produzida pela também estatal Casa da Moeda”. Primeiro, apenas o produto desenvolvido pela CEITEC tinha certificação de segurança computacional em conformidade com o padrão global Common Criteria, diferente do fornecedor escolhido pela Casa da Moeda do Brasil (CMB) no lugar da estatal. Mas o que o Estadão ignora ou omite são os apontamentos recebidos pela CMB da Controladoria Geral da União (CGU) em 2017, por causa do aumento das compras com esse fornecedor, a empresa privada Fedrigoni Brasil Papéis. Em maio de 2019, um contrato com a empresa chegou a mais de R$ 89 milhões com inexigibilidade de licitação. Ocorre que essa empresa tinha com um dos acionistas controladores o padrasto de duas sobrinhas do então secretário de Desestatização do Governo Bolsonaro, Sallim Mattar. O mesmo chegou até comemorar no Twitter a liquidação da CEITEC, concorrente da empresa de propriedade do parente de suas sobrinhas. Essa relação promíscua que aponta para um comprovado conflito de interesses foi até destacada em Audiência Pública da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados em 2021.

Desse modo, mesmo com menos apoio do Estado desde 2016, a CEITEC obteve bons resultados que mostram que se encontrava em recuperação. A falta de visão estratégica e de longo prazo do governo Bolsonaro, apoiado em uma ideologia ultrapassada de Estado Mínimo (e preconizada pelo Estadão), levou a tomar a lamentável decisão de extinguir a empresa. Com isso, muitos funcionários, especialmente mão-de-obra especializada, foram absorvidos por empresas privadas. Contudo, com os ativos atualmente disponíveis, mais os R$ 500 milhões de investimentos prometidos para serem aportados na estatal para os próximos 4 anos, é plenamente factível reorganizar a empresa, voltar a contratar e qualificar empregados e investir na produção para atingir resultados bastante significativos.

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E por que isso é possível? Primeiramente, porque também nos últimos anos, a CEITEC conseguiu expandir consideravelmente o seu portfólio de produtos e serviços (Figura 2), cabendo frisar, novamente, mesmo contando com menos recursos financeiros do Governo Federal e nenhuma política governamental de Ciência e Tecnologia que lhe desse qualquer incentivo. Com isso, a estatal chegou a atender diversos segmentos da atividade econômica, como automotivo, logística e transporte, agronegócio, saúde, dentre outros (Figura 3).

 

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Ampliação do portfólio de produtos e serviços da CEITEC – 2016-2020
Segmentos de atuação da CEITEC
Segmentos de atuação da CEITEC

Depois da paralisação da produção industrial mundial provocada pela pandemia da COVID-19, a indústria de semicondutores recebeu mais atenção. Só no Brasil, devido à falta de componentes desse segmento, registrou-se uma queda na produção de 620 mil veículos no biênio 2021-2022. Ademais, há um fato novo que merece ser analisado. Se com o progresso tecnológico de dispositivos eletrônicos, os semicondutores ganharam maior relevância, com o advento da disputa comercial entre EUA e China, a sua importância aumentou ainda mais.

Abriu-se uma janela de oportunidade com a Lei Chips and Science Act dos EUA, que prevê investimentos na ordem de US$ 53 bilhões na indústria de semicondutores. A justificativa dos norte-americanos é a concorrência com a China, tratando-se inclusive como uma questão de segurança nacional. Nesse particular, essa justificativa mostra mais um equívoco do Estadão, quando defende que a extinção da CEITEC “seria um caminho natural, respaldado pela própria Constituição, que restringe a exploração direta de atividade econômica pelo Estado aos imperativos de segurança nacional e relevante interesse coletivo. Chips, por óbvio, nunca se encaixaram nessa descrição”. Percebe-se que nem sequer nos EUA, a meca do neoliberalismo, ideologia preconizada pelo jornal de São Paulo, tem-se uma visão tão míope com relação à importância dos chips e semicondutores.

Além desse incentivo da lei estadunidense ter provocado um alta nos investimentos no setor do país (US$ 210 bilhões), segundo Fabrizio Panzini, diretor da Amcham Brasil, entrevistado pela Folha de São Paulo, ocorrendo tais inversões, “a demanda vai transbordar para fora dos EUA”, podendo também chegar até o Brasil. Tanto é que já ocorreram reuniões entre autoridades governamentais brasileiras e norte-americanas sobre a indústria de semicondutores. Em adição, a China também mostra interesse no mercado do Brasil, inclusive firmando parceria com o governo brasileiro na viagem a Pequim em abril desse ano.

De acordo com a Folha de SP, o país atualmente conta com 11 empresas (contando com a CEITEC) que compõem a indústria de semicondutores. Entretanto, nenhuma ainda tem capacidade de produção de chips (frontend), somente das etapas backend (teste, afinamento, corte e encapsulamento dos componentes). A frontend se concentra apenas em poucos países, os EUA (mais focado em P&D) e países do sudeste asiático: China, Coréia do Sul, Japão, Singapura e Taiwan. A Holanda é especializada apenas na produção de máquinas para fabricação de chips.

Porém, isso pode mudar no médio prazo, pois os EUA pretendem adotar uma estratégia de nearshoring, ou seja, de aproximar a fabricação de chips ao país, visto que atualmente 60% da produção de chips de empresas de semicondutores norte-americanas é realizada em países asiáticos, bem mais distantes que os latinoamericanos. E o Brasil salta na frente em relação aos seus vizinhos.

A pergunta que pode restar, principalmente aos adeptos das ideologias preconizadas pelo Estadão, é a seguinte: mas por que investir numa estatal de semicondutores, se existem outras empresas brasileiras que podem produzir chips? Primeiro, não é de hoje que o Estado investe nesse setor. Os EUA, como destaca a economista italiana Mariana Mazzucatto em seu livro O Estado Empreendedor, chegou a formar um consórcio com produtores e universidades, a Semiconductor Manufacturing Technology (SEMATECH), visando concorrer com o Japão na fabricação de semicondutores na década de 1980. Isso exigiu do governo norte-americanos elevados subsídios em P&D do consórcio. Com essa parceria, viabilizou-se o desempenho e a modicidade dos preços de microprocessadores e chips de memória anos mais tarde.

Por conseguinte, como bem apregoa Mazzucatto, demonstrando em outras experiências (várias envolvendo o governo dos EUA), o Estado cumpre papel fundamental no estabelecimento de parcerias com o setor privado, ou mesmo usando exclusivamente o aparelho estatal, para investimentos em Ciência e Tecnologia, sobretudo em pesquisa básica, que exigem elevados recursos com alto risco. Esse risco é, por muitas vezes, considerado extremante inviável para a iniciativa privada, podendo ser significativamente mitigado com a intervenção e atuação do setor público.

Assim, uma estatal pode suportar melhor esse risco do que as empresas privadas, com exigência dos seus acionistas por rentabilidade a curto prazo, tempo insuficiente para maturação dos gastos em P&D. Ademais, em se tratando de soberania e segurança nacional, uma estatal pode assegurar que o país mantenha a propriedade dos ativos e bens e serviços por ela produzidos, algo salutar em se tratando da fabricação de chips e semicondutores. A iniciativa privada é, geralmente, mais sujeita aos interesses do mercado financeiro, que incentiva a comercialização de ações através de fundos de investimento internacionais na participação acionárias de empresas, podendo resultar tanto na troca do controle, e consequentemente, também na sua desnacionalização. Isso, por óbvio, compromete o interesse de garantir a segurança nacional.

À guisa de conclusão, diferentemente do que denuncia o Estadão, a manutenção da CEITEC como estatal se enquadra no artigo 173 da nossa Constituição, que exige que “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Nesse particular, cabe acrescentar que dentro da política de neoindustrialização anunciada pelo governo federal em meados desse ano, haverá um novo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis), em que a estatal poderá cumprir papel bastante importante. Portanto, a decisão do governo Lula de reversão do processo de extinção da CEITEC se mostra acertada, em linha com as melhores práticas internacionais de políticas industriais voltadas ao segmento de fabricação de semicondutores. E a empresa já comprovou a sua capacidade de reação, ainda que em situações adversas e com pouco apoio estatal, como foi o caso no período 2016-2020. Com os recursos anunciados pelo governo federal para a CEITEC, o futuro da empresa se mostra bastante promissor.

FONTES: Dados de 2016-2019 do Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais (RAEEF) de 2019 e de 2020 do Relatório de Gestão da CEITEC de 2020.

Sobre o autor:
Christian V. Kuhn é economista. Doutor em Economia do Desenvolvimento/UFRGS, consultor e professor do Instituto PROFECOM